Fibra.
[176]. Vale.
[177]. Rapaz.
[178]. Ancora; lançar ferro, ancorar.
[179]. Fronte.
[180]. Instrumento de tortura, usado em interrogatórios.
[181]. Fortuna.
[182]. Sabre; punhal.
[183]. Despencam-se.
[184]. Deusa do arco-íris; símbolo da tranquilidade.
[185]. Trono.
[186]. Filho do Sono e da Noite.
[187]. Estrado usado em quartéis e presídios; cama dura e desconfortável.
[188]. Vila Rica.
[189]. Tipo de embarcação pequena.
[190]. Com gosto; satisfeita.
[191]. Filha de Júpiter/Zeus e Têmis, é a personificação divina da Justiça.
[192]. Essa lira é interpretada pelos estudiosos como uma defesa do poeta, escrita para convencer os leitores da sua causa.
[193]. O poeta se refere ao assalto do Rio de Janeiro pela esquadra do capitão René-Duguay- -Trouin, em 1711.
[194]. O poeta se refere a Pernambuco, tomada pelos holandeses em 1630 e retomada pelos brasileiros por meio das armas.
[195]. O poeta se refere ao Rio de Janeiro, onde o sangue derramado por seus defensores não livrou a cidade do resgate imposto pelos piratas comandados por René-Duguay-Trouin.
[196]. O poeta se refere a Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes.
[197]. Trata-se da Colônia do Sacramento, fundada em 1680, no Rio da Prata, por D. Manuel Lobo, governador do Rio de Janeiro. O domínio português ali foi contestado pelos espanhóis até ser retomado pela coroa espanhola em 1777.
Parte III
Lira I
Convidou-me a ver seu Templo
O cego Cupido um dia:
Encheu-se de gosto o peito,
Fiz desse Deus um conceito,
Como dele não fazia.
Aqui vejo, descorados,
Os terníssimos amantes
Entre as cadeias gemerem;
Vejo nas piras arderem
As entranhas palpitantes.
“A quem ama, quanto avista”,
Diz Cupido, “não aterra;
Quem quer cingir o loureiro
Também vai sofrer primeiro
Todo o trabalho da guerra.
Contudo, que te dilates.
Neste sítio não convenho;
Deixa a estância lastimosa,
Vem ver a Sala formosa
Aonde o meu Sólio tenho”.
Entro noutro grande templo:
Que perspectiva tão grata!
Tudo quanto nele vejo
Passa além do meu desejo
E o discurso me arrebata.
É de mármore e de jaspe
O soberbo frontispício;
É todo por dentro d’ouro;
E a um tão rico tesouro
Inda excede o artifício.
As janelas não se adornam
De sedas de finas cores:
Em lugar dos cortinados,
Estão presos e enlaçados
Festões[198] de mimosas flores.
Em torno da Sala Augusta
Ardem dourados braseiros,
Queimam resinas que estalam
E, postas em fumo, exalam
Da Pancaia[199] os gratos cheiros.
Ao pé do Trono, os seus Gênios
Alegres hinos entoam;
Dançam as Graças formosas
E aqui as Horas gostosas
Em vez de correrem, voam.
Estão sobre o pavimento,
Igualmente reclinados
Nos colos dos seus amores,
Os grandes Reis e os Pastores
De frescas rosas coroados.
Mal o acordo restauro,
Me diz o Moço risonho:
“Como ainda não reparas
Em tantas coisas tão raras
De que este Templo componho?
Sabes a história de Jove?
Aqui tens o manso Touro,[200]
Tens o Cisne[201] decantado,
A velha em que foi mudado,
Com a grossa chuva d’ouro.
Aplica, Dirceu, agora
Os olhos para esta parte;
Aqui tens o verde Louro
Que inda estima o Pastor louro;[202]
E a Rede que enlaça a Marte.[203]
Vês este Arco destramente
De branco marfim ornado?
À casta Deusa[204] servia
E o perdeu quando dormia
Do gentil Pastor[205] ao lado.
Vês esta Lira? com ela
Tira Orfeu ao bem querido[206]
Dos infernos onde estava.
Vês este Farol? guiava
Ao meu nadador de Abido.[207]
Vês estas duas Espadas
Ainda de sangue cheias?
A Tisbe e a Dido mataram;
E os fortes pulsos armaram
De Píramo e mais de Eneias.[208]
Sabes quem vai no navio,
Que nesse mar se levanta?
É Teseu.[209] Vês esse pomo?
É de Cípide, assim como
São aqueles de Atalanta.
Vê agora estes retratos,
Que destros pincéis fizeram.
Ah! que pinturas divinas!
Todos são das Heroínas
Que mais vitórias me deram.
Repara nesse semblante:
É o semblante de Helena;[210]
Lá se avista a Grega Armada,
E aqui de Troia abrasada
Se mostra a funesta cena.
Vês est’outra formosura?
É a bela Deidamia;
Lá tens Aquiles ao lado,
De uma saia disfarçado,
Como com ela vivia.
Cleópatra é quem se segue:
Ali tens lançado a linha
Marco Antônio sossegado,
Ao tempo em que Augusto, irado,
Com armada mão caminha.
Aqui Hérmia se figura;
Vê um Sábio dos maiores,[211]
Qual infame delinquente,
Ir desterrado, somente
Por cantar os seus louvores.
Este é de Ônfale o retrato;
Aqui tens (quem o diria!)
Ao grande Hércules sentado
Com as mais damas no estrado,
Onde em seu obséquio fia.
Anda agora a est’outra parte:
Conheces, Dirceu, aquela?”
“Onde vais?” lhe digo, “explica
Que beleza aqui nos fica,
Sem fazeres caso dela?”
Ergo os olhos, ponho a vista
Na imagem não explicada:
“Oh! quanto é digna de apreço!”
Mal exclamo assim, conheço
Ser a minha doce amada.
O coração pelos olhos
Em terno pranto saía
E no meu peito saltava;
Disfarçado, Amor olhava
Para mim a furto e ria.
Depois de passado tempo,
A mim se chega e me abala;
Desperto de tanto assombro,
Ele bate no meu ombro
E assim afável me fala:
“Sim, caro Dirceu, é esta
A divina formosura,
Que te destina Cupido;
Aqui tens o laço urdido
Da tua imortal ventura.
O Númen, Dirceu, o Númen,
Que os trabalhos de um humano
Desta sorte felicita,
Não é, como se acredita,
Não é um Númen tirano.
Olha se a cega Fortuna,
De tudo quanto se cria
Ou nos mares ou na terra,
Em o seu tesouro encerra
Outro bem de mais valia?
Lisas faces cor-de-rosa,
Brancos dentes, olhos belos,
Grossos beiços encarnados,
Pescoço e peitos nevados,
Negros e finos cabelos.
Não vale mais que cingires,
Com braço de sangue imundo,
Na cabeça o verde louro
Do que teres montes d’ouro?
Do que dares leis ao mundo?
Ah! ensina, sim, ensina
Ao vil mortal atrevido
E ao peito que adora, terno,
Que tem para um o Inferno,
Para outro um Céu, Cupido”.
Ao resto Amor me convida;
Eu chorando, a mão lhe beijo,
E lhe digo: “Amor, perdoa
Não seguir-te, pois não voa
A ver mais o meu desejo”.
Lira II
Em vão do amado
filho que foge,
Vênus quer hoje
notícias ter.
Sagaz e astuto
ele se esconde
em parte aonde
ninguém o vê.
Dos sinais dados,
bem se conhece
que ele aborrece
a Mãe que tem.
Se os seus defeitos
Ela publica,
razão lhe fica
de se ofender.
Foge o Menino
e, disfarçado,
vive abrigado
numa cruel.
Com mil carícias
a ímpia o trata;
nem o desata
do peito seu.
Se a semelhança
sempre amor gera,
deve uma fera
outra acolher.
Ah! se o teu nome,
Marília, calo,
que de ti falo
bem podes crer.
Lira III
Tu não verás, Marília, cem cativos
Tirarem o cascalho e a rica terra,
Ou dos cercos dos rios caudalosos
Ou da minada Serra.
Não verás separar ao hábil negro
Do pesado esmeril a grossa areia
E já brilharem os granetes de ouro
No fundo da bateia.
Não verás derrubar os virgens matos,
Queimar as capoeiras inda novas,
Servir de adubo à terra fértil cinza,
Lançar os grãos nas covas.
Não verás enrolar negros pacotes
Das secas folhas do cheiroso fumo;
Nem espremer entre as dentadas rodas
Da doce cana o sumo.
Verás em cima da espaçosa mesa
Altos volumes de enredados feitos;
Ver-me-ás folhear os grandes livros
E decidir os pleitos.
Enquanto revolver os meus Consultos,
Tu me farás gostosa companhia,
Lendo os fastos da sábia, mestra História,
E os cantos da poesia.
Lerás em alta voz a imagem bela;
Eu, vendo que lhe dás o justo apreço,
Gostoso tornarei a ler de novo
O cansado processo.
Se encontrares louvada uma beleza,
Marília, não lhe invejes a ventura
Que tens quem leve à mais remota idade
A tua formosura.
Lira IV
Amor por acaso
A um pouso chegava,
Aonde acolhida
A Morte se achava.
Risonhos e alegres,
Os braços se deram
E as armas unidas
Num sítio puseram.
De empresas tamanhas
Cansados já vinham
E em larga conversa
A noite entretinham.
Um conta que há pouco
A seta aguçada
Em uma beleza
Deixara empregada.
Diz outro que as flechas
Cravara no peito
De um grande que teve
O Mundo sujeito.
Enquanto das forças
Cada um presumia,
Seus membros já lassos
O sono rendia.
Dormindo tranquilos,
A noite passaram,
E inda antes da Aurora
Com ânsia acordaram.
“É tempo que o leito
Deixemos, ó Morte”,
Amor, já erguido,
Falou desta sorte.
“É tempo”, em reposta
A Morte repete,
“Que à nossa fadiga
dormir não compete.
As armas colhamos,
Voltemos ao giro:
Cada um a seu gosto
Empregue o seu tiro”.
Vão inda, cos olhos
Em sono turbados,
Ao sítio em que os ferros
Estão pendurados.
Amor para as setas
da Morte se enclina;
De Amor logo a Morte
Coas flechas atina.
Oh! golpes tiranos!
Oh! mãos homicidas!
São tiros da Morte
De Amor as feridas.
De um sonho, que pinto,
Marília, conhece
Se amor ou se morte
esta alma padece.
Lira V
Eu não sou, minha Nise, pegureiro
Que viva de guardar alheio gado;
Nem sou pastor grosseiro,
Dos frios gelos e do sol queimado,
Que veste as pardas lãs do seu cordeiro.
Graças, ó Nise bela,
Graças à minha Estrela!
A Cresso não igualo no tesouro;
Mas deu-me a Sorte com que honrado viva.
Não cinjo coroa d’ouro;
Mas Povos mando e na testa altiva
Verdeja a coroa do sagrado louro.
Graças, ó Nise bela,
Graças à minha Estrela!
Maldito seja aquele que só trata
De contar, escondido, a vil riqueza,
Que, cego, se arrebata
Em buscar nos Avós a vã nobreza,
Com que aos mais homens, seus iguais, abata.
Graças, ó Nise bela,
Graças à minha Estrela!
As fortunas, que em torno de mim vejo,
Por falsos bens, que enganam, não reputo;
Mas antes mais desejo:
Não para me voltar soberbo em bruto,
Por ver-me grande, quando a mão te beijo.
Graças, ó Nise bela,
Graças à minha Estrela!
Pela Ninfa, que jaz vertida em Louro,[212]
O grande Deus Apolo não delira?
Jove, mudado em Touro
E já mudado em velha não suspira?
Seguir aos Deuses nunca foi desdouro.
Graças, ó Nise bela,
Graças à minha Estrela!
Pertendam Anibais honrar a História,
Cinjam com a mão, de sangue cheia,
Os louros da vitória;
Eu revolvo os teus dons na minha ideia:
Só dons que vêm do céu são minha glória.
Graças, ó Nise bela,
Graças à minha Estrela!
Lira VI
(Tradução)
Amor, que seus passos
Ligeiro movia
Por mil embaraços
que um bosque tecia,
Nos ombros me acena
Com brando raminho;
E logo me ordena
Que siga o caminho.
Por entre a espessura
Do bosque me avanço;
E atrás da ventura,
Incauto, me lanço.
Já tinha calcado
Os montes mais duros,
co peito rasgado
os rios escuros:
Eis que uma serpente,
A língua vibrando,
Me crava o seu dente,
Me deixa expirando.
Então, surpreendida
Da dor que a traspassa,
Minha alma ferida
Aos beiços se passa.
As iras detesta
Amor. Isso vendo,
E as asas na testa
Me bate, dizendo:
“Tu choras, tu gemes,
da serpe tocado,
e o braço não temes
de um Númen irado?”
Lira VII
Tu, formosa Marília, já fizeste
Com teus olhos ditosas as campinas
Do turvo Ribeirão em que nascestes.
Deixa, Marília, agora
As já lavradas serras:
Anda, afoita, romper os grossos mares,
Anda encher de alegria estranhas terras;
Ah! que por ti suspiram
Os meus saudosos lares!
Não corres como Safo sem ventura,
Em seguimento de um cruel ingrato,[213]
Que não cede aos encantos da ternura;
Segues um fino amante,
Que, a perder-te, morria.
Quebra os grilhões do sangue e vem, ó bela;
Tu já foste no Sul a minha guia,
Ah! deves ser no Norte
Também a minha Estrela.
Verás ao Deus Netuno sossegado,
Aplainar co tridente as crespas ondas
Ficar como dormindo o mar salgado;
Verás, verás, d’alheta[214]
Soprar o brando vento;
Mover-se o leme, desrinzar-se o linho,
Seguirem os Delfins o movimento
Que leva na carreira
O empavesado pinho.
Verás como o Leão, na proa arfando,
Converte em branca espuma as negras ondas,
e as talha e corta com murmúrio brando;
Verás, verás, Marília,
Da janela dourada,
Que uma comprida estrada representa
A linfa cristalina, que, pisada
Pela popa que foge,
Em borbotões rebenta.
Bruto peixe verás de corpo imenso
Tornar ao torto anzol, depois de o terem
Pela rasgada boca ao ar suspenso;
Os pequenos peixinhos
Quais pássaros voarem;
De toninhas verás o mar coalhado,
Ora surgirem, ora mergulharem,
Fingindo ao longe as ondas,
Que forma o vento irado.
Verás que o grande monstro se apresenta,
Um repuxo formando com as águas
Que ao ar espalha da robusta venta;
Verás, enfim, Marília,
As nuvens levantadas,
Umas de cor azul ou mais escuras,
Outras de cor-de-rosa ou prateadas,
Fazerem no Horizonte
Mil diversas figuras.
Mal chegares à foz do claro Tejo,
Apenas ele vir o teu semblante,
Dará no leme do baixel um beijo.
Eu lhe direi, vaidoso:
“Não trago, não, comigo,
Nem pedras de valor, nem montes d’ouro;
Roubei as áureas minas e consigo
Trazer para os teus cofres
Este maior Tesouro”.
Lira VIII
Em cima dos viventes fatigados
Morfeu as dormideiras espremia;
Os mentirosos sonhos me cercavam;
Na vaga fantasia
Ao vivo me pintavam
As glórias, que, desperto,
Meu coração pedia.
Eu vou, eu vou subindo a Nau possante,
Nos braços conduzindo a minha bela;
Volteia a grande roda e a grossa amarra
Se enleia em torno dela;
Já ponho a proa à barra;
Já cai ao som do apito
Ora uma ora outra vela.
Os arvoredos já se não distinguem;
A longa praia ao longe não branqueja;
E já se vão sumindo os altos montes,
Já não há que se veja
Nos claros Horizontes,
Que não sejam vapores,
Que Céu, e mar não seja.
Parece vão correndo as negras águas
E o pinho, qual rochedo, estar parado;
Ergue-se a onda, vem à Nau direita
E quebra no costado;
O Navio se deita,
E ela finge a ladeira
Saindo do outro lado.
Vejo nadarem os brilhantes peixes,
Cair do lais[215] a linha que os engana;
Um, dourado, no anzol está pendente,
Sofre morte tirana;
Entretanto que a sente,
Ao tombadilho açoita
A cauda e a barbatana.
Sobre as ondas descubro uma Carroça,[216]
De formosas conchinhas enfeitada;
Delfins a movem, e vem Tétis nela;
Na proa está parada;
Nem pode a Deusa bela
Tirar os brandos olhos
Da minha doce amada.
Nas costas dos Golfinhos vêm montados
Os nus Tritões, deixando a Esfera cheia
Com o rouco som dos búzios retorcidos.
Recreia, sim, recreia
Meus atentos ouvidos
O canto sonoroso
Da música Sereia.
Já sobe ao grande mastro o bom gajeiro,[217]
Descobre arrumação[218] e grita “Terra!”
À murada caminha, alegre, a gente;
Alguns entendem que erra;
Pelo imóvel somente
Conheço não ser nuvem,
Sim o cume d’alta serra.
De Mafra[219] já descubro as grandes torres
(E que nova alegria me arrebata!)
De Cascais a muleta[220] já vem perto,
Já de abordar-nos trata;
Já o piloto esperto,
Inda debaixo, manda
Soltar mezena e gata.[221]
Eu vou entrando na espaçosa barra,
A grossa artilharia já me atroa;
Lá ficam Paço d’Arcos e a Junqueira;
Já corre pela proa
Uma amarra ligeira;
E a Nau já fica surta
Diante da grã Lisboa.
Agora, agora sim, agora espero
Renovar da amizade antigos laços.
Eu vejo ao velho Pai, que lentamente
Arrasta a mim os passos.
Ah! com vem contente!
De longe mal me avista,
Já vem abrindo os braços.
Dobro os joelhos, pelos pés o aperto
E manda que dos pés ao peito passe.
Marília, quanto eu fiz, fazer intenta;
Antes que os pés lhe abrace,
Nos braços a sustenta;
Dá-lhe de filha o nome,
Beija-lhe a branca face.
Vou a descer a escada, oh! céus, acordo!
Conheço não estar no claro Tejo;
Abro os olhos, procuro a minha amada
E nem sequer a vejo.
Venha a hora afortunada,
Em que não fique em sonhos
Tão ardente desejo!
A uma despedida
Chegou-se o dia mais triste
Que o dia da morte feia;
Caí do trono, Dirceia,
Do trono dos braços teus.
Ah! não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!
Ímpio Fado, que não pôde
Os doces laços quebrar-me,
Por vingança quer levar-me
Distante dos olhos teus.
Ah! não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!
Parto, enfim, e vou sem ver-te,
Que neste fatal instante
Há de ser o teu semblante
Mui funesto aos olhos meus.
Ah! não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!
E crês, Dirceia, que devem
Ver meus olhos penduradas
Tristes lágrimas salgadas
Correrem dos olhos teus?
Ah! não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!
De teus olhos engraçados,
Que puderam, piedosos,
De tristes em venturosos
Converter os dias meus?
Ah! não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!
Desses teus olhos divinos,
Que, terno e sossegados,
Enchem de flores os prados,
Enchem de luzes os Céus?
Ah! não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!
Destes teus olhos, enfim,
Que domam Tigres valentes,
Que nem rígidas Serpentes
Resistem aos tiros seus?
Ah! não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!
Da maneira que seriam
em não ver-te criminosos,
Enquanto foram ditosos,
Agora seriam réus.
Ah! não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!
Parto, enfim, Dirceia bela,
Rasgando os ares cinzentos;
Virão nas asas dos ventos
Buscar-te os suspiros meus.
Ah! não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!
Talvez, Dirceia adorada,
que os duros fados me neguem
a glória de que eles cheguem
aos ternos ouvidos teus.
Ah! não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!
Mas se ditosos chegarem,
Pois os solto a teu respeito,
Dá-lhes abrigo no peito,
Junta-os cos suspiros teus.
Ah! não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!
E quando tornar a ver-te,
Ajuntando rosto a rosto,
Entre os que dermos de gosto,
Restitui-me então os meus.
Ah! não posso, não, não posso
Dizer-te, meu bem, adeus!
Sonetos
I
É gentil, é prendada a minha Alteia;
As graças, a modéstia de seu rosto
Inspiram no meu peito maior gosto
Que ver o próprio trigo quando ondeia.
Mas, vendo o lindo gesto de Dirceia,
A nova sujeição me vejo exposto;
Ah! que é mais engraçado, mais composto
Que a pura Esfera, de mil astros cheia!
Prender as duas com grilhões estreitos
É uma ação, ó Deuses, inconstante,
Indigna de sinceros, nobres peitos.
Cupido, se tens dó de um triste amante,
Ou forma de Lorino dois sujeitos
Ou forma desses dois um só semblante.
II
Num fértil campo de soberbo Douro,
Dormindo sobre a relva, descansava,
Quando vi que a Fortuna me mostrava,
Com alegre semblante, o seu Tesouro.
De uma parte, um montão de prata e ouro
Com pedras de valor o chão curvava;
Aqui um cetro, ali um trono estava,
Pendiam coroas mil de grama e louro.
“Acabou”, diz-me então, “a desventura:
De quantos bens te exponho qual te agrada,
Pois benigna os concedo, vai, procura”.
Escolhi, acordei e não vi nada:
Comigo assentei logo que a ventura
Nunca chega a passar de ser sonhada.
III
Enganei-me, enganei-me – paciência!
Acreditei às vozes, cri, Ormia,
Que a tua singeleza igualaria
À tua mais que angélica aparência.
Enganei-me, enganei-me – paciência!
Ao menos conheci que não devia
Pôr nas mãos de uma externa galhardia
O prazer, o sossego e a inocência.
Enganei-me, Cruel, com teu semblante
E nada me admiro de faltares,
Que esse teu sexo nunca foi constante.
Mas tu perdeste mais em me enganares:
Que tu não acharás um firme amante
E eu posso de traidoras ter milhares.
IV
Ainda que de Laura esteja ausente,
Há de a chama durar no peito amante;
Que existe retratado o seu semblante,
Se não nos olhos meus, na minha mente.
Mil vezes finjo vê-la e eternamente
Abraço a sombra vã; só neste instante
Conheço que ela está de mim distante,
Que tudo é ilusão que esta alma sente.
Talvez que ao bem de a ver Amor resista;
Porque minha paixão, que aos Céus é grata,
Por inocente assim melhor persista;
Pois quando só na ideia ma retrata,
Debuxa os dotes com que prende, vista,
Esconde as obras com que ofende, ingrata.
V
Ao Templo do Destino fui levado:
Sobre o altar um cofre se firmava,
Em cujo seio cada qual buscava,
Tremendo, anúncio do futuro estado.
Tiro um papel e leio – Céu Sagrado,
Com quanta causa o coração pulsava!
Esse duro Decreto escrito estava
Com negra tinta pela mão do Fado:
“Adore Polidoro a bela Ormia,
Sem dela conseguir a recompensa,
Nem quebrar-lhe os grilhões à tirania”.
Das mãos Amor mo arranca e, sem detença,
Três vezes o levando à boca ímpia,
Jurou cumprir à risca a tal sentença.
VI
Quantas vezes Lidora me dizia,
Ao terno peito minha mão levando:
“Conjurem-se em meu mal os Astros, quando
Achares no meu peito aleivosia!”[222]
Então que não chorasse lhe pedia,
Por firme seu amor acreditando.
Ah! que em movendo os olhos, suspirando,
Ao mais acautelado enganaria!
Um ano assim viveu. Oh! céus! agora
Mostrou que era mulher: a natureza,
Só por não se mudar, a fez traidora.
Não, não darei mais cultos à beleza,
Que, depois de faltar à fé Lidora,
Nem creio que nas Deusas há firmeza.
VII
O Númen Tutelar da Monarquia,
Que fez do grande Henrique[223] a invicta espada,
Procurou dos Destinos a morada,
Por consultar a idade que viria.
A mil e mil heróis descritos via,
Que exaltam de Furtado[224] a estirpe honrada,
E na série, que adora, dilatada,
O nome de Francisco descobria.
Contempla uma por uma as letras d’ouro;
Este penhor, que o tempo não consome,
Promete ao Reino seu maior tesouro.
Prostra-se o Gênio; e sem que a empresa tome
De lhe buscar sequer mais outro agouro,
O sítio beija e lhe mostra o nome.
VIII
Nascer no berço da maior grandeza,
De palmas e de louros rodeado,
Deve-se aos grandes Pais, ao Tronco honrado,
Que ilustra desde longe a natureza.
Se porém muito mais se adora e preza
O dom que o nobre sangue traz herdado,
Pela própria virtude sustentado,
Feliz o objeto da presente empresa.
De mil heróis, no Tejo vencedores,
Um ramo nasce, um ramo que a memória
Faz imortal de seus Progenitores.
Eu leio em vaticínio a sua história:
Une Francisco, a par de seus maiores,
Ao herdado esplendor a própria glória.
IX
Mudou-se enfim Lidora, essa Lidora
Por quem mil vezes fé me foi jurada.
Que vos detém, ó céus, que castigada
Ainda não deixais tão vil traidora?
Não haja piedade: sinta agora
A dita sem remédio em mal trocada;
Pois, se assim não sucede, fica ousada
Para ser outra vez enganadora.
Vingai, ó justos céus..., mas ah! que digo?
Que maltrateis Lidora? – o sentimento
Privou-me do discurso; eu me desdigo.
Não, não vibreis o raio violento;
Pois sei que a compaixão do seu castigo
Há de aumentar depois o meu tormento.
X
Adeus, cabana, adeus; adeus, ó gado;
Albina ingrata, adeus, em paz te deixo;
Adeus, doce rabil;[225] neste alto freixo
Te fica, ao meu destino consagrado.
Se te for meu sucesso perguntado,
não declares, rabil, de quem me queixo;
não quero que se saiba vive Aleixo
por causa de uma infame desterrado.
Se vires a Pastor desconhecido,
lhe dize então piedoso: “Ah! vai-te embora,
atalha os danos que outros têm sentido.
Habita nesta Aldeia uma Pastora,
de rosto belo, coração fingido,
umas vezes cruel e as mais traidora”.
XI
Com pesadas cadeias maniatado,[226]
Às vozes da razão ensurdecido,
Dos Céus, de mim, dos homens esquecido,
Me vi de amor nas trevas sepultado.
Ali aliviava o meu cuidado
Co dar de quando em quando algum gemido.
Ah! tempo! Que, somente refletido,
Me fazes entre as ditas desgraçado.
Assim vivia, quando a falsidade
De Laura me tornou num breve dia
Quanto a razão não pôde em longa idade:
Quebrei o vil grilhão que me oprimia!
Oh! feliz de quem goza a liberdade,
Bem que venha por mãos da aleivosia!
XII
Obrei quando o discurso me guiava:
Ouvi aos Sábios quando errar temia;
Aos bons no gabinete o peito abria,
Na rua a todos como iguais honrava.
Julgando os crimes, nunca os votos dava
Mais duro ou pio do que a Lei pedia;
Mas podendo salvar ao justo, ria,
E devendo punir ao réu, chorava.
Não foram, Vila Rica, os meus projetos
Meter em férreo cofre cópia d’ouro
Que chegue aos filhos e que passe aos netos;
Outras são as aventuras, que me agouro:
Ganhei saudades, adquiri afetos,
Vou fazer desses bens melhor tesouro.
XIII
Quando o torcido buço derramava
Terror no aspecto ao Português sisudo,
Quando, sem pó nem óleo, o pente agudo
Duro, intonso,[227] o cabelo em laço atava;
Quando contra os Irmãos o braço armava
O forte Nuno,[228] opondo escudo a escudo;
Quando a palavra, que prefere a tudo,
Com a barba arrancada, João[229] firmava;
Quando a mulher à sombra do marido
Tremer se via; quando a Lei prudente
Zelava o sexo do civil ruído;
Feliz então, então só inocente
Era de Luso o Reino. Oh! bem perdido!
Ditosa condição, ditosa gente!
[198]. Grinalda; ramalhete.
[199]. Região árabe de onde provinham deliciosos incensos.
[200].
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