Aliado aos volscos, sitiou Roma, a qual poupou diante das súplicas da mãe e da esposa.

[112]. Que não se deixa cativar.

[113]. Faixa que cobre os olhos do Amor, significando sua cegueira.

[114]. Alusão ao poema épico de Homero, Odisseia, quando Ulisses se vale da sabedoria para não se deixar seduzir pelo canto das sereias.

[115]. Nota-se que o poeta reescreve a mitologia para exaltar a beleza de Marília. Ao contrário do mito, em que Vênus não concebe a ninguém o posto de mais bela, nesta lira, ela o faz de bom grado em favor de Marília.

[116]. A estrofe alude às conquistas de Alexandre o Grande (356-323), imperador da Macedônia e conquistador da Grécia, morto aos 33 anos de idade, depois de grandes feitos.

[117]. Alusão a Júlio Cesar (101-44 a.C.), que dividiu o primeiro triunvirato romano com Pompeu e Crasso, tornando-se o primeiro imperador romano ao matar Pompeu.

[118]. Referência a Caio Júlio César Otaviano Augusto (63 a.C.-14 d.C.), imperador romano, sobrinho-neto de Júlio César e seu herdeiro, recebeu inicialmente o nome de Otávio, depois Otaviano. Associado a Antônio e Lépido em um triunvirato, assegurou para si a Itália e o Ocidente e derrotou o exército republicano na batalha de Filipos (42 a.C.).

[119]. Divindades dos bosques, dotadas de poderes proféticos e guardiãs das colheitas e rebanhos, identificadas com Pã.

[120]. Cruéis.

[121]. Ao longo da obra, Gonzaga funde Marília a deuses e semideuses, estratégia devida à grande influência da mitologia clássica na literatura arcádica.

[122]. Representação paradoxal do Amor, representando tanto como tirania quanto como alegria.

[123]. Poeta lírico grego que viveu no séc. VI a.C. e compôs hinos ternos sobre o amor e o vinho.

[124]. Baco ou Dionísio, deus do vinho nascido da coxa de Júpiter/Zeus após a morte de sua mãe, Sêmele.

[125]. Essa estrofe se refere à destruição de Troia em decorrência do rapto de Helena e da derrota de Marco Antônio por Otávio Augusto.

[126]. Até Cupido confunde Marília com Vênus, estratégia poética para comprovar a beleza da musa gonzaguiana.

[127]. Pérolas.

[128]. Com a derrota de Marco Antônio na batalha de Actium, Cleópatra, em vão, tenta seduzir Otávio. Ao fracassar, suicida-se com uma picada de serpente.

[129]. Recrimina.

[130]. Planejado.

[131]. Digno.

Parte II[132]

Lira I

Já não cinjo de louro a minha testa

Nem sonoras Canções o Deus me inspira.

Ah! que nem me resta

Uma já quebrada,

Mal sonora Lira!

 

Mas neste mesmo estado em que me vejo,

Pede, Marília, Amor que vá cantar-te:

Cumpro o seu desejo;

E ao que resta supra

A paixão e a arte.

 

A fumaça, Marília, da candeia,

Que a molhada parede ou suja ou pinta,

Bem que tosca e feia,

Agora me pode

Ministrar a tinta.

 

Aos mais preparos o discurso apronta:

Ele me diz que faça no pé de uma

Má laranja ponta

E dele me sirva

Em lugar de pluma.

 

Perder as úteis horas não, não devo;

Verás, Marília, uma ideia nova:

Sim, eu já te escrevo

Do que esta alma dita,

Quanto amor aprova.

 

Quem vive no regaço da ventura

Nada obra em te adorar, que assombro faça;

Mostra mais ternura

Quem te estima e morre

Nas mãos da desgraça.

 

Nesta cruel masmorra tenebrosa

Ainda vendo estou teus olhos belos,

A testa formosa,

Os dentes nevados,

Os negros cabelos.

 

Vejo, Marília, sim; e vejo ainda

A chusma dos Cupidos que, pendentes

Dessa boca linda,

Nos ares espalham

Suspiros ardentes.

 

Se alguém me perguntar onde eu te vejo,

Responderei: “No peito”, que uns Amores

De casto desejo

Aqui te pintaram:

E são bons Pintores.

 

Mal meus olhos te viram, ah! nesta hora

Teu retrato fizeram, e tão forte,

Que entendo que agora

Só pode apagá-lo

O pulso da Morte.

 

Isto escrevia, quando, oh! Céus, que vejo!

Descubro a ler-me os versos o Deus louro:

Ah! dá-lhes um beijo

E diz-me que valem

Mais que letras de ouro!

Lira II

Esprema a vil calúnia, muito embora,

Entre as mãos denegridas e insolentes,

Os venenos das plantas

E das bravas serpentes;

 

Chovam raios e raios, no meu rosto

Não hás de ver, Marília, o medo escrito,

O medo perturbado,

Que infunde o vil delito.

 

Podem muito, conheço, podem muito,

As fúrias infernais, que Pluto[133] move;

Mas pode mais que todas

Um dedo só de Jove.

 

Este Deus converteu em flor mimosa,

A quem seu nome deram, a Narciso;

Fez de muitos os Astros

Qu’inda no Céu diviso.

 

Ele pode livrar-me das injúrias

Do néscio, do atrevido, ingrato povo;

Em nova flor mudar-me,

Mudar-me em Astro novo.

 

Porém se os justos Céus, por fins ocultos,

Em tão tirano mal me não socorrem,

Verás então que os sábios,

Bem como vivem, morrem.

 

Eu tenho um coração maior que o mundo,

Tu, formosa Marília, bem o sabes:

Um coração, e basta,

Onde tu mesma cabes.

Lira III

Sucede, Marília bela,

À medonha noite o dia;

A estação chuvosa e fria

À quente, seca estação.

Muda-se a sorte dos tempos;

Só a minha sorte não?

 

Os troncos, nas Primaveras

Brotam em flores, viçosos;

Nos Invernos escabrosos

Largam as folhas no chão.

Muda-se a sorte dos tempos;

Só a minha sorte não?

 

Aos brutos, Marília, cortam

Armadas redes os passos;

Rompem depois os seus laços,

Fogem da dura prisão.

Muda-se a sorte dos brutos;

Só a minha sorte não?

 

Nenhum dos homens conserva

Alegre sempre o seu rosto;

Depois das penas vem gosto,

Depois do gosto aflição.

Muda-se a sorte dos homens;

Só a minha sorte não?

 

Aos altos Deuses moveram

Soberbos Gigantes guerra;

No mais tempo o Céu e a Terra

Lhes tributa adoração.

Muda-se a sorte dos Deuses;

Só a minha sorte não?

 

Há de, Marília, mudar-se

Do destino a inclemência;

Tenho por mim a inocência,

Tenho por mim a razão.

Muda-se a sorte de tudo;

Só a minha sorte não?

 

O tempo, ó bela, que gasta

Os troncos, pedras e o cobre,

O véu rompe, com que encobre

À verdade a vil traição.

Muda-se a sorte de tudo;

Só a minha sorte não?

 

Qual eu sou, verá o mundo;

Mais me dará do que eu tinha,

Tornarei a ver-te minha:

Que feliz consolação!

Não há de tudo mudar-se;

Só a minha sorte não?

Lira IV

Já, já me vai, Marília, branquejando

Louro cabelo, que circula a testa;

Este mesmo, que alveja, vai caindo

E pouco já me resta.

 

As faces vão perdendo as vivas cores

E vão-se sobre os ossos enrugando,

Vai fugindo a viveza dos meus olhos;

Tudo se vai mudando.

 

Se quero levantar-me, as costas vergam;

As forças dos meus membros já se gastam;

Vou a dar pela casa uns curtos passos,

Pesam-me os pés e arrastam.

 

Se algum dia me vires desta sorte,

Vê que assim me não pôs a mão dos anos;

Os trabalhos, Marília, os sentimentos

Fazem os mesmos danos.

 

Mal te vir, me dará em poucos dias

A minha mocidade o doce gosto;

Verás brunir-se a pele, o corpo encher-se,

Voltar a cor ao rosto.

 

No calmoso[134] Verão as plantas secam;

Na Primavera, que aos mortais encanta,

Apenas cai do Céu o fresco orvalho,

Verdeja logo a planta.

 

A doença deforma a quem padece;

Mas logo que a doença fez seu termo,[135]

Torna, Marília, a ser quem era dantes

O definhado enfermo.

 

Supõe-me qual doente, ou qual a planta,

No meio da desgraça que me altera:

Eu também te suponho qual saúde,

Ou qual a Primavera.

 

Se dão esses teus meigos, vivos olhos

Aos mesmos Astros luz e vida às flores,

Que efeitos não farão em quem por eles

Sempre morreu de amores?

Lira V

Os mares, minha bela, não se movem;

O brando Norte assopra, nem diviso

Uma nuvem sequer na Esfera[136] toda;

O destro Nauta[137] aqui não é preciso;

Eu só conduzo a nau, eu só modero

Do seu governo a roda.

 

Mas ah! que o Sul carrega, o mar se empola,

Rasga-se a vela, o mastaréu se parte!

Qualquer varão prudente aqui já teme;

Não tenho a necessária força e arte.

Corra o sábio Piloto, corra e venha

Reger o duro leme.

 

Como sucede à nau no mar, sucede

Aos homens na ventura e na desgraça;

Basta ao feliz não ter total demência;

Mas quem de venturoso a triste passa,

Deve entregar o leme do discurso

Nas mãos da sã prudência.

 

Todo o Céu se cobriu, os raios chovem;

E esta alma, em tanta pena consternada,

Nem sabe aonde possa achar conforto.

Ah! não, não tardes, vem, Marília amada,

Toma o leme da nau, mareia o pano,[138]

Vai-a salvar no Porto!

 

Mas ouço já de Amor as sábias vozes:

Ele me diz que sofra, se não, morro;

E perco então, se morro, uns doces laços.

Não quero já, Marília, mais socorro;

Oh! ditoso sofrer, que lucrar pode

A glória dos teus braços!

Lira VI

De que te queixas,

Língua importuna?

De que a Fortuna

Roubar-te queira

O que te deu?

Esse foi sempre

O gênio seu.

 

Levou, Marília,

A ímpia sorte

Catões[139] à morte;

Nem sepultura

Lhes concedeu.

Esse foi sempre

O gênio seu.

 

A outros muitos,

Que vis nasceram,

Nem mereceram,

A grandes tronos

A ímpia ergueu.

Esse foi sempre

O gênio seu.

 

Espalha a cega

Sobre os humanos

Os bens e os danos

E a quem se devam

Nunca escolheu.

Esse foi sempre

O gênio seu.

 

A quanto é justo

Jamais se dobra;

Nem igual obra

Cos mesmos Deuses

Do claro Céu.

Esse foi sempre

O gênio seu.

 

Sobe ao Céu Vênus

Num carro ufano;

E cai Vulcano

Da pura esfera

Em que nasceu.

Esse foi sempre

O gênio seu.

 

Mas não me rouba,

Bem que se mude,

Honra e virtude:

Que o mais é dela,

Mas isto é meu.

Esse foi sempre

O gênio seu.

Lira VII

Meu prezado Glauceste,

Se fazes o conceito[140] 

Que, bem que réu, abrigo

A cândida Virtude no meu peito;

Se julgas, digo, que mereço ainda

Da tua mão socorro;

Ah! vem dar-mo agora,

Agora, sim, que morro!

 

Não quero que, montado

No Pégaso[141] fogoso,

Venhas com dura lança

Ao monstro infame traspassar, raivoso.

Deixa que viva a pérfida calúnia

E forje o meu tormento:

Com menos, meu Glauceste,

Com menos me contento.

 

Toma a lira dourada

E toca um pouco nela;

Levanta a voz celeste

Em parte que te escute a minha Bela;

Enche todo o contorno de alegria;

Não sofras que o desgosto

Afogue em pranto amargo

O seu divino rosto.

 

Eu sei, eu sei, Glauceste,

Que um bom Cantor havia,

Que os brutos amansava,

Que os troncos e os penedos atraía.[142] 

De outro destro Cantor também afirma

A sábia Antiguidade,

Que as muralhas erguera

De uma grande Cidade.[143] 

Orfeu as cordas fere:

O som delgado e terno

Ao Rei Plutão abranda,

E o deixa, que penetre o fundo Averno.

Ah! tu a nenhum cedes, meu Glauceste,

Na lira e mais no canto;

Podes fazer prodígios,

Obrar ou mais, ou tanto.

 

Levanta pois as vozes:

Que mais, que mais esperas?

Consola um peito aflito;

Que é menos ainda, que domar as feras.

Com isso me darás no meu tormento

Um doce lenitivo;[144] 

Que enquanto a bela vive,

Também, Glauceste, vivo.

Lira VIII

Eu vejo, ó minha bela, aquele númen,[145] 

A quem o nome deram de Fortuna;

Pega-me pelo braço

E com voz importuna

Me diz que mova o passo;

Que entre no grande Templo em que se encerra

Quanto o destino manda

Que ela obre sobre a terra.

 

Que coisas portentosas nele encontro!

Eu vejo a pobre fundação de Roma;

Vejo-a queimar Cartago;

Vejo que as gentes doma;

E vejo o seu estrago.

Lá floresce o poder do Assírio Povo;

Aqui os Medos[146] crescem

E os perde um braço novo.

 

Então me diz a Deusa: “E que pretendes?

Todas estas Medalhas ver agora?

Ah! não, não sejas louco!

Espaço de anos fora

Para isso ainda pouco.

Deixa estranhos sucessos, vem comigo;

Verás quanto inda deve

Acontecer contigo”.

 

Levou-me aonde estava a minha história,

Que toda me explicou com modo e arte.

“Tirei-te libras de ouro”,

Me diz, “e quero dar-te

Todo aquele tesouro”.

“Não suspira por bens um peito nobre”,

Severo lhe respondo,

“Vivo afeito a ser pobre”.

 

Aqui me enruga a Deusa, irada, a testa,

E fica sem falar um breve espaço.

“Alegra, alegra o rosto”,

Prossegue, “ali te faço

Restituir o posto”.

Respondo em ar de mofa e tom sereno:

“Conheço-te, Fortuna,

Posso morrer pequeno”.

 

“Aqui te dou”, me diz, “a tua amada”.

Então me banho todo de alegria.

“Cuidei”, me torna a cega,

“Que essa alma não queria

Nem esta mesma entrega”.

“É esse o bem”, respondo, “que me move;

Mas este bem é santo,

Vem só da mão de Jove”.

 

Queria mais falar; eu, insofrido,

Desta maneira rompo os seus acentos:

“Basta, Fortuna, basta;

Estes breves momentos

Lá noutras coisas gasta;

Da minha sorte nada mais contemplo”.

E, chamando Marília,

Suspiro e deixo o Templo.

Lira IX

A estas horas

Eu procurava

Os meus Amores;

Tinham-me inveja

Os mais Pastores.

 

A porta abria,

Inda esfregando

Os olhos belos,

Sem flor nem fita

Nos seus cabelos.

 

Ah! que assim mesmo,

Sem compostura,

É mais formosa

Que a estrela d’alva,

Que a fresca rosa!

 

Mal eu a via,

Um ar mais leve

(Que doce efeito!)

Já respirava

Meu terno peito.

 

Do cerco apenas

Soltava o gado,

Eu lhe amimava

Aquela ovelha

Que mais amava.

 

Dava-lhe sempre,

No rio e fonte,

No prado e selva,

Água mais clara,

Mais branda relva.

 

No colo a punha;

Então, brincando,

A mim a unia;

Mil coisas ternas

Aqui dizia.

 

Marília, vendo

Que eu só com ela

É que falava,

Ria-se a furto

E disfarçava.

 

Desta maneira,

Nos castos peitos

De dia em dia

A nossa chama

Mais se acendia.

 

Ah! quantas vezes,

No chão sentado,

Eu lhe lavrava

As finas rocas

Em que fiava!

 

Da mesma sorte

Que à sua amada,

Que está no ninho,

Fronteiro canta

O passarinho.

 

Na quente sesta,

Dela defronte,

Eu me entretinha,

Movendo o ferro

Da sanfoninha.

 

Ela, por dar-me

De ouvir o gosto,

Mais se chegava;

Então, vaidoso,

Assim cantava:

 

“Não há Pastora,

Que chegar possa

À minha bela,

Nem quem me iguale

Também na estrela.

 

Se Amor concede

Que eu me recline

No branco peito,

Eu não invejo

De Jove o leito.

 

Ornam seu peito

As sãs virtudes

Que nos namoram;

No seu semblante

As Graças moram”.

 

Assim vivia;

Hoje em suspiros

O canto mudo:

Assim, Marília,

Se acaba tudo.

Lira X

Arde o velho barril, arde a cabeça,

Em honra de João[147] na larga rua;

O crédulo Mortal agora indaga

Qual seja a sorte sua.

 

Eu não tenho alcachofra que à luz chegue

E nela orvalhe o Céu de madrugada,

Para ver se rebentam novas folhas

Aonde foi queimada.

 

Também não tenho um ovo que despeje

Dentro dum copo d’água e possa nela

Fingir Palácios grandes, altas Torres,

E uma Nau à vela.

 

Mas, ah! em bem me lembre: eu tenho ouvido

Que na boca um bochecho d’água tome

E atrás de qualquer porta atento esteja,

Até ouvir um nome.

 

Que o nome que primeiro ouvir, é esse

O nome que há de ter a minha amada.

Pode verdade ser; se for mentira,

Também não custa nada.

 

Vou tudo executar e de repente

Ouvi dizer o nome de Filena;

Despejo logo a boca: ah! não sei como

Não morro ali de pena!

 

Aparece Cupido; então, soltando

Em ar de zombaria uma risada:

“E que tal”, me pergunta, “esteve a peça?

Não foi bem pregada?

 

Eu já te disse que Marília é tua;

Tu fazes do meu dito tanta conta,

Que vais acreditar o que te ensina

Velha mulher já tonta?”

 

Humilde lhe respondo: “Quem debaixo

Do açoite da Fortuna aflito geme,

Nas mesmas coisas que só são brinquedos

Se agouram males, teme”.

Lira XI

Se acaso não estou no fundo Averno,

Padece, ó minha bela, sim, padece

O peito amante e terno

As aflições tiranas, que aos Precitos[148] 

Arbitra Radamanto,[149] em justa pena

Dos bárbaros delitos.

 

As Fúrias[150] infernais rangendo os dentes,

Com a mão descarnada não me aplicam

As raivosas serpentes;

Mas cercam-me outros monstros mais irados:

Mordem-me sem cessar as bravas serpes

De mil e mil cuidados.

 

Eu não gasto, Marília, a vida toda

Em lançar o penedo da montanha[151] 

Ou em mover a roda;[152] 

Mas tenho ainda mais cruel tormento:

Por coisas que me afligem, roda e gira

Cansado pensamento.

 

Com retorcidas unhas agarrado

Às tépidas entranhas, não me come

Um abutre esfaimado;[153] 

Mas sinto de outro monstro a crueldade:

Devora o coração, que mal palpita,

O abutre da saudade.

 

Não vejo os pomos nem as águas vejo

Que de mim se retiram, quando busco

Fartar o meu desejo;[154] 

Mas quer, Marília, o meu destino ingrato

Que lograr-te não possa, estando vendo

Nesta alma o teu retrato.

 

Estou no Inferno, estou, Marília bela;

E numa coisa só é mais humana

A minha dura estrela:

Uns não podem mover do Inferno os passos;

Eu pretendo voar, e voar cedo,

À glória dos teus braços.

Lira XII

Ah! Marília, que tormento

Não tens de sentir, saudosa!

Não podem ver os teus olhos

A campina deleitosa,

Nem a tua mesma Aldeia,

Que, tiranos, não proponham

À inda inquieta ideia

Uma imagem de aflição.

Mandarás aos surdos Deuses

Novos suspiros em vão.

 

Quando levares, Marília,

Teu ledo rebanho ao prado,

Tu dirás: “Aqui trazia

Dirceu também o seu gado”.

Verás os sítios ditosos

Onde, Marília, te dava

Doces beijos amorosos

Nos dedos da branca mão.

Mandarás aos surdos Deuses

Novos suspiros em vão.

 

Quando à janela saíres,

Sem quereres, descuidada,

Tu verás, Marília, a minha

E minha pobre morada.

Tu dirás então contigo:

“Ali Dirceu esperava

Para me levar consigo;

E ali sofreu a prisão”.

Mandarás aos surdos Deuses

Novos suspiros em vão.

 

Quando vires igualmente

Do caro Glauceste a choça,[155] 

Onde alegres se juntavam

Os poucos da escolha nossa,

Pondo os olhos na varanda

Tu dirás, de mágoa cheia:

“Todo o congresso ali anda,

Só o meu Amado não”.

Mandarás aos surdos Deuses

Novos suspiros em vão.

 

Quando passar pela rua

O meu companheiro honrado,

Sem que me vejas com ele

Caminhar emparelhado,

Tu dirás: “Não foi tirana

Somente comigo a sorte;

Também cortou, desumana,

A mais fiel união”.

Mandarás aos surdos Deuses

Novos suspiros em vão.

 

Numa masmorra metido,

Eu não vejo imagens destas,

Imagens, que são por certo

A quem adora funestas.

Mas se existem, separadas

Dos inchados, roxos olhos,

Estão, que é mais, retratadas

No fundo do coração.

Também mando aos surdos Deuses

Tristes suspiros em vão.

Lira XIII

Vês, Marília, um cordeiro

De flores enramado,

Como alegre caminha

A ser sacrificado?

O Povo para Templo já concorre;

A Pira sacrossanta já se acende;

O Ministro o fere: ele bala e morre.

 

Vês agora o novilho,

A quem segura o laço?

No chão as mãos especa,

Nem quer mover um passo.

Não conhece que sai de um mau terreno,

Que o forte pulso, que a seguir o arrasta,

O conduz a viver num campo ameno.

 

Ignora o bruto como

Lhe dispomos a sorte:

Um vai forçado à vida,

Vai outro alegre à morte.

Nós temos, minha bela, igual demência:

Não sabemos os fins com que nos move

A sábia, oculta Mão da Providência.

 

De Jacó[156] ao bom filho[157] 

Os maus matar quiseram;

De conselho mudaram:

Como escravo o venderam.

José não corre a ser um servo aflito:

Vai subindo os degraus, por onde chega

A ser um quase Rei no grande Egito.

 

Quem sabe se o Destino

Hoje, ó bela, me prende.

Só porque nisto de outros

Mais danos me defende?

Pode ainda raiar um claro dia;

Mas quer raie, quer não, ao Céu adoro

E beijo a santa mão que assim me guia.

Lira XIV

Alma digna de mil Avós Augustos!

Tu sentes, tu soluças,

Ao ver cair os justos;

Honras as santas leis da Humanidade;

E os teus exemplos deve

Gravar com letras de ouro no seu Templo

A cândida Amizade.

 

Não é, não é de Herói uma alma forte,

Que vê com rosto enxuto

No seu igual a morte.

Não é também de Herói um peito duro,

Que a sua glória firma

Em que lhe não resiste ao ferro e fogo

Nem legião, nem muro.

 

Oh! quanto o ousado Chefe[158] me namora,

Quando vê a cabeça

Do bom Pompeu e chora!

É grande para mim quem move os passos

E de Dario[159] aos filhos,

Que como escravos seus tratar pudera,

Recebe nos seus braços. [160] 

 

Se alcança Eneias,[161] Capitão piedoso,

Entre os heróis do mundo

Um nome glorioso,

Não é porque levanta uma cidade;

É, sim, porque nos ombros

Salvou do incêndio ao Pai, a quem detinha

A mão da branca idade.

 

Ah! se ao meu contrário entre as chamas vira,

Eu mesmo, sim, da morte

Aos ombros o remira;

Inda por ele muito mais obrara;

E, se nada servisse,

Fizera então, Amigo, o que fizeste:

Genera e suspirara.

 

Oh! quanto são duráveis as cadeias

De uma amizade quando

Se dão iguais ideias!

Se, apesar dos estorvos, se sustinha

Nossa união sincera

Foi por ser a minha alma igual à tua,

E a tua igual à minha.

 

Se ó caro Amigo te merece tanto,

Lá lhe fica a sua alma,

Limpa-lhe o terno pranto.

De quem eu falo, és tu, Marília bela.

Ah! sim, honrado Amigo,

Se enxugar não puderes os seus olhos,

Pranteia então com ela.

Lira XV

Eu, Marília, não fui nenhum Vaqueiro,

Fui honrado Pastor da tua Aldeia;

Vestia finas lãs e tinha sempre

A minha choça do preciso cheia.

Tiraram-me o casal e o manso gado,

Nem tenho a que me encoste um só cajado.

 

Para ter que te dar, é que eu queria

De mor rebanho ainda ser o dono;

Prezava o teu semblante, os teus cabelos

Ainda muito mais que um grande Trono.

Agora que te oferte já não vejo,

Além de um puro amor, de um são desejo.

 

Se o rio levantado me causava,

Levando a sementeira, prejuízo,

Eu alegre ficava, apenas via

Na tua breve boca um ar de riso.

Tudo agora perdi; nem tenho o gosto

De ver-te ao menos compassivo o rosto.

 

Propunha-me dormir no teu regaço

As quentes horas da comprida sesta,

Escrever teus louvores nos olmeiros,

Toucar-te de papoulas na floresta.

Julgou o justo Céu que não convinha

Que a tanto grau subisse a glória minha.

 

Ah! minha bela, se a Fortuna volta,

Se o bem, que já perdi, alcanço e provo,

Por essas brancas mãos, por essas faces

Te juro renascer um homem novo,

Romper a nuvem que os meus olhos cerra,

Amar no céu a Jove e a ti na terra!

 

Fiadas comprarei as ovelhinhas,

Que pagarei dos poucos do meu ganho;

E dentro em pouco tempo nos veremos

Senhores outra vez de um bom rebanho.

Para o contágio lhe não dar, sobeja

Que as afague, Marília, ou só que as veja.

 

Se não tivermos lãs e peles finas,

Podem mui bem cobrir as carnes nossas

As peles dos cordeiros mal curtidas

E os panos feitos com as lãs mais grossas.

Mas ao menos será o teu vestido

Por mãos de amor, por minhas mão cosido.[162]

 

Nós iremos pescar na quente sesta

Com canas e com cestos os peixinhos;

Nós iremos caçar nas manhãs frias

Com a vara envisgada os passarinhos.

Para nos divertir faremos quanto

Reputa o varão sábio, honesto e santo.

 

Nas noites de serão nos sentaremos

Cos filhos, se os tivermos, à fogueira:

Entre as falsas histórias que contares,

Lhes contarás a minha, verdadeira.

Pasmados te ouvirão; eu, entretanto,

Ainda o rosto banharei de pranto.

 

Quando passarmos juntos pela rua,

Nos mostrarão co dedo os mais Pastores,

Dizendo uns para os outros: “Olha os nossos

Exemplos da desgraça, e sãos amores”.

Contentes viveremos dessa sorte,

Até que chegue a um dos dois a morte.

Lira XVI

Vejo, Marília,

Que o nédio gado

Anda disperso

No monte e prado;

Que assim sucede

Ao desgraçado,

Que a perder chega

O seu Pastor.

Mas inda sofro

A viva dor.

 

Também conheço

Que os Pegureiros[163] 

Que apascentavam

Os meus cordeiros

Darão suspiros,

E verdadeiros,

Porque perderam

Um pai no amor.

Mas inda sofro

A viva dor.

 

Eu mais alcanço

Que a minha herdade,[164] 

Estando eu preso,

Sofrer não há de

Nem a charrua[165] 

E nem a grade,

Que a mão lhe falta

Do Lavrador.

 

Mas inda sofro

A viva dor.

Mas quando sobe

À minha ideia

Que tu ficaste

Lá nessa Aldeia,

De mil cuidados

E mágoa cheia,

Das paixões minhas

Não sou senhor.

Eu já não sofro

A viva dor.

 

A quanto chega

A pena forte!

Pesa-me a vida,

Desejo a morte,

A Jove acuso,

Maldigo a sorte,

Trato a Cupido

Por um traidor.

Eu já não sofro

A viva dor.

 

Mas esse excesso

Perdão merece,

E dele Jove

se compadece:

Que Jove, ó bela,

Mui bem conhece

Aonde chega

Paixão de amor.

Eu já não sofro

A viva dor.

Lira XVII

Dirceu te deixa, ó bela,

De padecer cansado;

Frio suor já banha

Seu rosto descorado;

O sangue já não gira pela veia;

Seus pulsos já não batem,

E a clara luz dos olhos se baceia:

A lágrima sentida já lhe corre;

Já pára a convulsão, suspira e morre.

 

Seu espírito chega

Onde se pune o erro:

Late o cão e se lhe abrem

Grossos portões de ferro.

Aos severos Juízes se apresenta

E com sentidas vozes

Toda a sua tragédia representa:

Enche-se de ternura e novo espanto

O mesmo inexorável Radamanto.

 

Abre um, pasmado, a boca

E a pedra não despede;

Outro já não se lembra

Da fome e mais da sede;

Descansa o curvo bico e a garra impia

Negro abutre esfaimado;[166] 

Nem na roca medonha a Parca[167] fia.

Até as mesmas Fúrias inclementes

Deixam cair das unhas as serpentes.

 

Já votam os Juízes;

E o Rei Plutão lhe ordena

Deixe o sítio, em que ficam

Almas dignas de pena.

Já sai do escuro Reino e da memória

Lhe passa tudo quanto

Ou pode dar-lhe mágoa ou dar-lhe glória;

Só, bem que o gosto as turvas águas tome,

Inda, Marília, inda diz teu nome.

 

Entra já nos Elísios,

Campinas venturosas,

Que mansos rios cortam,

Que cobrem sempre as rosas.

Escuta o canto das sonoras aves

E bebe as águas puras,

Que o mel e do que o leite mais suaves.

“Aqui”, diz ele, “espero a minha bela,

Aqui contente viverei com ela”.

 

Aqui... Porém aonde

Me leva a dor ativa?

É ilusão desta alma;

Jove inda quer que eu viva.

Eu devo, sim, gozar teus doces laços;

E em paga de meus males,

Devo morrer, Marília, nos teus braços;

Então eu passarei ao Reino amigo,

E tu irás depois lá ter comigo.

Lira XVIII

Não molho, Marília,

De pranto a masmorra[168] 

Que o terno Cupido

Não voe não corra

A i-lo apanhar.

Estende-o nas asas,

Sobre ele suspira,

Por fim se retira

E vai-to levar.

 

Se o moço não mente,

Aos tristes gemidos,

Aos ais lastimosos

Não guardes unidos,

Marília, cos teus;

As lágrimas nossas

No seio amontoa,

Forma asas e voa,

Vai pô-las nos céus.

 

A Deusa formosa,

Que amava aos Troianos,[169] 

Livrá-los querendo

De riscos e danos,

A Jove buscou.

As águas, que o rosto

Da Deusa banharam

A Jove abrandaram

e assim os salvou.

 

Confia-te, ó bela,

Confia-te em Jove;

Ainda se abranda,

Ainda se move

Com ânsias de amor.

O pranto de Vênus,

Que obrou no Pai tanto,

Não tem que o teu pranto

Apreço maior.

Lira XIX

Nesta triste masmorra,

De um semivivo corpo sepultura,

Inda, Marília, adoro

A tua formosura.

Amor na minha ideia te retrata;

Busca, extremoso, que eu assim resista

À dor imensa que me cerca e mata.

 

Quando em meu mal pondero,

Então mais vivamente te diviso:

Vejo o teu rosto e escuto

A tua voz e riso.

Movo ligeiro para o vulto os passos:

Eu beijo a tíbia luz em vez de face

E aperto sobre o peito em vão os braços.

 

Conheço a ilusão minha;

A violência da mágoa não suporto;

Foge-me a vista e caio,

Não sei se vivo ou morto.

Enternece-se Amor de estrago tanto;

Reclina-me no peito e, com mão terna,

Me limpa os olhos do salgado pranto.

 

Depois que represento

Por largo espaço a imagem de um defunto,

Movo os membros, suspiro

E onde estou pergunto.

Conheço então que Amor me tem consigo;

Ergo a cabeça, que inda mal sustento,

E com doente voz assim lhe digo:

 

“Se queres ser piedoso,

Procura o sítio em que Marília mora,

Pinta-lhe o meu estrago,

E vê, Amor, se chora.

Se a lágrimas verter a dor a arrasta,

Uma delas me traze sobre as penas

E para alívio meu só isso basta”.

Lira XX

Se me viras com teus olhos

Nesta masmorra metido,

De mil ideias funestas

E cuidados combatido,

Qual seria, ó minha bela,

Qual seria o teu pesar!

 

À força da dor cedera

E nem estaria vivo,

Se o menino Deus vendado,

Extremoso e compassivo,

Com o nome de Marília

Não me viesse animar.

 

Deixo a cama ao romper d’alva;

O meio-dia tem dado

E o cabelo ainda flutua

Pelas costas desgrenhado.

Não tenho valor,[170] não tenho,

Nem para de mim cuidar.

 

Diz-me Cupido: “E Marília

Não estima este cabelo?

Se o deixas perder de todo,

Não se há de enfadar ao vê-lo?”

Suspiro, pego no pente,

Vou logo o cabelo atar.

 

Vem um tabuleiro entrando

De vários manjares cheio;

Põe-se na mesa a toalha

E eu pensativo passeio;

De todo o comer esfria,

Sem nele poder tocar.

 

“Eu entendo que matar-te”,

Diz Amor, “ te tens proposto.

Fazes bem: terá Marília

Desgosto sobre desgosto”.

Qual enfermo co remédio,

Me aflijo, mas vou jantar.

 

Chegam as horas, Marília,

Em que o Sol já se tem posto;

Vem-me à memória que nelas

Vi à janela o teu rosto:

Reclino na mão a face

E entro de novo a chorar.

 

Diz-me Cupido: “Já basta,

Já basta, Dirceu, de pranto;

Em obséquio de Marília

Vai erguer teu doce canto”.

Pendem as fontes dos olhos,

Mas eu sempre vou cantar.

 

Vem o Forçado acender-me

A velha, suja candeia:

Fica, Marília, a masmorra

Inda mais triste e feia.

Nem mais canto, nem mais posso

Uma só palavra dar.

 

Diz-me Cupido: “São horas

De escrever-se o que está feito”.

Do azeite e da fumaça

Uma nova tinta ajeito;

Tomo o pau, que pena finge,

Vou as Liras copiar.

 

Sem que chegue o leve sono,

Canta o Galo a vez terceira;

Eu digo ao Amor que fico

Sem deitar-me a noite inteira;

Faço mimos e promessas

Para ele me acompanhar.

 

Ele diz que em dormir cuide,

Que hei de ver Marília em sonho;

Não respondo uma palavra;

A dura cama componho,

Apago a triste candeia

E vou-me logo deitar.

 

Como pode a tais cuidados

Resistir, ó minha Bela,

Quem não tem de Amor a graça,

Se eu, que vivo à sombra dela,

Inda vivo desta sorte,

Sempre triste a suspirar?

Lira XXI

 

Que diversas que são, Marília, as horas

Que passo na masmorra imunda e feia,

Dessas horas felizes, já passadas

Na tua pátria Aldeia!

 

Então eu me ajuntava com Glauceste;

E à sombra de alto Cedro na Campina

Eu versos te compunha, e ele os compunha

À sua cara Eulina.

 

Cada qual o seu canto aos Astros leva;

De exceder um ao outro qualquer trata;

O eco agora diz: “Marília terna”;

E logo: “Eulina ingrata”.

 

Deixam os mesmos Sátiros as grutas.

Um para nós ligeiro move os passos;

Ouve-nos de mais perto e faz a flauta

Cos pés em mil pedaços.

 

“Dirceu”, clama um pastor, “ah! bem merece

Da cândida Marília a formosura”.

“E aonde”, clama o outro, “quer Eulina

Achar maior ventura?”

 

Nenhum Pastor cuidava do rebanho,

Enquanto em nós durava esta porfia;

E ela, ó minha amada, só findava

Depois de acabar-se o dia.

 

À noite te escrevia na cabana

Os versos que de tarde havia feito;

Mal tos dava e os lias, os guardavas

No casto e branco peito.

 

Beijando os dedos dessa mão formosa,

Banhados com as lágrimas do gosto,

Jurava não cantar mais outras graças

Que as graças do teu rosto.

 

Ainda não quebrei o juramento;

Eu agora, Marília, não as canto;

Mas inda vale mais que os doces versos

A voz do triste pranto.

Lira XXII

Por morto, Marília,

Aqui me reputo:

Mil vezes escuto

O som do arrastado

E duro grilhão.

Mas ah! que não treme,

Não treme de susto

O meu coração!

 

A chave lá soa

Na porta segura:

Abre-se a escura

Infame masmorra

Da minha prisão.

Mas ah! que não treme,

Não treme de susto

O meu coração!

 

Já Torres[171] se assenta;

Carrega-me o rosto;

Do crime suposto

Com mil artifícios

Indaga a razão.

Mas, ah! que não treme,

Não treme de susto

O meu coração!

 

Eu vejo, Marília,

A mil inocentes,

Nas cruzes pendentes,

Por falsos delitos

Que os homens lhes dão.

Mas, ah! que não treme,

Não treme de susto

O meu coração!

 

Se penso que posso

Perder o gozar-te

E a glória de dar-te

Abraços honestos

E beijos na mão,

Marília, já treme,

Já treme de susto

O meu coração!

 

Repara, Marília,

O quanto é mais forte

Ainda que a morte,

Num peito esforçado,

De amor a paixão.

Marília, já treme,

Já treme de susto

O meu coração!

Lira XXIII

Não praguejes, Marília, não praguejes

A justiceira mão, que lança os ferros;

Não traz debalde a vingadora espada;

Deve punir os erros.

 

Virtudes de Juiz, virtudes de homem

As mãos se deram e em seu peito moram.

Manda prender ao Réu austera a boca,

Porém seus olhos choram.

 

Se à inocência denigre a vil calúnia,

Que culpa aquele tem, que aplica a pena?

Não é o Julgador, é o processo

E a lei, quem nos condena.

 

Só no Averno os Juízes não recebem

Acusação nem prova de outro humano;

Aqui todos confessam suas culpas,

Não pode haver engano.

 

Eu vejo as Fúrias afligindo aos tristes:

Uma o fogo chega, outra as serpes move;

Todos maldizem sim a sua estrela,

Nenhum acusa a Jove.

 

Eu também inda adoro ao grande Chefe,[172] 

Bem que a prisão me dá, que eu não mereço.

Qual eu sou, minha Bela, não me trata,

Trata-me qual pareço.

 

Quem suspira, Marília, quando pune

Ao vassalo que julga delinquente,

Que gosto não terá, podendo dar-lhe

Às honras de inocente?

 

Tu vences, Barbacena, aos mesmos Titos

Nas sãs virtudes, que no peito abrigas:

Não honras tão-somente a quem premeias,

Honras a quem castigas.

Lira XXIV

Eu vou, Marília, vou brigar coas[173] feras!

Uma soltaram, eu lhe sinto os passos;

Aqui, aqui a espero

Nestes despidos braços.

É um malhado tigre; a mim já corre,

Ao peito o aperto, estalam-lhe as costelas,

Desfalece, cai, urra, treme e morre.

 

Vem agora um Leão: sacode a grenha,

Com faminta paixão a mim se lança;

Venha embora, que o pulso

Ainda não se cansa.

Oprimo-lhe a garganta, a língua estira,

O corpo lhe fraqueia, os olhos incham,

Açoita o chão, convulso, arqueja e expira.

 

Mas que vejo, Marília! Tu te assustas?

Entendes que os destinos, inumanos,

Expõem a minha vida

No circo dos Romanos?

Com ursos e com onças eu não luto:

Luto co bravo monstro, que me acusa,

Que os tigres e leões mais fero e bruto.

 

Embora contra mim, raivoso, esgrima

Da vil calúnia a cortadora espada,

Uma alma qual eu tenho

Não se receia a nada.

Eu hei de, sim, punir-lhe a insolência,

Pisar-lhe o negro colo, abrir-lhe o peito

Coas armas invencíveis da inocência.

 

Ah! quando imaginar, que vingativo

Mando que desça ao Tártaro profundo,

Hei de com mão honrada

Erguer-lhe o corpo imundo.

Eu então lhe direi: “Infame, indino,[174] 

Obras como costuma o vil humano;

Faço o que faz um coração divino”.

Lira XXV

Minha Marília,

O passarinho,

A quem roubaram

Ovos e ninho,

Mil vezes pousa

No seu raminho;

Piando finge

Que anda a chorar.

Mas logo voa

Pela espessura,

Nem mais procura

Este lugar.

 

Se acaso a vaca

Perde a vitela,

Também nos mostra

Que se desvela:

O pasto deixa,

Muge por ela,

Até na estrada

A vem buscar.

Em poucos dias,

Ao que parece,

Dela se esquece

E vai pastar.

 

O voraz Tempo,

Que o ferro come,

Que aos mesmos Reinos

Devora o nome,

Também, Marília,

Também consome

Dentro do peito

Qualquer pesar.

Ah! só não pode

Ao meu tormento

Por um momento

Alívio dar!

 

Também, ó bela,

Não há quem viva

Instantes breves

Na chama ativa;

Derrete ao bronze,

Sendo excessiva,

Ao mesmo seixo

Faz estalar.

Mas do amianto

A febra[175] dura

Na chama atura

Sem se queimar.

 

Também, Marília,

Não há quem negue,

Que, bem que o fogo

Nos óleos pegue,

Que, bem que em línguas

Às nuvens chegue,

À força d’água

Se há de apagar.

Se a negra pedra

Nós acendemos,

Com água a vemos

Mais s’inflamar.

 

O meu discurso,

Marília, é reto;

A pena iguala

Ao meu afeto;

O amor que nutro

Ao teu aspecto

E ao teu semblante

É singular.

Ah! nem o tempo,

Nem inda a morte

A dor tão forte

Pode acabar!

Lira XXVI

Aquele a quem fez cego a Natureza,

Co bordão apalpa e aos que veem pergunta;

Ainda se despenha muitas vezes

E dois remédios junta!

 

De ser cega a Fortuna eu não me queixo,

Sim me queixo de que má cega seja:

Cega que nem pergunta nem apalpa,

É porque errar deseja.

 

A quem não tem virtudes nem talentos,

Ela, Marília, faz de um cetro dono;

Cria num pobre berço uma alma digna

De se sentar num trono.

 

A quem gastar não sabe nem se anima

Entrega as grossas chaves de um tesouro;

E lança na miséria a quem conhece

Para que serve o ouro.

 

A quem fere, a quem rouba, a infame deixa

Que atrás do vício em liberdade corra;

Eu honro as leis do Império, ela me oprime

Em esta vil masmorra.

 

Mas ah! minha Marília, que esta queixa

Coa sólida razão se não coaduna!

Como me queixo da Fortuna tanto,

Se sei não há Fortuna?

 

Os Fados, os Destinos, essa Deusa

Que os Sábios fingem que uma roda move,

É só a oculta mão da Providência,

A sábia mão de Jove.

 

Nós é que somos cegos, que não vemos

A que fins nos conduz por estes modos;

Por torcidas estradas, ruins veredas

Caminha ao bem de todos.

Alegre-se o perverso com as ditas;

Co seu merecimento o virtuoso;

Parecer desgraçado, ó minha bela,

É muito mais honroso.

Lira XXVII

A minha amada

É mais formosa

Que branco lírio,

Dobrada rosa,

Que o cinamomo,

Quando matiza

Coa folha a flor.

Vênus não chega

Ao meu amor.

 

Vasta campina,

De trigo cheia,

Quando na sesta

Co vento ondeia,

Ao seu cabelo,

Quando flutua,

Não é igual.

Tem a cor negra

Mas quanto val![176]

 

Os astros, que andam

Na esfera pura,

Quando cintilam

Na noite escura,

Não são, humanos,

Tão lindos como

Seus olhos são,

Que ao Sol excedem

Na luz que dão.

 

Às brancas faces

Ah! não se atreve

Jasmim de Itália,

Nem inda a neve,

Quando a desata

O Sol brilhante

Com seu calor.

São neve e causam

No peito ardor.

 

Na breve boca

Vejo enlaçadas

As finas perlas

Com as granadas;

A par dos beiços,

Rubins da Índia

Têm preço vil.

Neles se agarram

Amores mil.

 

Se não lhe desse,

Compadecido,

Tanto socorro

O Deus Cupido;

Se não vivera

Uma esperança

No peito seu,

Já morto estava

O bom Dirceu.

 

Vê quanto pode

Teu belo rosto

E de gozá-lo

O vivo gosto!

Que, submergido

Em um tormento

Quase infernal,

Porqu’inda espero,

Resisto ao mal.

Lira XXVIII

Detém-te, vil humano;

Não espremas cicutas

Para fazer-me dano.

O sumo que elas dão é pouco forte:

Procura outras bebidas

Que apressem mais a morte.

 

Desce ao Reino profundo,

Ajunta aí venenos

Que nunca visse o mundo;

Traze o negro licor, que têm nos dentes,

Nos dentes retorcidos

As raivosas serpentes.

 

Cachopo[177] levantado,

Que pôs a Natureza

Dentro no Mar salgado,

Não se abala no meio da tormenta,

Bem que uma onda e outra onda

Sobre ele em flor rebenta.

 

Árvore, que na terra

As robustas raízes,

Buscando o centro, aferra,[178] 

Não teme ao furacão mais violento;

E menos, se se deixa

Vergar do rijo vento.

 

Sou tronco é rocha, ó bela,

Que açoita o Sul, que brama,

E o mar que se encapela.

Não temas que do rosto a cor se mude;

Vence as rochas e os troncos

A sólida virtude.

 

A maior desventura

É sempre a que nos lança

No horror da sepultura;

O cobarde a morrer também caminha;

Com que males não pode

Uma alma como a minha?

Lira XXIX

Eu descubro procurar-me

Gentil mancebo e louro;

Trazia a testa adornada,

Com folhas de verde louro.

Vejo ser o Pai das Musas,

E me entrega a lira d’ouro.

 

“Já basta”, me diz, “ó filho,

Já basta de sentimento;

O cansado peito exige

Um breve contentamento:

Louva a formosa Marília

Ao som do meu instrumento”.

 

Firo as cordas; mas que importa?

A dor não sossega entanto:

Ergo a voz; então reparo

Que, quanto mais corre o pranto,

É mais doce e mais sonoro

Meu terno e saudoso canto.

 

Apolo fitou os olhos

Na mão que regia o braço;

E depois de estar suspenso,

De me ouvir um largo espaço,

Assim diz: “O Deus Cupido,

Faz inda mais, do que eu faço”.

 

“Eu te dou a minha lira:

Louva, louva a tua Bela;

Porém vê que ta concedo

Com condição e cautela”...

Eu lhe corto a voz dizendo,

Que só canto em honra dela.

Lira XXX

O Pai das Musas,

O Pastor louro

Deu-me, Marília,

Para cantar-te

A lira de ouro.

 

As cordas firo;

O brando vento

Teus dotes leva

Nas brancas asas

Ao firmamento.

 

“O teu cabelo

Vale um tesouro;

Um só me adorna

A sábia frente[179] 

Melhor que o louro.

Nesses teus olhos

Amor assiste;

Deles faz guerra;

Ninguém lhe foge,

Ninguém resiste.

 

Algumas vezes

Eu o diviso,

Também oculto

Nas lindas covas

Que faz teu riso.

 

Nesses teus peitos

Têm os seus ninhos

Destros amores;

Neles se geram

Os Cupidinhos.

 

Vences a Vênus,

Quando com arte

As armas toma,

Por que mais prenda

Ao fero Marte”.

 

Eu produzia

Essas ideias,

Quando, Marília,

O som escuto

Das vis cadeias.

 

Dou um suspiro,

Corre o meu pranto;

E, inda bebendo

Lágrimas tristes,

De novo canto:

 

“Sou da constância

Um vivo exemplo:

E vós, ó ferros,

Honrareis inda

De Amor o Templo”.

Lira XXXI

Roubou-me, ó minha Amada, a sorte impia

Quanto de meu gozava

Num só funesto dia:

Honras de maioral, manada grossa,

Fértil, extensa herdade,

Bem reparada choça.

 

Meteu-me nesta infame sepultura,

Que é sepulcro sem honras,

Breve masmorra, escura.

 

Aqui, ó minha Amada, nem consigo

Venha outro desgraçado

Sentir também comigo.

 

Mas se essa companhia não mereço,

Os Deuses me dão outra,

Inda de mais apreço.

 

Não é, não, ilusão o que te digo;

Tu mesma me acompanhas;

Peno, mas é contigo.

 

Não vejo as tuas faces graciosas,

Os teus soltos cabelos,

As tuas mãos mimosas.

 

Se eu as visse, infeliz me não dissera,

Bem que subira ao Potro[180] 

Bem que na Cruz pendera.

 

Não ouço as tuas vozes magoadas,

Com ardentes suspiros

Às vezes mal formadas.

 

Mas vejo, ó cara, as tuas letras belas;

Uma por uma beijo

E choro então sobre elas.

 

Tu me dizes que siga o meu destino;

Que o teu amor, na ausência

Será leal e fino.

 

De novo a carta ao coração aperto,

De novo a molha o pranto,

Que de ternura verto.

Ah! leve muito embora o duro Fado

A tudo quanto tenho

Com meu suor ganhado!

 

Eu juro que do roubo nem me queixe,

Contanto, ó minha cara,

Que este só bem me deixe.

 

Que males voluntários não subiram,

Os que te amam, somente

Por que [ao] menos te ouviram?

 

Dê pois aos mais seus bens a Deusa cega;[181] 

Que eu tenho aquela glória,

Que a mil felizes nega.

Lira XXXII

Se o vasto mar se encapela

E na rocha em flor rebenta,

Grossa nau, que não tem leme,

Em vão sustentar-se intenta;

Até que naufraga e corre

À discrição da tormenta.

 

Quem não tem uma Beleza

Em que ponha o seu cuidado,

Se o Céu se cobre de nuvens

E se assopra o vento irado,

Não tem forças que resistam

Ao impulso do seu fado.

 

Nesta sombria masmorra,

Aonde, Marília, vivo,

Encosto na mão o rosto,

Fico às vezes pensativo.

Ah! que imagens tão funestas

Me finge o pesar ativo!

 

Parece que vejo a honra,

Marília, toda enlutada;

A face de um pai, rugosa,

Num mar de pranto banhada;

Os amigos macilentos

E a família consternada.

 

Quero voltar os meus olhos

Para outro diverso lado:

Vejo numa grande Praça

Um teatro levantado;

Vejo as Cruzes, vejo os Potros,

Vejo o Alfanje[182] afiado.

 

Um frio suor me cobre,

Lassam-se[183] os membros, suspiro;

Busco alívio às minhas ânsias,

Não o descubro, deliro.

Já, meu Bem, já me parece

Que nas mãos da morte expiro.

 

Vem-me então ao pensamento

A tua testa nevada,

Os teus meigos, vivos olhos,

A tua face rosada,

Os teus dentes cristalinos,

A tua boca engraçada.

 

Qual, Marília, a estrela d’alva,

Que a negra noite afugenta;

Qual o Sol, que a névoa espalha,

Apenas a terra aquenta;

Ou qual Íris,[184] que o Céu limpa,

Quando se vê na tormenta.

 

Assim, Marília, desterro

Triste ilusão e demência;

Faz de novo o seu ofício

A razão e a prudência;

E firmo esperanças doces

Sobre a cândida inocência.

 

Restauro as forças perdidas,

Sobe a viva cor ao rosto,

Gira o sangue pela veia

E bate o pulso, composto.

Vê, Marília, o quanto pode

Contra meus males teu rosto!

Lira XXXIII

Morri, ó minha Bela:

Não foi a Parca impia,

Que na tremenda roca,

Sem ter descanso, fia;

Não foi, digo, não foi a morte feia

Quem o ferro moveu e abriu no peito

A palpitante veia.

 

Eu, Marília, respiro;

Mas o mal que suporto

É tão tirano e forte

Que já me dou por morto:

A insolente calúnia depravada

Ergueu-se contra mim, vibrou da língua

A venenosa espada.

 

Inda, ó bela, não vejo

Cadafalso enlutado,

Nem de torpe verdugo

Braço de ferro armado;

Mas vivo neste mundo, ó sorte impia!

E dele só me mostra a estreita fresta

O quando é noite ou dia.

 

Olhos baços, sumidos,

Macilento, escarnado,

Barba crescida e hirsuta,

Cabelo desgrenhado;

Ah! que imagem tão digna de piedade!

Mas é, minha Marília, como vive

Um Réu de Majestade.

 

Venha o processo, venha,

Na inocência me fundo;

Mas não morreram outros

Que davam honra ao mundo?

O tormento, minha alma, não recuses:

A quem, sábio, cumpriu as leis sagradas

Servem de sólio[185] as cruzes.

 

Tu, Marília, se ouvires

Que ante o teu rosto aflito

O meu nome se ultraja

Co suposto delito,

Dize, severa, assim em meu abono:

“Não toma as armas contra um cetro justo

Alma digna de um trono”.

Lira XXXIV

Vou-me, ó bela, deitar na dura cama,

De que nem sequer sou o pobre dono;

Estende sobre mim Morfeu[186] as asas

E vem ligeiro o sono.

 

Os sonhos, que rodeiam a tarimba,[187] 

Mil coisas vão pintar na minha ideia;

Não pintam cadafalsos, não, não pintam

Nenhuma imagem feia.

 

Pintam que estou bordando um teu vestido;

Que um menino com asas, cego e louro,

Me enfia nas agulhas o delgado,

O brando fio de ouro.

 

Pintam que entrando vou na grande Igreja;

Pintam que as mãos nos damos e aqui vejo

Subir-te à branca face a cor mimosa,

A viva cor do pejo.

 

Pintam que nos conduz dourada sege

À nossa habitação; que mil amores

Desfolham sobre o leito as moles folhas

Das mais cheirosas flores.

 

Pintam que dessa terra[188] nos partimos;

Que os amigos, saudosos e suspensos,

Apertam nos inchados, roxos olhos

Os já molhados lenços.

 

Pintam que os mares sulco da Bahia,

Onde passei a flor da minha idade;

Que descubro as palmeiras e em dois bairros

Partida a grã cidade.

 

Pintam leve escaler[189] e que na prancha

O braço já te of’reço, reverente;

Que te aponta co dedo, mal te avista,

Amontoada gente.

 

Aqui, “Alerta!” grita o mau soldado;

E o outro, “Alerta estou!” lhe diz gritando.

Acordo com a bulha..., então conheço

Que estava aqui sonhando.

 

Se o meu crime não fosse só de amores,

A ver-me delinquente, réu de morte,

Não sonhara, Marília, só contigo,

Sonhara de outra sorte.

Lira XXXV

Se lá te chegarem

Aos ternos ouvidos

Uns tristes gemidos,

Repara, Marília,

Verás que são meus.

Ah! dá-lhes abrigo,

Marília, nos peitos;

Aqui os conserva

Em laços estreitos,

Unidos aos teus.

 

O vento ligeiro,

De ouvi-los movido,

Os pede a Cupido,

Que a todos apanha,

E lá tos vai pôr.

Ah! não os desprezes!

Porque se conspira

O Céu em meu dano,

E a glória me tira

De honrado Pastor.

 

Têm estes suspiros

Motivo dobrado:

Perdi o meu gado;

Perdi, que mais vale,

O bem de te ver.

Se os não receberes,

Amante por ora,

Por serem de um triste,

Os deves, Pastora,

Por honra acolher.

 

Virá, minha bela,

Virá uma idade,

Que, vista a verdade,

Gostosa[190] me entregues

O teu coração.

Os crimes desonram,

Se são existentes;

Os ferros que oprimem

As mãos inocentes

Infames não são.

 

Chegando esse dia,

Os braços daremos.

Então mandaremos

De gosto e ternura

Suspiros aos Céus.

Pôr-me-ão no sepulcro

A honrosa inscrição:

“Se teve delito,

Só foi a paixão,

Que a todos faz réus”.

Lira XXXVI

Não hás de ter horror, minha Marília,

De tocar pulso que sofreu os ferros?

Infames impostores mos lançaram

E não puníveis erros.

 

Esta mão, esta mão, que ré parece,

Ah! não foi uma vez, não foi só uma,

Que em defesa dos bens, que são do Estado,

Moveu a sábia pluma.

 

É certo, minha amada, sim é certo

Qu’eu aspirava a ser de um Cetro o dono;

Mas esse grande império, que eu firmava,

Tinha em teu peito o trono.

 

As forças que se opunham não batiam

De grossa peça, de mosquete os tiros;

Só eram minhas armas os soluços,

Os rogos e os suspiros.

 

De cuidados, desvelos e finezas

Formava, ó minha bela, os meus guerreiros.

Não tinha no meu campo estranhas tropas,

Que amor não quer parceiros.

 

Mas pode ainda vir um claro dia

Em que estas vis algemas, estes laços

Se mudem em prisões, de alívios cheias,

Nos teus mimosos braços.

 

Vaidoso então direi: “Eu sou Monarca!

Dou leis, que é mais, num coração divino.

Sólio que ergueu o gosto e não a força,

É que é de apreço dino”.

Lira XXXVII

Meu sonoro Passarinho,

Se sabes do meu tormento

E buscas dar-me, cantando,

Um doce contentamento,

 

Ah! não cantes mais, não cantes,

Se me queres ser propício;

Eu te dou em que me faças

Muito maior benefício.

 

Ergue o corpo, os ares rompe,

Procura o Porto da Estrela,

Sobe à serra e, se cansares,

Descansa num tronco dela.

 

Toma de Minas a estrada,

Na Igreja nova, que fica

Ao direito lado, e segue

Sempre firme a Vila Rica

 

Entra nesta grande terra,

Passa uma formosa ponte,

Passa a segunda, a terceira

Tem um palácio defronte.

 

Ele tem ao pé da porta

Uma rasgada janela,

É da sala, aonde assiste

A minha Marília bela.

 

Para bem a conheceres,

Eu te dou os sinais todos

Do seu gesto, do seu talhe,

Das suas feições e modos.

 

O seu semblante é redondo,

sobrancelhas arqueadas,

Negros e finos cabelos

Carne de neve formadas.

 

A boca risonha e breve,

Suas faces cor-de-rosa,

Numa palavra, a que vires

Entre todas mais formosa.

 

Chega então ao seu ouvido,

Dize que sou quem te mando,

Que vivo nesta masmorra,

Mas sem alívio penando.

Lira XXXVIII

Eu vejo aquela Deusa,

Astreia[191] pelos Sábios nomeada;

Trás nos olhos a venda,

Balança numa mão, na outra espada.

O vê-la não me causa um leve abalo,

Mas antes, atrevido,

Eu a vou procurar e assim lhe falo:

 

“Qual é o povo, dize,

Que comigo concorre no atentado?

Americano Povo!

O Povo mais fiel e mais honrado!

Tira as Praças das mãos do injusto dono,

Ele mesmo as submete

De novo à sujeição do Luso Trono![192] 

 

Eu vejo nas histórias

Rendido Pernambuco aos Holandeses;

Eu vejo saqueada

Essa ilustre Cidade[193] dos Franceses;

[194] se derrama o sangue brasileiro;

Aqui[195] não basta, supre

Das roubadas famílias o dinheiro.”

 

Enquanto assim falava,

Mostrava a Deusa não me ouvir com gosto;

Punha-me a vista tesa,

Enrugava o severo e aceso rosto.

Não suspendo contudo no que digo;

Sem o menor receio,

Faço que a não entendo e assim prossigo:

 

“Acabou-se, tirana,

A honra, o zelo deste Luso Povo?

Não é aquele mesmo

Que estas ações obrou? É outro novo?

E pode haver direito que te mova

A supor-nos culpados,

Quando em nosso favor conspira a prova?

 

Há em Minas um homem,

Ou por seu nascimento ou seu tesouro,

Que aos outros mover possa

À força de respeito, à força d’ouro?

Os bens de quantos julgas rebelados

Podem manter na guerra,

Por um ano sequer, a cem soldados?

 

Ama a gente assisada

A honra, a vida, o cabedal tão pouco?

Que ponha uma ação dessas

Nas mãos dum pobre, sem respeito e louco?[196]

E quando a comissão lhe confiasse,

Não tinha pobre soma,

Que por paga ou esmola, lhe mandasse!

 

Nos limites de Minas,

A quem se convidasse não havia?

Ir-se-iam buscar sócios

Na Colônia[197] também ou na Bahia?

Está voltada a Corte brasileira

Na terra dos Suíços,

Onde as Potências vão erguer bandeira?

 

O mesmo autor do insulto

Mais a riso, do que a terror me move;

Deu-lhe nesta loucura,

Podia-se fazer Netuno ou Jove.

A prudência é tratá-lo por demente;

Ou prendê-lo ou entregá-lo,

Para dele zombar a moça gente.

 

Aqui, aqui a Deusa

Um extenso suspiro aos ares solta;

Repete outro suspiro

E, sem palavra dar, as costas volta.

“Tu te irritas?”, lhe digo, “e quem te ofende?

Ainda nada ouviste

Do que respeita a mim; sossega, atende!

 

E tinha que ofertar-me

Um pequeno, abatido e novo Estado,

Com as armas de fora,

Com as suas próprias armas consternado?

Achas também que sou tão pouco esperto,

Que um bem tão contingente

Me obrigasse a perder um bem já certo?

 

Não sou aquele mesmo

Que a extinção do débito pedia?

Já viste levantado

Quem à sombra da paz alegre, ria?

Um direito arriscado eu busco e feio,

E quero que se evite

Toda a razão do insulto e todo o meio?

 

Não sabes quanto apresso

Os vagarosos dias da partida?

Que a fortuna, risonha,

A mais formosos campos me convida?

Não me unira, se os houvesse aos vis traidores;

Daqui nem ouro quero;

Quero levar somente os meus amores.

 

Eu, ó cega, não tenho

Um grosso cabedal, do pais herdado;

Não o recebi no emprego,

Nem tenho as instruções dum bom Soldado.

Far-me-iam os rebeldes o primeiro

No Império que se erguia

À custa do seu sangue e seu dinheiro!”

 

Aqui, aqui, de todo

A Deusa se perturba e mais se altera;

Morde o seu próprio beiço;

O sítio deixa, nada mais espera.

“Ah! vai-te”, então lhe digo, “vai-te embora”.

Melhor, minha Marília,

Eu gastasse contigo mais esta hora.

 

[132]. As liras dessa parte foram escritas na prisão da Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro, onde Gonzaga foi confinado devido à sua participação na Inconfidência Mineira.

[133]. Deus grego da riqueza.