E tinha razão, porque, digamos depressa e sem mais cerimônias, havia ele desde certo tempo concebido fundadas suspeitas de que era atraiçoado.

Havia alguns meses tinha notado que um certo sargento passava-lhe muitas vezes pela porta, e enfiava olhares curiosos através das rótulas: uma ocasião, recolhendo-se, parecera-lhe que o vira encostado à janela. Isto porém passou sem mais novidade.

Depois começou a estranhar que um certo colega seu o procurasse em casa, para tratar de negócios do ofício, sempre em horas desencontradas: porém isto também passou em breve. Finalmente aconteceu-lhe por três ou quatro vezes esbarrar-se junto de casa com o capitão do navio em que tinha vindo de Lisboa, e isto causou-lhe sérios cuidados. Um dia de manhã entrou sem ser esperado pela porta adentro; alguém que estava na sala abriu precipitadamente a janela, saltou por ela para a rua, e desapareceu.

À vista disto nada havia a duvidar: o pobre homem perdeu, como se costuma dizer, as estribeiras; ficou cego de ciúme. Largou apressado sobre um banco uns autos que trazia embaixo do braço, e endireitou para a Maria com os punhos cerrados.

– Grandessíssima!...

E a injúria que ia soltar era tão grande que o engasgou... e pôs-se a tremer com todo o corpo.

A Maria recuou dois passos e pôs-se em guarda, pois também não era das que se receava com qualquer coisa.

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– Tira-te lá, ó Leonardo!

– Não chames mais pelo meu nome, não chames... que tranco-te essa boca a socos...

– Safe-se daí! Quem lhe mandou pôr-se aos namoricos comigo a bordo?

Isto exasperou o Leonardo; a lembrança do amor aumentou-lhe a dor da traição, e o ciúme e a raiva de que se achava possuído transbordaram em socos sobre a Maria, que depois de uma tentativa inútil de resistência desatou a correr, a chorar e a gritar:

– Ai... ai... acuda, senhor compadre... senhor compadre!...

Porém o compadre ensaboava nesse momento a cara de um freguês, e não podia largá-lo. Portanto a Maria pagou caro e por junto todas as contas. Encolheu-se a choramingar em um canto.

O menino assistira a toda essa cena com imperturbável sangue-frio: enquanto a Maria apanhava e o Leonardo esbravejava, aquele ocupava-se tranquilamente em rasgar as folhas dos autos que este tinha largado ao entrar, e em fazer delas uma grande coleção de cartuchos.

Quando, esmorecida a raiva, o Leonardo pôde ver alguma coisa mais do que seu ciúme, reparou então na obra meritória em que se ocupava o pequeno. Enfurece-se de novo: suspendeu o menino pelas orelhas, fê-lo dar no ar uma meia-volta, ergue o pé direito, assenta-lhe em cheio sobre os glúteos atirando-o sentado a quatro braças de distância.

– És filho de uma pisadela e de um beliscão; mereces que um pontapé te acabe a casta.

O menino suportou tudo com coragem de mártir, apenas abriu ligeiramente a boca quando foi levantado pelas orelhas: mal caiu, ergueu-se, embarafustou pela porta fora, e em três pulos estava dentro da loja do padrinho, e atracando-se-lhe às pernas. O padrinho erguia nesse momento por cima da cabeça do freguês a bacia de barbear que lhe tirara dos queixos: com o choque que sofreu a bacia inclinou-se, e o freguês recebeu um batismo de água de sabão.

– Ora, mestre, esta não está má!...

– Senhor, balbuciou este... a culpa é deste endiabrado... O que é que tens, menino?

O pequeno nada disse; dirigiu apenas os olhos espantados para defronte, apontando com a mão trêmula nessa direção.

O compadre olhou também, aplicou a atenção, e ouviu então os soluços da Maria.

– Ham! resmungou; já sei o que há de ser... eu bem dizia... ora aí está!...

E desculpando-se com o freguês saiu da loja e foi acudir ao que se passava.

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Por estas palavras vê-se que ele suspeitara alguma coisa; e saiba o leitor que suspeitara a verdade.

Espiar a vida alheia, inquirir dos escravos o que se passava no interior das casas, era naquele tempo coisa tão comum e enraizada nos costumes, que ainda hoje, depois de passados tantos anos, restam grandes vestígios desse belo hábito. Sentado pois no fundo da loja, afiando por disfarce os instrumentos do ofício, o compadre presenciara os passeios do sargento por perto da rótula de Leonardo, as visitas extemporâneas do colega deste, e finalmente os intentos do capitão do navio.

Por isso contava ele mais dia menos dia com o que acabava de suceder.

Chegando ao outro lado da rua empurrou a rótula que o menino ao sair deixara cerrada, e entrou. Dirigiu-se ao Leonardo, que se conservava ainda em posição hostil.

– Ó compadre, disse, você perdeu o juízo?...

– Não foi o juízo, disse o Leonardo em tom dramático, foi a honra!...

A Maria, vendo-se protegida pela presença do compadre, cobrou ânimo, e altanando-se disse em tom de zombaria:

– Honra!... honra de meirinho... ora!

O vulcão de despeito que as lágrimas da Maria tinham apagado um pouco, borbotou de novo com este insulto, que não ofendia só um homem, porém uma classe inteira! Injúrias e murros à mistura caíram de novo sobre a Maria das mãos e da boca de Leonardo. O compadre, que se interpusera, levou alguns por descuido; afastou-se pois a distância conveniente, murmurando despeitado por ver frustrados seus esforços de conciliador:

– Honra de meirinho é como fidelidade de saloia.

Enfim serenou a tormenta: a Maria sentou-se a um canto a chorar e a maldizer a hora em que nascera, o dia em que pela primeira vez vira o Leonardo, a pisadela, o beliscão com que tinha começado o namoro a bordo, e tudo mais que a dor dos murros lhe trazia à cabeça.

O Leonardo, depois de um pouco de calma, teve um momento de exasperação; avermelharam-se-lhe os olhos e as faces, cerrou os dentes, meteu as mãos nos bolsos do calção, inchou as bochechas e pôs-se a balançar violentamente a perna direita. Depois, como tomando uma resolução extrema, juntou as folhas dispersas dos autos que o menino despedaçara, enterrou atravessado na cabeça o chapéu armado, agarrou na bengala, e saiu batendo com a rótula e exclamando:

– Vá-se tudo com os diabos!...

– Vai... vai... exclamou a Maria já de novo em segurança, pondo as mãos nas cadeiras, que o caso não há de ficar assim... pôr-me as mãos!... ora... vou com isto à justiça!...

– Comadre...

– Nada, não atendo, compadre... vou com isto à justiça, e apesar de ser ele um meirinhaço muito velhaco, há de se haver comigo.

– É melhor não se meter nisto, comadre...