Mas o excesso de trabalho acabou prejudicando minha saúde e, aos poucos, eu fiquei tão ruim que minha mulher insistiu em que eu consultasse o dr. Kavanagh Smith, que era meu colega no Hospital Samaritano. O cavalheiro me examinou e diagnosticou que o lobo superior do pulmão esquerdo apresentava uma calcificação, recomendando-me que ao mesmo tempo eu me submetesse a um tratamento médico e fizesse uma longa viagem marítima.
Minha própria índole, naturalmente agitada, inclinou-me fortemente a seguir a segunda parte da prescrição, o que ficou rapidamente acertado quando encontrei Russell Jr., da companhia White, Russell & White, que me ofereceu uma passagem em um dos navios de seu pai, o Marie Celeste, que estava prestes a partir do porto de Boston.
– É um barco pequeno e confortável – ele disse – e Tibbs, o capitão, é um grande sujeito. Nada é melhor para uma pessoa doente do que uma viagem marítima.
Como eu tinha exatamente a mesma opinião, acertamos tudo ali mesmo. Meu plano original previa a companhia de minha esposa na viagem. Ela, porém, não gostava nem um pouquinho de navegar e havia fortes razões familiares para não se expor a qualquer risco naquela ocasião, de modo que ficou acertado que minha mulher permaneceria em casa. Não sou um homem religioso, nem expansivo, mas, oh, como eu agradeço a Deus por isso! De resto, quanto a me afastar de meu consultório, não havia motivo de preocupação pois Jackson, meu sócio, era um homem de confiança e afeito ao trabalho duro.
Cheguei a Boston em 12 de outubro de 1873 e segui imediatamente para o escritório da firma, a fim de agradecer sua cortesia. Enquanto eu aguardava no escritório até que Russell pudesse me ver, as palavras Marie Celeste repentinamente atraíram minha atenção. Olhei ao meu redor e vi um homem muito alto e magro, que estava debruçado no balcão de mogno fazendo perguntas ao funcionário do outro lado. Seu rosto me era parcialmente visível e pude ver que ele era um mulato bem escuro. Seu nariz aquilino e o cabelo não muito crespo mostravam o lado caucasiano de sua origem, mas os olhos negros, a boca sensual e os dentes brilhantes remetiam à sua origem africana. Sua constituição física tinha um aspecto doentio e seu rosto trazia vestígios de varíola, de modo que ele causava uma má impressão, quase uma antipatia. Quando falava, contudo, com voz melodiosa e palavras cultas e bem escolhidas, mostrava ser um homem de relativa educação.
– Queria fazer algumas perguntas sobre o Marie Celeste – ele dizia, voltado para o agente de viagens. – Ele parte depois de amanhã, não é?
– Sim senhor – disse o jovem funcionário, com uma gentileza incomum que se devia ao brilho de um grande diamante no prendedor de gravata do cliente.
– Para onde ele vai?
– Lisboa.
– Quantos tripulantes?
– Sete, senhor.
– Há passageiros?
– Sim, senhor, dois. Um cavalheiro daqui e um médico de Nova York.
– Nenhum cavalheiro do Sul?
– Não, senhor.
– Há lugar para mais um passageiro?
– Para mais três – respondeu o funcionário.
– Pois seguirei nele – disse o mulato, decidido. – Pode reservar minha passagem já, por favor. Meu nome é sr. Septimius Goring, de Nova Orleans.
O agente preencheu um formulário e o estendeu ao estranho, apontando a linha pontilhada no rodapé do documento. Quando o sr. Goring se curvou para assiná-lo, reparei, horrorizado, que quatro de seus dedos da mão direita haviam sido amputados e que ele precisava segurar a caneta com o polegar e a palma da mão. Já vi milhares de feridos em combate e assisti a todo tipo de operação cirúrgica, mas não consigo lembrar de nenhuma visão que tivesse me provocado tanta aversão quanto aquela grande mão marrom em forma de esponja, com um único dedo projetando-se dela. Mas seu dono a usava com bastante habilidade, assinando sem dificuldade o papel. Depois, agradeceu ao funcionário e deixou o escritório no mesmo momento em que o sr. White mandou dizer que podia me receber.
Naquela tarde, visitei o Marie Celeste e dei uma olhada no meu camarote, que era bastante confortável, considerando o pequeno tamanho da embarcação. O sr. Goring, que eu vira pela manhã, iria ficar no camarote ao lado do meu. Do lado oposto ficava a cabine do capitão e outra menor, onde se alojaria o sr. John Harton, que viajava a negócios da companhia de navegação. Esses aposentos estavam dispostos de ambos os lados de um corredor que conduzia ao salão do convés principal. Este último era um ambiente muito confortável, com paredes revestidas por lambri de carvalho e mogno, um suntuoso tapete belga e poltronas luxuosas.
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