Mulherzinhas
Prefácio
Vai, Livrinho meu, e mostra a quem
Alegre te receber e acolher bem
O que no coração trazes encerrado;
E o que mostrares seja a todos adequado
Para que na vida possam então escolher
Ser peregrinos melhores do que viemos a ser.
Conta-lhes da Misericórdia, cuja decisão
Foi desde cedo iniciar sua peregrinação.
Com ela, aprendam as jovens por sua vez
A valorizar o mundo futuro e a sensatez,
Mocinhas podem mesmo com passos inseguros
Seguir a Deus pelas vias trilhadas por pés puros.
Adaptado de John Bunyan
Capítulo 1
Brincando de peregrinas
– O Natal sem presentes não vai ser Natal – resmungou Jo, estendida no tapete.
– É tão ruim ser pobre! – suspirou Meg, olhando seu vestido velho.
– Não acho justo que umas meninas tenham tantas coisas bonitas e outras não tenham nada – acrescentou a pequena Amy em tom sentido.
– Temos papai e mamãe e temos umas às outras – disse Beth, satisfeita, lá do seu canto.
Os quatro rostinhos iluminados pelo fogo brilharam a essas palavras animadoras, mas se sombrearam outra vez quando Jo falou triste:
– Mas não temos papai e não vamos ter por muito tempo. – Ela não disse “talvez nunca mais”, mas todas fizeram esse acréscimo em silêncio, pensando no pai longe, lá na guerra.
Durante um minuto ninguém disse nada; então Meg falou em outro tom:
– Vocês sabem por que mamãe sugeriu não ter presentes neste Natal; foi porque vai ser um inverno difícil para todo mundo, e ela acha que não devemos gastar por prazer enquanto nossos homens sofrem tanto no exército. Não podemos fazer grande coisa, mas nossos pequenos sacrifícios podemos, e com alegria. Só que tenho medo de não conseguir – e Meg abanou a cabeça, enquanto pensava pesarosa em todas as coisas bonitas que queria.
– Mas acho que o pouco que gastaríamos não faria diferença. Temos um dólar cada uma e, se dermos ao exército, não vai ajudar muito. Concordo em não esperar nada de mamãe nem de vocês, mas quero comprar Ondina e Sintram para mim; faz tanto tempo que eu quero – disse Jo, que adorava ler.
– Com meu dólar pensei em comprar uma partitura nova – disse Beth, num pequeno suspiro que só o suporte da chaleira e a vassourinha da lareira ouviram.
– Vou comprar uma linda caixa de lápis de desenho da Faber; realmente preciso deles – disse Amy decidida.
– Mamãe não falou nada sobre nosso dinheirinho, e ela não vai querer que a gente renuncie a tudo. Vamos comprar o que queremos e nos divertir um pouco. Sei que demos duro e merecemos – exclamou Jo, olhando os saltos de suas botinas com ares de grande senhor.
– Sei que eu dou duro, dando aulas para aquelas crianças terríveis quase todos os dias e sentindo tanta vontade de ficar em casa – começou Meg, retomando o tom de mágoa.
– Você não tem metade dos aborrecimentos que tenho – disse Jo. – Você ia querer ficar fechada durante horas com uma senhora de idade, nervosa e detalhista, que faz a gente correr para cima e para baixo, sempre insatisfeita e reclamando até dar vontade de gritar ou sair voando pela janela?
– É feio se queixar, mas acho que lavar louça e arrumar toda a casa é o pior trabalho do mundo. Me deixa de mau humor, e minhas mãos ficam tão duras que não consigo tocar direito por um bom tempo. – E Beth olhou suas mãos ásperas com um suspiro que, dessa vez, todas puderam ouvir.
– Duvido que alguma de vocês sofra tanto quanto eu – protestou Amy –, pois não precisam ir à escola com meninas impertinentes, que te amolam quando você não sabe a lição, riem das tuas roupas, especiam teu pai se ele não é rico e te insultam se teu nariz não é bonito.
– Se você quis dizer espezinham, fale direito e não trate papai como se fosse alguma especiaria – recomendou Jo, rindo.
– Sei muito bem o que quero dizer e você não precisa ser “satirística” sobre isso. É correto usar boas palavras e melhorar nosso vocabilário – respondeu Amy com dignidade.
– Não se biquem, meninas. Você não gostaria que tivéssemos o dinheiro que papai perdeu quando éramos pequenas, Jo? Como a gente estaria alegre e contente, sem preocupações! – disse Meg, que se lembrava de tempos melhores.
– Outro dia você falou que nos achava mais felizes que os filhos dos King, pois, apesar do dinheiro, eles vivem brigando e reclamando.
– Falei sim, Beth. Bom, imagino que somos; pois, mesmo que a gente precise trabalhar, a gente se diverte e formamos uma turminha muito da legal, como diria Jo.
– Jo usa mesmo umas gírias... – observou Amy, com um olhar de censura à figura comprida esticada no tapete. Jo se pôs imediatamente sentada, enfiou as mãos nos bolsos e começou a assobiar.
– Não faça assim, Jo, é coisa de moleque.
– É por isso mesmo que faço.
– Detesto meninas grosseiras e pouco femininas.
– Odeio sirigaitas afetadas e cheias de dedos.
– Os passarinhos em seus ninhos são bonzinhos – cantarolou Beth, a pacificadora, fazendo uma cara tão engraçada que as duas vozes estridentes se abrandaram numa risada e as “bicadas” pararam por algum tempo.
– Na verdade, meninas, vocês duas estão erradas – disse Meg, começando o sermão em seu estilo de irmã mais velha. – Você já tem idade suficiente para deixar de molecagens e se comportar melhor, Josephine. Não tinha muita importância quando você era pequena; mas, agora que está tão crescida e prende o cabelo para cima, deve lembrar que é uma senhorita.
– Eu não! E se prender o cabelo para cima me faz uma senhorita, então vou usar maria-chiquinha até os vinte anos – exclamou Jo, arrancando a redinha e sacudindo a cabeça para soltar a cabeleira castanha. – Detesto a ideia de crescer, ser a senhorita March, usar vestido comprido e andar empertigada feito uma rainha-margarida! Já é bem ruim ser menina quando gosto é de brincadeiras, trabalhos e modos de menino! Não me conformo em não ser um garoto, e agora é pior, pois morro de vontade de ir lutar com papai, mas só posso ficar em casa tricotando, feito uma velha chata. – E Jo sacudiu a meia azul-marinho até as agulhas estalarem como castanholas, e a bola de lã saiu pulando pela sala.
– Pobre Jo, que pena! Mas não tem jeito, então se contente em usar um apelido masculino e fazer o papel de irmão para nós, meninas – disse Beth, alisando a cabeça despenteada apoiada em seu colo com a mão que, mesmo que lavasse toda a louça do mundo e tirasse todo o pó do mundo, jamais perderia seu toque delicado.
– Quanto a você, Amy – continuou Meg –, é toda cheia dos detalhes e afetada demais. Seus ares agora são engraçadinhos, mas, se não tomar cuidado, vai virar uma tolinha emproada. Gosto das suas boas maneiras e o modo refinado de falar, quando não tenta ser elegante; mas suas palavras absurdas são tão ruins quanto as gírias de Jo.
– Se Joe é um moleque e Amy uma tola, o que sou eu, por favor? – perguntou Beth, pronta para partilhar do sermão.
– Você é um amor, querida, e só – respondeu Meg afetuosamente, e ninguém a contradisse, porque a “Ratinha” era a favorita da família.
Como os jovens leitores gostam de saber “como são as pessoas”, aproveitaremos agora para fazer um breve esboço das quatro irmãs, que estavam sentadas tricotando ao anoitecer enquanto a neve de dezembro caía suave lá fora e o fogo crepitava alegre ali dentro. Era uma sala velha muito confortável, apesar do tapete desbotado e dos móveis muito simples, pois um ou dois belos quadros enfeitavam as paredes, livros ocupavam os cantos, crisântemos e rosas natalinas floresciam nas janelas e reinava uma agradável atmosfera de paz doméstica.
Margareth, a mais velha das quatro, tinha dezesseis anos e era muito bonita, clara, cheinha, com olhos grandes, cabelos castanhos sedosos e abundantes, a boca delicada e mãos brancas que lhe davam muito orgulho. Jo, com quinze anos, era muito alta, magra e morena, e lembrava um potro, pois parecia nunca saber o que fazer com os braços e as pernas compridas, que viviam atrapalhando. Tinha uma boca decidida, um nariz cômico e olhos cinzentos penetrantes, que pareciam atentos a tudo e se mostravam ora ferozes, ora divertidos, ora pensativos. Os longos cabelos bastos eram sua grande beleza, mas estavam sempre presos numa redinha, para não estorvar. Os ombros arredondados, os pés e mãos grandes, assim era Jo, as roupas caindo frouxas, o ar desajeitado de menina que está virando moça e não gosta disso. Elizabeth – ou Beth, como todos a chamavam – era uma garota de treze anos, rosada, olhos brilhantes, cabelos macios, com ar encabulado, voz tímida e expressão serena que raramente se perturbava. O pai chamava-a de “Pequena Tranquilidade” e o apelido lhe caía muito bem, pois ela parecia viver num mundo feliz todo seu, só se aventurando a sair para encontrar as poucas pessoas em quem confiava e amava. Amy, embora fosse a caçula, era uma figura muito importante, pelo menos em sua própria opinião.
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