Não tendo tampo na cabeça, Beth lhe amarrou uma asseada touquinha, e, como perdera braços e pernas, ela escondeu essas deficiências envolvendo-a num lençol e reservando seu melhor leito para essa inválida crônica. Se alguém soubesse dos cuidados dispensados àquela boneca, creio que se comoveria, ainda que desse risada. Beth lhe trazia buquezinhos de flores, lia para ela, levava-a para fora para respirar ar fresco, protegida sob seu casaco, cantava canções de ninar e nunca ia para a cama sem beijar seu rosto encardido e sussurrar com meiguice “Espero que tenha uma boa noite, minha pobre querida”.

Beth tinha seus problemas como todas as outras; não sendo um anjo, mas uma menina muito humana, frequentemente “chorava um chorinho”, como dizia Jo, porque não podia tomar aulas de música nem ter um piano melhor. Amava música com tanta ternura, tentava aprender com tanta dedicação e praticava sempre com tanta paciência no instrumento velho e tilintante que realmente parecia que alguém (para não dizer tia March) deveria ajudá-la. Ninguém ajudava, porém, e ninguém via Beth enxugar as lágrimas nas teclas amareladas do piano desafinado quando estava sozinha. Cantava como uma pequena cotovia enquanto trabalhava, nunca estava cansada demais para tocar para a mãe e as meninas e dia após dia dizia esperançosa a si mesma: “Sei que algum dia vou ganhar minha partitura, se eu for boa”.

Há muitas Beths no mundo, tímidas e quietas, sentadas num canto até que alguém precise delas, vivendo para os outros com tanta boa vontade que ninguém vê os sacrifícios até que o pequeno grilo na lareira para de cricrilar, como em Dickens, e a meiga e luminosa presença se esvai, deixando atrás de si o silêncio e a sombra.

Se alguém tivesse perguntado a Amy qual era sua maior aflição na vida, ela teria respondido prontamente: “Meu nariz”. Quando ela era bebê, Jo a deixou cair sem querer num balde de carvão, e Amy insistia que aquela queda danificara seu nariz para sempre. Não era grande nem vermelho, como o da pobre “Petrea” de Bremer3; era apenas um pouco achatado e nem todos os apertões do mundo o deixariam com uma ponta aristocrática. Ninguém dava atenção a isso, afora ela mesma, e o nariz se esforçava ao máximo em crescer, mas Amy sentia profundamente a falta de um perfil grego e desenhava folhas inteiras de belos narizes para se consolar.

“A pequena Rafael”, como diziam as irmãs, tinha um visível talento para o desenho e nada a deixava mais feliz do que copiar flores, desenhar fadas ou ilustrar histórias com excêntricos espécimes artísticos. Suas professoras reclamavam que, em vez de fazer contas, ela cobria sua lousa com animais; as folhas em branco de seu atlas eram usadas para copiar mapas e de seus livros saíam esvoaçando as caricaturas mais cômicas nos momentos mais inoportunos. Ela aguentava as aulas do melhor modo que podia e conseguia escapar às reprimendas sendo um modelo de bom comportamento. Era a grande favorita entre as colegas, tendo bom espírito e dominando a venturosa arte de agradar sem esforço. Seus pequenos ares e trejeitos eram muito admirados, bem como suas habilidades, pois, além de desenhar, sabia tocar doze músicas, fazia crochê e lia francês acertando a pronúncia em dois terços das palavras. Tinha um jeitinho lamuriento de dizer “quando papai era rico, fazíamos isso e aquilo”, o qual era muito tocante, e suas palavras compridas eram consideradas “absolutamente elegantes” pelas meninas.

Amy estava no caminho certo para ficar mal acostumada, pois todos a mimavam e suas pequenas vaidades e egoísmos se desenvolviam com viço. Uma coisa, porém, reprimia sua vaidade. Ela tinha de usar as roupas da prima. Ora, a mãe de Florence não tinha sequer um pingo de gosto, e Amy sofria profundamente por ter de usar uma touca vermelha em vez de azul, saias que não lhe assentavam bem e aventais espalhafatosos que não combinavam. Tudo era bem feito, de boa qualidade e com pouco uso, mas os olhos artísticos de Amy ficavam muito aflitos, especialmente nesse inverno, pois a saia da escola era de um roxo sem graça, com bolinhas amarelas e nenhum enfeite.

– Meu único consolo – disse ela a Meg com lágrimas nos olhos – é que mamãe não dobra a barra de minha roupa quando me comporto mal, como a mãe de Maria Parks faz. Oh, céus, é uma coisa horrível, pois às vezes ela é tão má que a saia fica na altura dos joelhos e não pode ir à escola. Quando penso nesta descadência, sinto que posso muito bem aguentar meu nariz achatado e minha saia roxa com meteoritos amarelos.

Meg era a confidente e mentora de Amy e, devido a uma estranha atração dos opostos, Jo era assim com a gentil Beth. Somente para Jo a tímida menina contava seus pensamentos e, sobre sua tempestuosa irmã, Beth exercia inconscientemente mais influência do que qualquer outra pessoa na família. As duas meninas mais velhas eram muito ligadas uma à outra, mas cada uma pegou uma das menores aos seus cuidados, e cuidavam delas à sua maneira, “brincando de mãe”, como diziam, e colocavam as irmãs nos lugares das bonecas abandonadas com o instinto materno de mulherzinhas.

– Alguém tem algo para contar? Foi um dia tão desanimador que estou morrendo de vontade de me divertir um pouco – disse Meg quando se sentaram juntas para costurar naquela tarde.

– Tive um dia engraçado com a tia hoje e, como me saí bem, vou contar como foi – começou Jo, que adorava contar histórias. – Eu estava lendo aquele interminável Belsham, e de forma monótona como sempre faço, pois assim a tia logo adormece e aí posso pegar algum livro bom e ler freneticamente até ela acordar. Na verdade, também fico com sono e, antes que ela começasse a cochilar, dei um tamanho bocejo que ela me perguntou o que eu pretendia abrindo tanto a boca a ponto de engolir todo o livro de uma só vez. “Bem que eu gostaria e assim ele acabava”, falei, tentando não ser insolente. Então ela me passou um longo sermão sobre meus pecados e me disse para sentar e pensar um pouco a respeito enquanto ela “se perdia” por um momento. Ela sempre demora um pouco para se encontrar e, quando sua cabeça começou a balançar como uma dália pesada demais, tirei o Vigário de Wakerfield do meu bolso e comecei a ler, com um olho nele e o outro na tia. Assim que cheguei na parte onde todos caem n’água, me distraí e ri alto. A tia acordou e, estando com o humor melhor depois da soneca, disse-me para ler um pouco e lhe mostrar qual era a obra frívola que eu preferia ao valioso e instrutivo Belsham. Dei o melhor de mim e ela gostou, embora tenha dito apenas: “Não entendo do que se trata.