Navegar é preciso
Sumário
Introdução
Sinais usados na transcrição do texto
Cap.1: Não há sono no mundo
Cap.2: O universo não é meu: sou eu
Cap.3: Não sei o que é a Natureza: canto-a
Cap.4: O marinheiro
Cap.5: Isso é belo demais para que esteja perto da morte
Cap.6: Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio
Cap.7: Deus é a alma de tudo
Epílogo
Apêndice
Agradecimentos finais
Todo conteúdo é de autoria de Fernando Pessoa e se encontra em domínio público.
Pequenas adaptações foram feitas na gramática, observando as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.
Organização e comentários: Rafael Arrais.
Esta é uma edição de Textos para Reflexão
Para conhecer outras obras, visite o blog: textosparareflexao.blogspot.com
Design e diagramação: Ayon
Arquivo original ePub validado em validator.idpf.org
Copyright © 2013 por Rafael Arrais (eBook para eReaders v1.1)
Todos os direitos reservados (apenas para os comentários, o conto do epílogo e o poema ao final)
Dedicado aos transeuntes da Rua dos Douradores...
Introdução
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
“Navegar é preciso; viver não é preciso.”
Quero para mim o espírito desta frase, transformada
A forma para a casar com o que eu sou: Viver não
É necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande, ainda que para isso
Tenha de ser o meu corpo e a minha alma a lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso
Tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho
Na essência anímica do meu sangue o propósito
Impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
Para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.
Navegar é preciso, Fernando Pessoa
“Sua pátria é o mundo”
Além de interpretar seus diversos heterônimos, Pessoa era também mestre em interpretar palavras e simbolismos, de modo que muitas de suas poesias têm vários graus de interpretação – geralmente (mas não necessariamente) um mais profundo do que o outro, como nesse caso.
Esta é a origem da frase citada no poema: “Navigare necesse; vivere non est necesse” - latim, frase de Pompeu, general romano, 106-48 a.C., dita aos marinheiros, amedrontados, que recusavam viajar durante a guerra (cf. Plutarco, em “Vida de Pompeu”).
A primeira interpretação que muitos chegam, principalmente em focando somente a frase e não o contexto do poema, é a de que navegar, explorar o mundo ou até mesmo ser um guerreiro disciplinado é mais importante do que viver uma vida rotineira, sedentária e monótona.
A segunda interpretação envolve um olhar das entrelinhas da etimologia do jogo de palavras nesta frase. Nesse caso, navegar é preciso no sentido de ser uma atividade, uma ciência precisa; Já viver não é preciso no sentido de que a vida envolve não somente o lado racional, como também o emocional e o espiritual – viver não é nem nunca será, portanto, uma atividade precisa. Viver é deliciosamente ou terrivelmente impreciso, dependendo dos olhos de quem vê.
A interpretação derradeira e mais profunda (na minha opinião, é claro) no entanto envolve parte do conceito das interpretações anteriores, com algo a mais. Pessoa quis dizer que para engrandecer sua pátria e colaborar com a evolução da humanidade, não lhe é necessário viver a vida egoisticamente como se esta fosse somente sua, e sim dedicar a vida – ou “perdê-la” – em prol da humanidade como um todo (sua pátria é o mundo, e não somente Portugal).
Mas ainda podemos ir um pouco mais além: a vida continua sendo imprecisa, mas navegar pelo oceano do mundo é mais necessário do que viver ancorado a sua aldeia (e dogma) local. O misticismo de sua Raça (com “R” maiúsculo) não é o misticismo dos portugueses ou dos homens de “raça branca” (na verdade raças humanas não existem, apenas a espécie homo sapiens), mas o misticismo dos grandes sábios – esses que, como desejava Pessoa um dia o ser, viveram não para si, mas para toda a sua Raça.
Este livro pretende ser apenas uma coletânea de textos místicos do grande poeta português. Como não pretendo estender muito este prefácio, que os separa das palavras mágicas de Pessoa, direi mais somente no epílogo, onde teremos também uma breve conversa com uma das nereidas...
Quem foi Fernando Pessoa?
Quero crer que a maioria de vocês já faz ideia, então se seguirá somente um breve resumo:
Fernando António Nogueira Pessoa (Lisboa, 13 de Junho de 1888 — Lisboa, 30 de Novembro de 1935), mais conhecido como Fernando Pessoa, foi um poeta, filósofo e escritor português.
É considerado um dos maiores poetas da Língua Portuguesa, e da Literatura Universal, muitas vezes comparado com Luís de Camões. O crítico literário Harold Bloom considerou a sua obra um “legado da língua portuguesa ao mundo” (em entrevista a revista Época, 03/02/03).
Por ter sido educado na África do Sul, para onde foi aos seis anos em virtude do casamento de sua mãe, Pessoa aprendeu perfeitamente o inglês, língua em que escreveu poesia e prosa desde a adolescência. Das quatro obras que publicou em vida, três são na língua inglesa. Fernando Pessoa traduziu várias obras inglesas para português e obras portuguesas para inglês.
Ao longo da vida trabalhou em várias firmas comerciais de Lisboa como correspondente de língua inglesa e francesa. Foi também empresário, editor, crítico literário, jornalista, comentador político, tradutor, inventor, publicitário, astrólogo e místico; ao mesmo tempo em que produzia a sua obra literária em verso e em prosa. Como poeta, desdobrou-se em múltiplas personalidades conhecidas como heterônimos, objeto da maior parte dos estudos sobre sua vida e sua obra:
“Tive sempre, desde criança, a necessidade de aumentar o mundo com personalidades fictícias, sonhos meus rigorosamente construídos, visionados com clareza fotográfica, compreendidos por dentro de suas almas. Não tinha eu mais que cinco anos, e, criança isolada e não desejando senão assim estar, já me acompanhavam algumas figuras de meus sonhos – um capitão Thibeaut, um Chevalier de Pás – e outros que já me esqueceram, e cujo esquecimento, como a imperfeita lembrança daqueles, é uma das grandes saudades da minha vida.
[...] Esta tendência não passou com a infância, desenvolveu-se na adolescência, radicou-se como crescimento dela, tornou-se finalmente a forma natural de meu espírito. Hoje já não tenho personalidade: quanto em mim haja de humano, eu o dividi entre os autores vários de cuja obra sou o executor. Sou hoje o ponto de reunião de uma pequena humanidade só minha.
[...] Médium, assim, de mim mesmo, todavia subsisto. Sou porém menos real que os outros, menos coeso, menos pessoa, eminentemente influenciável por eles todos”.
Carta ao casal Monteiro (trechos), Fernando Pessoa
Nesta coletânea destacam-se os heterônimos Alberto Caeiro (Cap.3) e Ricardo Reis (Cap.6), que são poetas, e o “semi-heterônimo” (segundo o próprio Pessoa) Bernardo Soares, que escreve em prosa desassossegada (Cap.2 e Cap.7). Os demais capítulos são compostos por textos do próprio Fernando Pessoa. E, sim, eu sei que a última frase soou totalmente sem nexo.
O misticismo em Pessoa
Fernando Pessoa interessava-se pelo ocultismo e pelo misticismo, com destaque para a Maçonaria e a Rosa-Cruz (embora não lhe seja confirmada qualquer filiação concreta em Loja ou Fraternidade dessas escolas de pensamento), havendo inclusive defendido publicamente as organizações iniciáticas no Diário de Lisboa (4 de Fevereiro de 1935), contra ataques por parte da ditadura do Estado Novo. O seu poema hermético mais conhecido e apreciado entre os estudantes de esoterismo intitula-se “No Túmulo de Christian Rosenkreutz”. Tinha o hábito de fazer consultas astrológicas para si mesmo (de acordo com a sua certidão de nascimento, nasceu às 15h20, tinha ascendente Escorpião e o Sol em Gêmeos). Realizou mais de mil horóscopos.
Apreciava também o trabalho do famoso ocultista britânico Aleister Crowley, tendo inclusive traduzido o poema “Hino a Pã”. Certa vez, lendo uma publicação inglesa de Crowley, encontrou erros no horóscopo e escreveu-lhe para o corrigir. Os seus conhecimentos de astrologia impressionaram Crowley e, como este gostava de viagens, foi a Portugal conhecer o poeta. Acompanhou-o a maga alemã Miss Hanni Larissa Jaeger.
1 comment