Entretanto, em 1922, publicou-se na França uma tradução de poemas de Tagore intitulada precisamente ''A Fugitiva''. Diante disso, para evitar mal-entendidos, Proust desistiu do título e o romance apareceu postumamente como Albertine disparue (''Albertina Desaparecida''). Ainda hoje se discute qual título caberia melhor ao livro; e assim, atendendo ao caráter rigorosamente simétrico de Em Busca do Tempo Perdido, e considerando já não haver motivos para evitar a identidade de título com uma coletânea da qual ninguém se lembraria não fosse esse episódio, adotamos ''A Fugitiva'', que certamente Marcel Proust preferia e teria escolhido com o tempo se tivesse vivido o suficiente para ver toda a obra publicada em livro.
Conclusão: critérios desta tradução
Não é tarefa tranqüila traduzir uma obra de vulto como a de Proust. Ainda mais quando já existem outras em português. Mas não há dúvida de que é uma aventura intelectual largamente compensadora, um trabalho altamente gratificante. Desde que se adotem critérios seguros e sejam obedecidas o mais fielmente possível as peculiaridades essenciais do autor. No caso, a fluência musical da frase, a por vezes enorme extensão desta e dos parágrafos, sem dividi-los em blocos retalhados, o movimento ondulatório dos períodos, etc. E mais, tratando-se de uma edição brasileira, construir frases e períodos à nossa maneira, sem lusitanismos nem regionalismo de qualquer espécie.
Devemos, todavia, esclarecer o leitor quanto aos critérios adotados para traduzir os títulos dos romances do ciclo, sobretudo devido ao caráter de simetria que oferecem.
Em dois casos, a transposição é literal e não sofre problemas: Sodome et Gomorrhe é
'Sodoma e Gomorra', e La Prisonniere é 'A Prisioneira' . Em À L'ombre des jeunes-filles en fleurs preferimos verter jeunes-filles para moças, vocábulo de uso corrente no Brasil. Em Le temps retrouvé, julgamos mais acertado o título 'A Sombra das Moças em Flor'.
MARCEL PROUST
EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO
NO CAMINHO DE SWANN
Ao Sr. Calmette como testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento.
PRIMEIRA PARTE
Combray
Durante muito tempo, deitava-me cedo. Às vezes, mal apagada a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: "Vou dormir". E, meia hora depois, a idéia de que já era tempo de conciliar o sono me despertava: queria deixar o livro que julgava ainda ter nas mãos e assoprar a vela; dormindo, não havia deixado de refletir sobre o que acabara de ler, porém tais reflexões haviam tomado um aspecto um tanto singular; parecia-me que era de mim mesmo que o livro falava: uma igreja, um quarteto, a rivalidade de Francisco I e Carlos V.
Essa crença sobrevivia por alguns segundos ao meu despertar; não ofendia a razão, mas pesava como escamas sobre os olhos, impedindo-os de perceber que a vela já não estava acesa. Depois, principiava a me parecer ininteligível, como, após a metempsicose, as idéias de uma existência anterior; o assunto do livro se desligava de mim, eu ficava livre para me adaptar ou não a ele; logo recobrava a vista e me surpreendia bastante por estar rodeado de uma obscuridade, suave e repousante para os olhos, porém ainda mais talvez para o espírito, ao qual surgia como uma coisa sem causa, incompreensível, como algo verdadeiramente obscuro. Perguntava-me que horas poderiam ser; ouvia o silvo dos trens que, mais ou menos afastado, como um canto de pássaro na floresta, assinalando as distâncias, me informava sobre a extensão da campina deserta onde o viajante se apressa em direção à próxima parada: o caminho que ele segue vai lhe ficar gravado na lembrança pela excitação de conhecer novos lugares, praticar atos inusitados, pela conversação recente e as despedidas sob a lâmpada estranha que o seguem ainda no silêncio da noite, e pela doçura próxima do regresso.
Apoiava brandamente as faces contra as belas faces do travesseiro que, cheias e frescas, são como os rostos da nossa infância. Riscava um fósforo para ver o relógio. Quase meia-noite. É
o momento em que o enfermo, que teve de viajar e ir dormir num hotel desconhecido, acordado por uma crise, se alegra ao distinguir debaixo da porta um raio de luz. Felicidade! Já é dia! Daqui a pouco os criados vão se levantar, poderá tocar a campainha, virão prestar-lhe socorro. A esperança de ser aliviado lhe dá coragem para suportar o sofrimento. Ainda agora pensou ouvir passos; os passos se aproximam e logo se afastam. E o fio de luz que estava sob a porta desapareceu. É meia-noite; acabam de apagar o gás; o último criado já se retirou e é preciso ficar a noite inteira sofrendo sem remédio.
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