Vale lembrar, já que chegamos tão longe, que o editor das duas edições, a de 1979 e a de 2008, é o mesmo: Pedro Paulo de Sena Madureira, quem, pela quantidade e qualidade deobras dela por ele editado, é, por excelência, o mais prolíficoeditor de Virginia Woolf no Brasil.

Virginia Woolf estava com 37 anos quando Night and Day foi publicado, em 1919. O romance começa com a filhada casa servindo chá aos mais velhos. A personagem que se segue ao longo é Katharine Hilbery,“cuja mocidade é absorvida pelo passado, freqüentemente sentindo-se como que pertencendo ao mundo dos mortos, como se fosse um fantasma entre os vivos”, segundo Hermione Lee, autora damais extensa biografia de Woolf. E a biógrafa escreveu: “Virginia satirizou relacionamentos familiares, fazendo umaanálise da tirania e da hipocrisia dos pais vitorianos.Virginiafaz entender que a possibilidade de escrever sobre o passadode modo pessoal e não-oficial resulta em arte no seu próprio direito. Uma arte extraída das reminiscências.”

Noite e Dia é um romance na linhagem da tradição inglesa de grandes novelistas como Jane Austen,Charlotte Brontëe George Eliot. Os personagens são puro deleite para o lei-tor. A Sra. Hilbery, mãe de Katharine, a heroína, foi inspirada em uma tia torta de Virginia, de muito convívio em seusanos de menina e moça (e mesmo depois, já casada), a tiaAnny Thackeray. O primeiro casamento de Leslie Stephen,pai de Virginia,foi com Minny,a filha mais nova do autor deVanity Fair (Feira de Vaidades). Mesmo depois de viúvo ecasado em segunda núpcias com Julia Duckworth, tambémviúva e com quem terá quatro filhos,um deles Virginia.também viúva, todos continuaram muito ligados à cunhada de Leslie, tia Anny. Muito animada e presente, ela própria umaromancista, Anny Thackeray foi uma grande influência emVirginia e serviu de inspiração para a personagem da Sra.Hilbery em Noite e Dia. Segundo Quentin Bell, o romancepode ser lido como um tributo à tia Anny. E Quentin contaem sua biografia da tia Virginia Woolf: “A Sra. Hilbery é umretrato bastante correto de tia Anny. Ela própria era umaromancista de obras tênues e encantadoras em que a narrativa tendia a se perder.Vaga,errática,insinuante.Um de seustalentos consistia em provocar as pessoas com seu otimismojuvenil, vigoroso e animado.”

Como num romance “clássico”,em Noite e Dia,Virginia Woolf atira o leitor dentro de uma sociedade, seus costumes, sua linguagem, num jogo de poder e contestação,através do amor entre Katharine Hilbery e Ralph Denham -advogado, intelectual e burguês. E o enredo se desenrola num estilo ao mesmo tempo sólido e etéreo.

Noite e Dia é um belo e elegante romance de leitura prazerosa. E a tradução brasileira de Raul de Sá Barbosa é uma obra-prima. Em sua resenha do livro, publicada no CadernoB do Jornal do Brasil em 11 de agosto de 1979, escreveuGastão de Holanda: “Conhecendo o inglês profundamente,Raul de Sá Barbosa [com Noite e Dia] pode ombrear-se aostradutores brasileiros que desempenharam papel histórico em nossa literatura.”E cita nomes:Cecília Meireles,Manuel Bandeira, Mário Quintana, Otávio Mendes Cajado, CarlosDrummond de Andrade, Onestaldo de Pennafort, Paulo Rónai e outros. E dá um exemplo: ‘It was past eleven and the clocks had come into their reign...’ “[Raul de Sá Barbosa] encontrou uma perfeita equivalência entre ‘into the reign’ e ‘começava a reinação dos relógios’.”

Sim, Noite e Dia é um romance em que Virginia Woolf experimenta o tradicional. E, indubitavelmente, quem sai ganhando é o leitor. Mas Virginia, ela mesma, não era de deitar sobre os louros. Sua próxima aventura será modernista. Em 1922, ano da publicação de Ulysses de Joyce e da Semana de Arte Moderna em São Paulo, Woolf lançará, e agora por sua própria editora, O Quarto de Jacob, seu primeiro romance decididamente modernista.

Antonio Bivar
Membro do The Virginia Woolf
Society of Great Britain

1

Era uma tarde de domingo em outubro e, como muitas jovens damas da sua classe, Katharine Hilbery servia o chá.Talvez uma quinta parte da sua mente estivesse ocupada nisso; o restante saltava por cima da frágil barreira de dia que seinterpunha entre a manhã de segunda-feira e esse amenomomento, e brincava com as coisas que a gente faz espontânea e normalmente no curso do dia. Embora calada, via-se evidentemente senhora da situação, que lhe era familiar, einclinava-se a deixar que seguisse seu curso (pela centésimavez?) sem ter de engajar por isso qualquer das suas faculdadesociosas. Um simples olhar bastaria para mostrar que Mrs.Hilbery era tão rica dos dons que fazem o sucesso dos chás degente importante de certa idade, que a rigor podia dispensar o auxílio da filha,desde que alguém se encarregasse por ela doaborrecido trabalho das xícaras e do pão com manteiga.

Considerando que o pequeno grupo estava assentado em torno da mesa há menos de vinte minutos, a animação estampada nos seus rostos e a bulha que produziam coletivamente faziam honra à anfitriã. De repente deu na cabeçade Katharine que, se alguém abrisse a porta naquele momento,poderia pensar que estivessem a divertir-se.Pensaria:“Que casa encantadora!” – e, instintivamente, riu, dizendo qualquer coisa presumivelmente para aumentar o burburinho, em benefício do bom nome da casa – uma vez que elaprópria não sentia qualquer animação. Nesse momento exato, e para grande divertimento dela, a porta se escancarou, ede fato um rapaz entrou na sala. Katharine perguntou mentalmente ao saudá-lo: “Vamos, acha que estamos nos divertindo a valer?”

– Mr. Denham, mamãe – disse em voz alta, pois viu quea mãe esquecera o nome dele.

O fato foi percebido pelo próprio Mr. Denham, e agravou o constrangimento que cerca inevitavelmente a entrada de um estranho numa sala cheia de gente inteiramenteà vontade, e todos embarcaram em frases simultâneas.