Ao mesmo tempo, pareceu a Mr. Denham como se mil portasacolchoadas se tivessem fechado entre ele e a rua. Uma garoa fina, espécie de essência diáfana do nevoeiro, era visívelacima do vasto e quase vazio espaço da sala-de-estar, todode prata, onde as velas se agrupavam na mesa de chá, avermelhada à luz do fogo. Com os ônibus e os táxis correndolhe ainda pela cabeça, com o corpo ainda trepidante da rápida caminhada a pé pela rua, a desviar-se do tráfego e dospedestres, o salão lhe parecia deveras remoto e estático. Eos rostos dos velhos e velhas ganhavam suavidade, a uma certa distância uns dos outros, e irradiavam um viço próprio, devido talvez ao fato de que o ar ali estava pesado dosgrãos azuis da névoa. Mr. Denham entrara no momentoem que Mr. Fortescue, o eminente romancista, chegava aomeio de uma interminável sentença. Ele a manteve em suspenso até que o recém-chegado se acomodasse, e Mrs.Hilbery juntou habilmente as duas pontas cortadas, inclinando-se para ele e dizendo:
– Bom, o que faria o senhor se fosse casado com um engenheiro e tivesse de viver em Manchester, Mr. Denham?
– Certamente ela poderia estudar persa – interrompeu um gentleman velho e magro. – Não haverá algum professoraposentado ou homem de letras em Manchester com quemela pudesse estudar persa?
– Uma das nossas primas casou-se e foi viver em Manchester – explicou Katharine. Mr. Denham murmurou qualquer coisa entre os dentes, que era, aliás, tudo que seesperava dele, e o romancista continuou do ponto em que parara. Mr. Denham recriminou-se severamente por havertrocado a liberdade da rua por esse salão sofisticado em que,entre outras coisas desagradáveis, certamente não poderiafazer figura. Olhou em torno e viu que, a não ser Katharine,todos os presentes contavam mais de quarenta anos. O único consolo era ser Mr. Fortescue uma celebridade de certo peso, de maneira que, para o futuro, seria agradável tê-laconhecido.
– Você já esteve alguma vez em Manchester? – perguntou a Katharine.
– Nunca – respondeu ela.
– Por que objeta assim tão vivamente?
Katharine mexeu seu chá, e pareceu especular, foi o que Denham pensou,sobre o dever de encher a xícara de alguém;na realidade, ocupava-se em pensar como manter esse estranho rapaz em harmonia com o resto.Observou que ele apertava a xícara,a tal ponto que a fina porcelana corria o risco deceder. Era visível que estava nervoso, tanto quanto era de esperar que um moço ossudo com o rosto levemente avermelhado pelo vento, e o cabelo ligeiramente revolto, ficassenervoso numa reunião desse tipo. Além disso, era provávelque ele não gostasse dessa espécie de coisa, e tivesse vindopor pura curiosidade ou porque seu pai o tivesse convidado de qualquer maneira, não combinava bem com o resto.
Imaginaria que não há ninguém com quem falar em Manchester – replicou ela, a esmo. Mr. Fortescue observava-a havia um minuto ou dois, como os romancistas costumam fazer, e a esse reparo sorriu, fazendo disso o tema de uma pequena especulação mais a fundo:
– A despeito de uma ligeira tendência para o exagero,Katharine decididamente acertou em cheio – disse. Recostando-se na sua cadeira, com os olhos opacos, contemplativos, postos no teto e as pontas dos dedos apertadasumas contra as outras, descreveu primeiro os horrores dasruas de Manchester, depois as desertas, imensas charnecasdos arredores da cidade, por fim a insignificante casinholaem que a moça teria que viver, e os professores, e os miseráveis estudantes, devotados às mais cansativas obras dos nossos dramaturgos mais jovens que iriam visitá-la, e como suaaparência mudaria aos poucos, e como teria ela de voar devolta a Londres, e como Katharine teria de conduzi-la de um lado para outro, como a gente conduz um cão mais azougado numa corrente, a desfilar diante das vitrines dosaçougueiros, pobre queridinha.
– Oh, Mr. Fortescue – exclamou Mrs. Hilbery quando ele terminou. – Escrevi-lhe ainda hoje dizendo como ainvejava! Pensava nos grandes jardins e nas boas senhoras demitenes, que só lêem o Spectator, e no rapé e nas velas. Seráque tudo isso desapareceu? Disse-lhe que encontraria lá todas as coisas boas de Londres sem as horríveis ruas que tan-to deprimem a gente.
– Não esquecendo a universidade – disse o velho senhormagro, que insistira antes na existência de gente fluente empersa. – Eu sei que há charnecas por lá porque li sobre issonum livro, um dia desses – disse Katharine.
– Fico horrorizado e pasmo também com a ignorânciada minha família – observou Mr.Hilbery.Tratava-se de umsenhor de idade, com um par de olhos ovais, cor de avelã,excessivamente brilhantes para um velho, e que aliviavam um pouco os pesados traços do rosto. Brincava incessantemente com uma pequena pedra verde que levava presa àcorrente do relógio, exibindo assim dedos longos e muitosensíveis, e tinha o hábito de mover a cabeça para um lado epara outro muito depressa sem alterar por isso a posição docorpo, bem fornido e avantajado, de modo que dava a impressão de estar a alimentar-se continuamente com matérias de divertimento e reflexão com o mínimo dispêndiopossível de energia. A gente imaginaria que ele passara daidade em que as ambições são pessoais, ou que as tivesse satisfeito tanto quanto seria capaz de fazer, e agora empregava sua considerável perspicácia mais em observar e refletirdo que em atingir um resultado qualquer.
Katharine, decidiu Denham, enquanto Mr.
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