Nunca falam a sério com os inferiores. Ou por se encontrarem,essa noite,em terreno neutro,ouporque a naturalidade com que Denham usava um velho casaco cinzento, dando a seu porte uma graça que lhe faltava com a roupa convencional, o certo é que Katharine nãosentia nenhum impulso de considerá-la um estranho aomeio em que ela mesma vivia.
– Em que sentido seria você meu inferior? – perguntou,olhando-o com gravidade, como se honestamente procurasse o sentido do que dissera. Esse olhar deu-lhe grande prazer. Pela primeira vez sentiu-se em perfeitos termos deigualdade com uma mulher que queria que pensasse bemdele, embora fosse incapaz de explicar por que isso lhe importava tanto. Talvez, afinal de contas, apenas quisesse teralguma coisa dela para levar consigo para casa,a fim de pensar a respeito. Mas não teria ocasião de aproveitar-se dessa vantagem.
– Acho que não entendi o que quis dizer – repetiu Katharine, e foi obrigada a interromper-se para atender alguém que queria vender-lhe uma entrada para a ópera com desconto. Na verdade, a atmosfera da reunião era agora pouco propícia a conversas isoladas. A festa ficara mais livre e hilariante, gente que mal se conhecia usava primeiros nomescom aparente cordialidade, e atingiu-se aquele clima de alegre tolerância e confraternização geral que, na Inglaterra, osseres humanos apenas alcançam depois de ficarem sentadosjuntos por três ou mais horas. Após o que, o primeiro ventofrio na rua os congela no isolamento outra vez. Capotes estavam sendo atirados aos ombros, chapéus enfiados rapidamente nas cabeças. E Denham passa pela mortificação dever o ridículo Rodney ajudando Katharine a aprontar-se.Não era costume nestas reuniões dizer adeus nem, necessariamente, cumprimentar de cabeça aqueles com quem seconversara. Mesmo assim, Denham sentiu-se desapontadopela maneira como Katharine se separou dele, sem mesmoprocurar completar o que estava dizendo. Saiu com Rodney.
5
Denham não tinha a intenção consciente de seguirKatharine à saída, mas, vendo-a partir, pegou do chapéu edesceu mais rapidamente as escadas do que o teria feito se Katharine não estivera à frente dele. Alcançou um amigo,por nome Harry Sandys, que ia na mesma direção, e caminharam juntos uns poucos passos, atrás de Katharine eRodney.
A noite estava muito serena, e em noites dessas, quando o tráfego se reduz a um fio, o pedestre toma conhecimento da lua na calçada, como se as cortinas do céu tivessem sido corridas,e o firmamento se mostrasse nu como se mostra no campo. O ar estava fresco e macio, e as pessoas que tinham ficado sentadas falando acharam agradável andar um poucoantes de parar para esperar um ônibus ou de encontrar luz outra vez, numa estação de metrô. Sandys, que era um advogado de inclinações filosóficas, tirou o cachimbo, acendeu-o, murmurou “hum” e “ha” e ficou calado. O par à frente deles manteve sua distância com regularidade. Parecia,tanto quanto Denham podia julgar pela maneira como se voltavam um para o outro, que conversavam sem interrupção. Observou que, quando um passante, vindo em direçãooposta, os forçava a se separarem, eles se reuniam outra vezlogo depois. Sem ter a intenção de vigiá-los, nunca perdiade vista inteiramente a écharpe amarela que Katharine levava enrolada na cabeça,ou o sobretudo claro que fazia Rodneydestacar-se pela elegância no meio da multidão. Supôs, no Strand, que se separariam, mas, ao invés disso, atravessarama rua e desceram por uma das passagens estreitas que levam,através de velhos becos, até o rio. Em meio ao tropel dopovo nos grandes cruzamentos, Rodney parecera simplesmente escoltar Katharine, mas agora, quando os transeuntesrareavam, e as pisadas do par podiam ser distintamente ouvidas no silêncio, Denham não pôde deixar de figurar-se uma certa mudança na conversação deles. Os efeitos de luz e sombra, que pareciam aumentar-lhes a estatura, fazia-osmisteriosos e significativos, de modo que Denham não alimentava qualquer sentimento de irritação com respeito aKatharine, mas, ao contrário, uma espécie de aquiescênciameio sonhadora com o curso do mundo. Sim, ela sonhava, ela fazia muito bem em sonhar com... – mas Sandys se pusera de súbito a falar. Era um homem solitário que fizeraseus amigos no colégio e que sempre se dirigia a eles como se fossem ainda estudantes a discutir no seu quarto, embora,em alguns casos, muitos meses se tivessem passado entre aúltima sentença e a presente. O método era um tanto singular, mas repousante, pois fazia tabula rasa de todos os acidentes da vida humana e cobria abismos sem fundo com umas poucas, simples, palavras.
Nessa ocasião, ele começou, enquanto esperavam porum minuto no limite do Strand:
– Disseram-me que Bennett abandonou a sua teoria daverdade.
Denham retrucou com uma resposta qualquer, apropriada, e o outro continuou, explicando como fora tomada aquela decisão e que mudanças se poderiam esperar na filosofiaque ambos aceitavam. Enquanto isso, Katharine e Rodneyganharam distância, e Denham conservou apenas, se essa é aexpressão verdadeira para uma ação involuntária, uma pontada sua atenção nos dois, enquanto com o resto da sua inteligência procurava compreender o que Sandys dizia.
Ao passarem pelos becos falando assim, Sandys pousou aponta de sua bengala numa das pedras que formavam um arcoroído pelo tempo e bateu meditativamente duas ou três pancadas nela a fim de ilustrar algo muito obscuro sobre a complexa natureza da apreensão que se tem dos fatos. Durante apausa de que precisou para isso, Katharine e Rodney dobra-ram a esquina e desapareceram. Por um momento, Denhamestacou involuntariamente no que estava dizendo,e continuoua sentença com um sentimento de haver perdido algo.
Sem saber que estavam sendo observados, Katharine e Rodney chegaram ao Embankment.
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