– Suponho que todos leram Webster.

– Mas você vê nisso uma prova de inteligência? Eu li Webster, li Ben Jonson, mas não me julgo inteligente. Nãoexatamente, quer dizer.

– Eu acho que você deve ser muito inteligente – disse Katharine.

– Por quê? Por que dirijo um escritório?

– Não estava pensando nisso. Pensava em como você vive só neste quarto e dá festas.Mary refletiu por um segundo.

– Isso significa, principalmente, a capacidade de ser desagradável com a própria família, acho eu. Tenho isso,talvez. Não quis mais viver em casa, e disse a meu pai. Ele não gostou... Mas afinal, tenho uma irmã, e você não tem,não é?

– Não. Não tenho irmãs.

– Você está escrevendo uma vida de seu avô? – prosseguiu Mary.Katharine viu-se,de repente,confrontada por um pensamento familiar de que desejava escapar. Respondeu:

– Sim, estou ajudando minha mãe – mas de tal maneiraque Mary se sentiu perplexa e posta de volta no exato lugarque ocupava no início da conversa entre elas. Parecia-lheque Katharine dispunha de um curioso poder de se aproximar e recuar, o que lançava emoções alternadas através delamais depressa do que de hábito, mantendo-a em posição dealerta e curiosidade. Desejando classificá-la, Mary pespegou-lhe o termo conveniente de “egoísta”.“É uma egoísta”, disse consigo mesma. E armazenou apalavra, para dizê-la a Ralph um dia, quando (como iriacertamente acontecer) estivessem discutindo Miss Hilbery.

– Meu Deus, que confusão haverá amanhã de manhã! exclamou Katharine. – Espero que não durma neste cômodo, Miss Datchet.

Mary riu.

– De que se ri? – perguntou Katharine.

– Não lhe direi.

– Deixe-me adivinhar. Está rindo porque pensou que eumudei de assunto?

– Não.

– Porque pensa...

– Se quer saber, estava rindo da maneira como você disse“Miss Datchet”.

– Mary, então. Mary, Mary, Mary.

E, ao falar assim, Katharine puxou a cortina para trás,para esconder, talvez, o momentâneo rubor de prazer quecausa o fato de se estar perceptivamente mais próximo de outra pessoa.

– Mary Datchet – disse Mary. – Temo que não seja um nome tão grandioso como Katharine Hilbery.

As duas olharam para fora da janela, primeiro para adura lua de prata, estática em meio à corrida de nuvenzinhas cinza-azuis, depois, mais baixo, por sobre os telhadosde Londres, com as suas chaminés inteiriçadas e, imediatamente abaixo delas, para o piso da rua, vazio e lavado deluar, no qual cada junta de pedra se desenhava nitidamente.Mary viu, então, que Katharine levantava de novo os olhospara a lua, com uma expressão contemplativa, como secomparasse aquela lua com as luas de outras noites, entesouradas na memória. Alguém na sala, por detrás delas, fezuma pilhéria sobre ouvir estrelas, o que lhes tirou o prazerdo que faziam, e elas olharam de novo para dentro da sala.

Ralph que esperava por esse momento, imediatamente produziu sua frase.

– Pergunto-me, Miss Hilbery, se se lembrou de pôr vidro naquele quadro? – sua voz mostrava que a questão fora preparada.

Oh, seu idiota! – exclamou Mary, e quase o fez em voz alta, sentindo que Ralph dissera algo muito estúpido.É assim que, depois de três aulas de latim, a gente corrige um colega cuja ciência não inclui o ablativo de mensa.

Quadro? Que quadro? – perguntou Katharine. – Oh,em casa, você quer dizer, aquela tarde de domingo. Foiquando estava Mr. Fortescue? Sim, penso que sim.

Os três ficaram por um momento constrangidos e calados, e então Mary os deixou a fim de vigiar o manuseio do grande bule de café. Apesar de toda a sua boaeducação, guardava a ansiedade dos que são donos deporcelana.

Ralph não achou mais nada para dizer. Mas fora possível arrancar-lhe a máscara de carne, e ficaria patente que toda a sua força de vontade concentrava-se num único objetivo – que Miss Hilbery o obedecesse. Queria apenas que ela ficasse onde estava, até que, por meios ainda não muito claros, conseguisse despertar-lhe o interesse. Esses estados mentais se transmitem, freqüentemente, sem necessidade de linguagem, e era evidente a Katharine que esse rapaz fixava o pensamento nela. Instantaneamente recordou sua primeira impressão dele, e viu-se de novo a exibir-lhe as relíquias da família. Reverteu, então, ao estado de espírito em que se achava quando ele a deixara,naquele domingo. Supunha que a julgara com severidade.Mas se esse era o caso, então cabia-lhe a responsabilidade pela conversação, e não a ela. Mas submeteu-se, a ponto de ficar inteiramente imóvel, com os olhos fixos na parede em frente, os lábios quase fechados, embora o desejo de rir fizesse-os tremer um pouco.

– Você sabe os nomes das estrelas, imagino – disse Denham, e pelo tom da sua voz alguém poderia pensar quecensurava a Katharine o conhecimento que lhe atribuía.

Ela manteve a voz neutra com alguma dificuldade.

– Sei como achar a estrela polar, se me perder.

– Não posso crer que isso lhe aconteça com freqüência.

– Não. Nada de interessante jamais me acontece – dis-se ela.

– Penso que adotou o sistema de dizer coisas desagradáveis, Miss Hilbery – forçou ele, indo mais longe do quedesejava. – Suponho que seja uma das características da suaclasse.