Ora, a pobre moça no andar de cima ficou quase ensandecida com a cantoria, os gritos e as terríveis blasfêmias que lhe chegavam de baixo, pois dizem que as palavras usadas por Hugo Baskerville, quando embriagado, eram tais que podiam arruinar o homem que as proferia. Por fim, na tensão de seu medo, ela fez aquilo que poderia ter intimidado o mais corajoso e ágil dos homens, pois, com ajuda da hera que cobria (e ainda cobre) a parede sul, desceu pendurando-se no beiral, e rumou para casa através da charneca, três léguas separando o Solar da fazenda de seu pai.

Ocorreu que pouco depois Hugo deixou seus convidados para levar comida e bebida — com outras coisas piores, talvez — à sua cativa, e descobriu que a gaiola estava vazia e a ave fugira. Então, ao que parece, ficou como que endemoniado, pois, correndo escada abaixo para a sala de jantar, saltou sobre a grande mesa, jarras e travessas voando diante de si, e gritou diante de todo o grupo que, se conseguisse alcançar a moça, entregaria seu corpo e sua alma às Forças do Mal naquela noite mesmo. E, enquanto os pândegos se horrorizavam com a fúria do homem, um mais perverso, ou talvez mais bêbado, gritou que deviam pôr os cães atrás dela. Diante disso Hugo saiu correndo da casa, gritando para seus cavalariços que selassem sua égua e soltassem a matilha. E, dando aos cães um lenço da donzela, atiçou-os, fazendo-os sair em grande velocidade pela charneca enluarada.

Ora, por algum tempo os pândegos permaneceram boquiabertos, incapazes de compreender tudo o que fora feito em tamanha pressa. Mas logo seus espíritos confusos tomaram consciência do ato que estava prestes a ter lugar nas charnecas. Fez-se então um grande alvoroço, alguns pedindo suas pistolas, outros seus cavalos, outros ainda uma garrafa de vinho. Mas por fim algum juízo retornou às suas mentes desvairadas, e todos eles, treze no total, montaram seus cavalos e iniciaram a perseguição. Sob a luz da lua, cavalgaram rapidamente ombro a ombro, fazendo o caminho que a donzela devia ter tomado se quisesse chegar à sua casa.

Haviam percorrido dois ou três quilômetros quando passaram por um dos pastores da noite nas charnecas e lhe perguntaram aos gritos se vira a caçada. E o homem, segundo contam, ficou tão transtornado de medo que mal conseguiu falar, mas por fim disse que de fato vira a infeliz donzela com os cães em seu rastro. “Mas vi mais do que isso”, disse ele, “pois Hugo Baskerville passou por mim em sua égua negra, e atrás dele corria em silêncio um cão dos infernos que Deus permita eu jamais tenha em meus calcanhares.”

Assim os fidalgos bêbados amaldiçoaram o pastor e seguiram adiante. Mas logo suas peles se enregelaram, porque ouviram um som de galope pela charneca, e a égua negra, borrifada de espuma branca, passou arrastando as rédeas e com a sela vazia. Então os pândegos passaram a cavalgar bem juntos, tomados por grande medo, mas continuaram seguindo pela charneca, se bem que cada um, se estivesse sozinho, teria ficado muito contente de dar meia-volta em seu cavalo. Cavalgando lentamente dessa maneira, por fim alcançaram os cães. Estes, embora conhecidos por sua coragem e sua raça, ganiam amontoados no alto de um profundo barranco na charneca, alguns se esquivando e alguns com o pelo eriçado e olhos arregalados, fitando o estreito vale diante de si.

O grupo havia parado, mais sóbrio, como podeis imaginar, do que ao partir. A maioria não queria de modo algum avançar, mas três deles, os mais audazes, ou talvez os mais bêbados, seguiram em frente, barranco abaixo. Ora, ele se abria num amplo espaço em que havia duas daquelas grandes pedras, que ainda podem ser vistas ali, colocadas por povos esquecidos em tempos antigos. A lua brilhava sobre a clareira, em cujo centro jazia a infeliz donzela onde caíra, morta de medo e fadiga. Mas não foi a visão de seu corpo, nem mesmo a do corpo de Hugo Baskerville, estendido perto dela, que arrepiou aqueles três fanfarrões atrevidos: foi que, em cima de Hugo, e agarrado à sua garganta, via-se uma coisa horrenda, uma fera enorme e negra, com a forma de um cão de caça, porém maior que qualquer cão em que os olhos de um mortal já pousaram. E, no momento mesmo em que olhavam, a coisa arrancou parte do pescoço de Hugo Baskerville, e, quando ela virou os olhos chamejantes e a boca ensanguentada para eles, os três gritaram de medo e fugiram em desespero pela charneca, ainda aos gritos. Conta-se que um morreu na própria noite do que vira, e os outros dois ficaram inválidos pelo resto de seus dias.

Esta é a história, meus filhos, da chegada do cão que desde então teria atormentado a família tão dolorosamente. Se a registrei por escrito foi porque o que é claramente conhecido aterroriza menos que o apenas insinuado e imaginado. Não se pode tampouco negar que muitos da família foram infelizes em suas mortes, perecendo de modos repentinos, sangrentos e misteriosos. Podemos no entanto nos abrigar na infinita bondade da Providência, que não puniria para sempre os inocentes além daquela terceira ou quarta geração que é ameaçada nas Sagradas Escrituras. A essa Providência, meus filhos, eu vos confio, aconselhando-vos, por medida de cautela, a evitar cruzar a charneca naquelas horas escuras em que as forças do mal estão exaltadas. [De Hugo Baskerville para seus filhos Rodger e John, com instruções para que nada digam a respeito a sua irmã Elizabeth.]

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“Em cima de Hugo, e agarrado à sua garganta, via-se uma fera enorme e negra.”

[Richard Gutschmidt, Der Hund von Baskerville, Stuttgart: Robert Lutz Verlag, 1903]

Ao terminar a leitura desta singular narrativa, o dr. Mortimer empurrou os óculos para a testa e encarou Mr. Sherlock Holmes. Este bocejou e jogou a ponta do cigarro na lareira.

“Bem?” perguntou.

“Isto não lhe parece interessante?”

“Para um colecionador de contos de fadas.”

O dr.