Mas havia desaparecido, e o incidente pareceu causar a pior impressão em sua mente. Passei todo o serão com ele, e foi nessa ocasião, para explicar a emoção que demonstrara, que confiou à minha guarda aquela narrativa que li para o senhor ao chegar. Menciono este pequeno episódio porque ele assume alguma importância à luz da tragédia que se seguiu, mas na época eu estava convencido de que o assunto era inteiramente trivial e que a ansiedade dele não tinha justificação.

Image

“Vi seus olhos se fixarem acima de meu ombro.”

[Sidney Paget, Strand Magazine, 1901]

“Era a meu conselho que Sir Charles estava prestes a partir para Londres. Seu coração, eu sabia, estava afetado, e a constante inquietação em que ele vivia, por mais quimérica que fosse a sua causa, estava evidentemente tendo um sério efeito sobre sua saúde. Pensei que após alguns meses em meio às distrações da cidade poderia retornar um novo homem. Mr. Stapleton, um amigo comum, também muito preocupado com seu estado de saúde, foi da mesma opinião. No último instante sobreveio essa terrível catástrofe.

Image

“Sir Charles estava deitado de bruços, os braços abertos, os dedos enterrados no chão…”

[Richard Gutschmidt, Der Hund von Baskerville, Stuttgart: Robert Lutz Verlag, 1903]

“Na noite da morte de Sir Charles, Barrymore, o mordomo, que fez a descoberta, mandou Perkin, o cavalariço, sair a cavalo para me buscar, e, como eu ficara acordado até tarde, pude chegar ao Solar Baskerville menos de uma hora após o ocorrido. Verifiquei e corroborei todos os fatos mencionados no inquérito. Segui as pegadas pela Aleia de Teixos, vi o ponto no portão da charneca onde ele parecia ter esperado, observei a mudança na forma das pegadas depois desse ponto, notei que não havia outras exceto as de Barrymore no cascalho macio, e por fim examinei cuidadosamente o corpo, que não fora tocado até a minha chegada. Sir Charles estava deitado de bruços, os braços abertos e os dedos enterrados no chão; tinha os traços a tal ponto convulsionados por uma forte emoção que dificilmente eu teria podido atestar sua identidade. Não havia decerto nenhum tipo de ferimento físico. Mas Barrymore fez uma declaração falsa no inquérito. Ele disse que não havia rastros no solo em volta do corpo. Ele não observou nenhum. Mas eu, sim — um tanto distantes, mas recentes e nítidos.”

“Pegadas?”

“Pegadas.”

“De homem ou de mulher?”

O dr. Mortimer olhou-nos estranhamente por um instante, e sua voz era quase um sussurro quando respondeu:

“Eram as pegadas de um gigantesco cão de caça, Mr. Holmes!”

III. O PROBLEMA

CONFESSO QUE A ESSAS PALAVRAS senti um calafrio. Havia na voz do médico uma emoção que mostrava estar ele próprio profundamente comovido com o que nos contava. Holmes inclinou-se para a frente em sua ansiedade, e seus olhos tinham o brilho duro e seco que ganhavam quando ele estava vivamente interessado.

“O senhor viu isso?”

“Tão claramente como o vejo.”

“E não disse nada?”

“De que adiantaria?”

“Por que ninguém mais viu isso?”

“As marcas estavam a uns vinte metros do corpo, e ninguém lhes deu a menor atenção. Creio que eu também não teria dado, se não conhecesse essa lenda.”

“Há muitos cães pastores na charneca.”

“Sem dúvida, mas aquilo não era um cão pastor.”

“Disse que era grande?”

“Enorme.”

“Mas não tinha se aproximado do corpo?”

“Não.”

“Como estava a noite?”

“Úmida e fria.”

“Mas não chovia?”

“Não.”

“Como é a aleia?”

“Há duas linhas de uma velha sebe de teixos, com mais de três metros e meio de altura e impenetrável. O caminho, no centro, tem cerca de dois metros e meio de largura.”

“Há alguma coisa entre as sebes e o caminho?”

“Sim, há uma faixa de relva de cerca de um metro e oitenta de cada lado.”

“Pelo que entendi, a sebe de teixos é interrompida num ponto por um portão?”

“Sim, a cancela que dá para a charneca.”

“Há alguma outra abertura?”

“Nenhuma.”

“Assim, para chegar à Aleia de Teixos é preciso tomá-la a partir da casa, ou entrar nela pelo portão da charneca?”

“Há uma saída através de um chalé na extremidade oposta.”

“Sir Charles chegara até lá?”

“Não; estava a uns cinquenta metros.”

“Agora, diga-me, dr. Mortimer — e isto é importante —, as marcas que viu estavam no caminho e não na relva?”

“Não se via nenhuma marca na relva.”

“Elas estavam do mesmo lado do caminho em que fica o portão da charneca?”

“Sim; estavam na beira do caminho no mesmo lado do portão da charneca.”

“O senhor está me deixando extraordinariamente interessado. A cancela estava fechada?”

“Fechada e trancada com cadeado.”

“Que altura tem ela?”

“Cerca de um metro e vinte.”

“Então qualquer pessoa poderia passar por cima dela?”

“Sim.”

“E que marcas viu junto da cancela?”

“Nenhuma em particular.”

“Valha-me Deus! Ninguém examinou?”

“Sim, eu mesmo examinei.”

“E não encontrou nada?”

“Estava tudo muito confuso. Sir Charles evidentemente permanecera de cinco a dez minutos ali.”

“Como sabe?”

“A cinza do seu charuto havia caído duas vezes.”

“Excelente! Este é um colega, Watson, como poderíamos desejar. Mas e as marcas?”

“Ele havia deixado suas próprias marcas por todo aquele pequeno trecho de cascalho. Não pude discernir nenhuma outra.”

Sherlock Holmes bateu a mão contra o joelho num gesto de impaciência.

“Se pelo menos eu tivesse estado lá!” exclamou. “Trata-se evidentemente de um caso de extraordinário interesse, e que apresentou imensas oportunidades ao especialista científico. Aquela página de cascalho em que eu teria podido ler tanta coisa ficou há muito borrada pela chuva e obliterada pelos tamancos de camponeses curiosos.