- Pois deixe estar, disse ela, fique descansado. Meu marido há-de falar. Eu me encarrego disso.
Olhe, venha por cá. - E com o dedo sobre o canto da boca: - Espere, amanhã vou para Sintra. Domingo, não. O melhor é daqui a quinze dias. Daqui a quinze dias pela manhã, sou certa. - E rindo com os seus largos dentes frescos: - Parece que o estou a ver traduzir Chateaubriand com a mana Luísa! Como o tempo passa!
- Passa bem a senhora sua mana? perguntou Amaro.
- Sim, bem. Está numa quinta em Santarém.
Deu-lhe a mão, calçada de peau de suède, num aperto sacudido que fez tilintar os seus braceletes de ouro, e saltou para o coupé, magra e ligeira, com um movimento que levantou brancuras de saias.
Amaro começou então a esperar. Era em Julho, no pleno calor. Dizia missa pela manhã em S. Domingos, e durante o dia, de chinelos e casaco de ganga, arrastava a sua ociosidade pela casa. Às vezes ia conversar com a tia para a sala de jantar; as janelas estavam cerradas, na penumbra zumbia a monótona sussurração das moscas; a tia a um canto do velho canapé de palhinha fazia croché, com a luneta encavalada na ponta do nariz; Amaro, bocejando, folheava um antigo volume do Panorama.
À noitinha saía, a dar duas voltas no Rossio. Abafava-se, no ar pesado e imóvel: a todos os cantos se apregoava monotonamente água fresca! Pelos bancos, debaixo das árvores, vadios remendados dormitavam; em redor da Praça, sem cessar, caleches de aluguel vazias rodavam vagarosamente; as 14
claridades dos cafés reluziam; e gente encalmada, sem destino, movia, bocejando, a sua preguiça pelos passeios das ruas.
Amaro então recolhia, e no seu quarto, com a janela aberta ao calor da noite, estirado em cima da cama, em mangas de camisa, sem botas, fumava cigarros, ruminava as suas esperanças. A cada momento lhe acudiam, com rebates de alegria, as palavras da senhora condessa: fique descansado, meu marido há-de falar! E via-se já pároco numa bonita vila, numa casa com quintal cheio de couves e de saladas frescas, tranqüilo e importante, recebendo bandejas de doce das devotas ricas.
Vivia então num estado de espirito muito repousado. As exaltações, que no seminário lhe causava a continência, tinham-se acalmado com as satisfações que lhe dera em Feirão uma grossa pastora, que ele gostava de ver ao domingo tocar à missa, dependurada da corda do sino, rolando nas saias de saragoça, e a face a estourar de sangue. Agora, sereno, pagava pontualmente ao Céu as orações que manda o ritual, trazia a carne contente e calada, e procurava estabelecer-se regaladamente.
No fim de quinze dias foi a casa da senhora condessa.
- Não está, disse-lhe um criado da cavalariça.
Ao outro dia voltou, já inquieto. Os batentes verdes estavam abertos; e Amaro subiu devagar, pisando, muito acanhado, o largo tapete vermelho, fixado com varões de metal. Da alta clarabóia caia uma luz suave; ao cimo da escada, no patamar, sentado numa banqueta de marroquim escarlate, um criado encostado à parede branca envernizada, com a cabeça pendente e o beiço caído, dormia. Fazia um grande calor; aquele alto silêncio aristocrático aterrava Amaro; esteve um momento, com o seu guarda-sol pendente do dedo mínimo, hesitando; tossiu devagarinho, para acordar o criado que lhe parecia terrível com a sua bela suíça preta, o seu rico grilhão de ouro; e ia descer, quando ouviu por detrás dum reposteiro um riso grosso de homem.
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