Atribuía-se a sua escolha a influências políticas, e o jornal de Leiria, A Voz do Distrito, que estava na oposição, falou com amargura, citando o Gólgota, no favoritismo da corte e na reação clerical. Alguns padres tinham-se escandalizado com o artigo; conversou-se sobre isso, acremente, diante do senhor chantre.
- Não, não, lá que há favor, há; e que o homem tem padrinhos, tem - disse o chantre. - A mim quem me escreveu para a confirmação foi o Brito Correia (Brito Correia era então ministro da Justiça).
Até me diz na carta que o pároco é um belo rapagão. De sorte que - acrescentou sorrindo com satisfação -
depois de Frei Hércules vamos talvez ter Frei Apolo.
Em Leiria havia só uma pessoa que conhecia o pároco novo: era o cônego Dias, que fora nos primeiros anos do seminário seu mestre de Moral. No seu tempo, dizia o cônego, o pároco era um rapaz franzino, acanhado, cheio de espinhas carnais...
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- Parece que o estou a ver com a batina muito coçada e cara de quem tem lombrigas!... De resto bom rapaz! E espertote...
O cônego Dias era muito conhecido em Leiria. Ultimamente engordara, o ventre saliente enchia-lhe a batina e a sua cabecinha grisalha, as olheiras papudas, o beiço espesso faziam lembrar velhas anedotas de frades lascivos e glutões.
O tio Patrício, o Antigo, negociante da Praça, muito liberal e que quando passava pelos padres rosnava como um velho cão de fila, dizia às vezes ao vê-lo atravessar a Praça, pesado, ruminando a digestão, encostado ao guarda-chuva:
- Que maroto! Parece mesmo D. João VI!
O cônego vivia só com uma irmã velha, a Sra. D. Josefa Dias, e uma criada, que todos conheciam também em Leiria, sempre na rua, entrouxada num xale tingido de negro, e arrastando pesadamente as suas chinelas de ourelo. O cônego Dias passava por ser rico; trazia ao pé de Leiria propriedades arrendadas, dava jantares com peru, e tinha reputação o seu vinho duque de 1815. Mas o fato saliente da sua vida - o fato comentado e murmurado - era a sua antiga amizade com a Sra. Augusta Caminha, a quem chamavam a S. Joaneira, por ser natural de S. João da Foz. A S. Joaneira morava na Rua da Misericórdia, e recebia hóspedes. Tinha uma filha, a Ameliazinha, rapariga de vinte e três anos, bonita, forte, muito desejada.
O cônego Dias mostrara um grande contentamento com a nomeação de Amaro Vieira. Na botica do Carlos, na Praça, na sacristia da Sé, exaltou os seus bons estudos no seminário, a sua prudência de costumes, a sua obediência: gabava-lhe mesmo a voz: " um timbre que é um regalo.'"
- Para um bocado de sentimento nos sermões da Semana Santa, está a calhar!
Predizia-lhe com ênfase um destino feliz, uma conezia decerto, talvez a glória de um bispado!
E um dia, enfim, mostrou com satisfação ao coadjutor da Sé, criatura servil e calada, uma carta que recebera de Lisboa de Amaro Vieira.
Era uma tarde de Agosto e passeavam ambos para os lados da Ponte Nova. Andava então a construir-se a estrada da Figueira: o velho passadiço de pau sobre a ribeira do Lis tinha sido destruído, já se passava sobre a Ponte Nova, muito gabada, com os seus dois largos arcos de pedra, fortes e atarracados. Para diante as obras estavam suspendidas por questões de expropriação; ainda se via o lodoso caminho da freguesia de Marrazes, que a estrada nova devia desbastar e incorporar; camadas de cascalho cobriam o chão; e os grossos cilindros de pedra, que acalcam e recamam os macadames, enterravam-se na terra negra e úmida das chuvas.
Em roda da Ponte a paisagem é larga e tranqüila.
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