O caso Robinson
“Devia ser uma afastada rua de subúrbio...”
“— Levante! Levante! — gritou Robinson...”
FRAGMENTOS
[1] Partida de Brunelda
[2] “Karl viu na esquina de uma rua...”
“Viajaram dois dias...”
Posfácio
Bibliografia
Agradecimentos
Sobre o autor
Sobre a tradutora

Franz Kafka (1883-1924) em retrato realizado por volta de 1911, ano em que escreveu a primeira versão de O desaparecido.
nota da tradutora
A presente tradução do primeiro romance de Franz Kafka, escrito entre 1912 e 1914, e batizado pelo amigo e executor testamentário Max Brod de Amerika — à revelia do autor, que embora se referisse a ele em sua correspondência como seu “romance americano”, intitulou-o O desaparecido — foi realizada com base no texto da edição crítica alemã, editado por Jost Schillemeit e publicado em 1983. Assim como a edição crítica, esta tradução mantém diversos “erros” de Kafka e a eles acrescenta algumas outras variantes presentes no manuscrito, trazendo, além disso, em notas de rodapé (assinaladas com a letra K), sublinhados, trechos significativos que constam do manuscrito mas foram riscados pelo autor. Além desses trechos, foram acrescentadas duas anotações que não estão no caderno do manuscrito e sim nos Diários, mas que por seu conteúdo podem ser encaixadas em pontos bem precisos do fragmento [2], como o leitor poderá verificar (notas 11 e 16 do fragmento [2]). A inclusão, em nota de rodapé, de variantes, imprecisões gráficas e trechos riscados no manuscrito e, portanto, ausentes do texto estabelecido na edição crítica, corresponde a uma tentativa de resgatar uma dimensão fundamental para a compreensão que Kafka tinha da sua própria literatura, da sua escritura: o seu caráter de rascunho, de risco e rabisco (mein Gekritzel era como ele se referia aos seus textos). Para orientação do leitor, apresentamos algumas características básicas da presente tradução. Para uma compreensão mais abrangente de alguns desses aspectos, remetemos ao posfácio.
1. Kafka escrevia por impulsos, sem se importar com pontuação e uma rígida correção ortográfica. Além disso gostava de ler seus textos em voz alta, prezando a fluidez oral do texto escrito. A tradução procurou ater-se a esse aspecto da escrita de Kafka e mimetizá-lo na língua portuguesa alterando o mínimo possível a pontuação do texto alemão, mesmo quando esta resultava ligeiramente agramatical em português; apenas nos casos em que a manutenção da pontuação kafkiana tornava ilegível, confuso ou sem ênfase um texto que não o era em alemão, optou-se por sinais diversos daqueles utilizados por Kafka.
2. Há diferentes grafias do topônimo Nova York/nova-iorquino, que aparecerá em português, também, grafado de diferentes formas. Algumas variantes, como Nework e Newort, embora eliminadas pela edição crítica, foram aqui registradas em nota pois, segundo comentadores, parecem corresponder a alterações significativas no contexto em que se encontram, embora não necessariamente devam ser creditadas a uma escolha consciente do autor.
3. Manteve-se a imprecisão na grafia do nome dos personagens Mack/ Mak e Renell/Rennel pelo estranhamento que provoca a grafia incerta, atraindo a atenção do leitor para certos deslocamentos de letras, certas literalizações características da escrita kafkiana.
4. No nome Hotel occidental, manteve-se a grafia escolhida pelo autor, sempre em minúsculas, o que sublinha o caráter atributivo e não substantivo da palavra “ocidental”; além disso, manteve-se a duplicação da letra c, no intuito de causar um estranhamento gráfico de feição arcaizante.
5. Kafka grafava a palavra alemã Theater (teatro) sem a letra h, uma característica do alemão de Praga; por motivos análogos aos anteriores, introduziu-se a letra h na palavra teatro, mas apenas quando ela é utilizada na expressão Teatro de Oklahama, para não sobrecarregar o leitor com um excesso de grafias inusitadas.
6. Mantém-se a grafia Oklahama em vez de Oklahoma — erro atribuído a uma das fontes utilizadas por Kafka para se informar sobre a América, a reportagem de Arthur Holitscher publicada, entre 1911 e 1912, sob forma de uma série de matérias para o jornal Neue Rundschau, que Kafka lia habitualmente.
7. Finalmente, foram mantidos os erros de geografia cometidos por Kafka e que tinham sido diligentemente corrigidos por Max Brod: Kafka localiza São Francisco a leste de Nova York e faz com que Nova York se ligue por uma ponte diretamente a Boston, em vez de ao Brooklyn; também foi mantida a referência a libras esterlinas como moeda americana, um evidente engano do autor. Tais erros por certo não mais poderão prejudicar a integridade literária de um dos maiores autores do século XX, como à sua época temia o amigo Brod.
Introduzindo em notas de rodapé (assinaladas com as iniciais MB) diferenças entre a edição estabelecida por Max Brod e a edição crítica, procura-se também reconhecer o caráter de coautoria do trabalho do amigo de Kafka, responsável pela conservação dos manuscritos. Não se trata apenas de reconhecer com isso a importância do gesto, mas também de uma tentativa de não deixar que se apague de nossa memória literária o Franz Kafka de Max Brod. Foi esse Kafka, afinal de contas, aquele que deixou as marcas mais profundas na consciência literária do século XX. Vai nesse mesmo sentido a retomada do título dado originalmente pelo autor — O desaparecido, mas seguido do título dado por Brod — Amerika, denominação pela qual durante décadas a presente obra se tornou famosa e da qual a história da literatura dificilmente poderá prescindir.
O DESAPARECIDO
ou AMERIKA

Nomenclatura das notas:
MB: alteração ou inserção realizada por Max Brod no texto de Kafka.
K: variante suprimida por Kafka em seu próprio manuscrito.
I.
O foguista
Quando Karl Rossmann, um jovem de dezessete anos{1} que fora mandado para a América por seus pobres pais, porque uma empregada o seduzira e tivera um filho seu, entrou no porto de Novayork a bordo do navio que já diminuía sua marcha, avistou a estátua da deusa da liberdade, que há muito vinha observando, como que banhada por uma luz de sol que subitamente tivesse se tornado mais intensa. O braço com a espada erguia-se como se tivesse recém se elevado, e em torno à sua figura sopravam os ares livres.{2}
“Tão alta!”, disse consigo,{3} e, como nem pensasse em sair dali, ia sendo lentamente empurrado até a borda do navio pela multidão cada vez mais numerosa dos carregadores que desfilavam diante dele.
Um jovem a quem conhecera superficialmente durante a viagem, disse-lhe ao passar:
— Então, ainda não está com vontade de desembarcar?
— Estou pronto, sim! — disse Karl, sorriu para ele e ergueu a mala sobre o ombro por entusiasmo e porque era um jovem robusto. Entretanto, ao olhar na direção do conhecido que se afastava com os outros, balançando um pouco a bengala, percebeu ter esquecido{4} o seu próprio guarda-chuva na parte inferior do navio. Pediu ligeiro a ele, que não pareceu muito contente, a gentileza de esperar por um instante junto à mala, olhou rapidamente em torno para orientar-se na volta e saiu correndo. Para seu desapontamento, encontrou na parte de baixo pela primeira vez fechado um corredor que teria abreviado em muito o trajeto, fato que provavelmente estava ligado ao desembarque de todos os passageiros, e teve assim de procurar o seu caminho, com dificuldade, passando por uma infinidade de pequenos aposentos, corredores infinitamente tortuosos, escadas curtas mas que se seguiam umas após as outras, por uma sala vazia com uma escrivaninha abandonada,{5} até de fato ter-se perdido por completo, já que só havia realizado esse percurso uma ou duas vezes e em companhia de mais pessoas. Em seu desamparo, e como não tivesse encontrado ninguém e só continuasse a ouvir o arrastar dos milhares de pés humanos acima de sua cabeça, percebendo de longe, como um arfar, o último sinal de trabalho das máquinas, já desligadas, começou sem pensar a bater numa pequena porta qualquer, diante da qual ele se detivera em seu percurso errante.
— Está aberta! — gritaram de dentro, e Karl abriu a porta com um sincero suspiro de alívio.
— Por que bate na porta como um louco? — perguntou um homem enorme, mal dirigindo o olhar para Karl.
Por uma espécie de clarabóia penetrava de cima uma luz baça, há muito consumida na parte superior do navio, no interior daquela lastimável cabine, na qual encontravam-se uma cama, um armário, uma cadeira e o homem, um bem ao lado do outro, como que estocados.
— Eu me perdi — disse Karl. — Durante a viagem nem notei, mas é um navio terrivelmente grande.
— E, tem razão — disse o homem com algum orgulho e não parava de fuçar na fechadura de uma maleta, que ele apertava e desapertava com ambas as mãos para escutar o estalar do trinco.
— Mas, entre! — continuou o homem. — Não vai ficar aí fora!
— Não incomodo? — perguntou Karl.
— Ora, como vai incomodar!
— É alemão? — procurou assegurar-se Karl, pois tinha ouvido falar muito dos perigos que ameaçam os recém-chegados à América, sobretudo da parte dos irlandeses.
— Sou sim, sou sim — disse o homem. Karl hesitou ainda. Nesse instante o homem de repente pegou na maçaneta e, fechando depressa a porta, puxou com ela Karl para dentro.
— Não suporto que me olhem do corredor — disse o homem, mexendo de novo na sua mala. — Qualquer um que passa, olha para dentro, não há santo que aguente!
— Mas o corredor está totalmente vazio! — disse Karl, que se encontrava de pé, incomodamente espremido contra a guarda da cama.
— Agora está — disse o homem.
“Mas é de agora que estamos falando”, pensou Karl. “Com esse homem é difícil conversar.”
— Deite-se na cama, assim terá mais lugar — disse o homem.
Karl arrastou-se do jeito que pôde para cima da cama e riu em voz alta sobre sua primeira tentativa fracassada de saltar para dentro dela. Mal estava na cama, porém, e exclamou:
— Pelo amor de Deus, esqueci totalmente da minha mala!
— Onde está ela?
— Lá em cima no convés, um conhecido está cuidando dela. Mas como é mesmo que ele se chama?
E tirou um cartão de visitas de um bolso secreto que sua mãe tinha costurado para a viagem por dentro do forro do casaco.
— Butterbaum, Franz Butterbaum.
— Precisa muito da mala?
— Claro.
— Mas então, por que a entregou a um estranho?
— Eu tinha esquecido meu guarda-chuva aqui embaixo e corri para apanhá-lo, mas não quis carregar a mala junto. E ainda por cima acabei me perdendo aqui.
— Está sozinho? Desacompanhado?
— Sim, estou sozinho.
“Talvez eu devesse procurar apoio nesse homem”, passou pela cabeça de Karl. “Onde vou encontrar de imediato amigo melhor?”
— E agora também perdeu a mala. Para não falar do guarda-chuva.
E o homem sentou-se na poltrona, como se o problema de Karl tivesse adquirido algum interesse para ele.
— Mas eu creio que a mala ainda não está perdida.
— A fé traz a felicidade — disse o homem, coçando energicamente os densos e curtos cabelos escuros. — No navio, os hábitos variam conforme os portos.
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