Em Hamburgo, o seu Butterbaum talvez tivesse vigiado a mala, mas aqui muito provavelmente já não haverá mais rastro de nenhum deles.
— Mas então eu tenho de subir logo para ver — disse Karl e olhou em torno para ver como poderia sair dali.
— Fique aí mesmo — disse o homem, e aplicou rudemente uma das mãos contra seu peito, empurrando-o de volta para a cama.
— Por quê? — perguntou Karl irritado.
— Porque não faz sentido — disse o homem. — Daqui a pouco vou eu também, então iremos juntos. Ou a mala foi roubada, e então não há jeito e até o fim de seus dias irá chorar por ela, ou o homem ainda está lá vigiando, portanto ele é um burro e deve continuar de guarda, ou então, ele é apenas uma pessoa honesta e deixou a mala lá, e então, até que o navio esteja completamente vazio, nós iremos encontrá-la tanto mais facilmente.{6} O mesmo vale para o seu guarda-chuva.
— Conhece bem o navio? — perguntou Karl desconfiado, e pareceu-lhe que a ideia — aliás bastante convincente — de que suas coisas seriam mais facilmente encontradas num navio vazio ocultasse alguma artimanha.
— É claro, sou foguista! — disse o homem.
— Foguista! — exclamou Karl todo alegre, como se isso ultrapassasse todas as expectativas e, com o cotovelo apoiado, olhou o homem mais de perto. — Bem na frente do compartimento onde eu dormi com aquele eslovaco tinha sido colocada uma escotilha por onde se podia olhar para dentro da casa das máquinas.
— É lá que eu trabalhava — disse o foguista.
— Eu sempre me interessei tanto pela técnica — disse Karl, permanecendo numa determinada linha de pensamento — e certamente teria me tornado engenheiro mais tarde, se não tivesse precisado viajar para a América.
— E por que precisou viajar?
— Ah, deixe para lá! — disse Karl, e descartou toda a história com a mão.
Ao fazer isso, olhou para o foguista com um sorriso, como se estivesse pedindo sua indulgência mesmo por aquilo que não tinha sido confessado.
— Há de ter um motivo — disse o foguista, e não se sabia ao certo se com isso ele pretendia solicitar ou recusar que lhe contassem o motivo.
— Agora eu também poderia me tornar foguista — disse Karl. — Para meus pais, agora, é totalmente indiferente o que eu vou ser.
— Meu posto ficará vago — disse o foguista, colocando, com total consciência do que dissera, as mãos nos bolsos da calça e atirando em cima da cama, para esticá-las, as pernas enfiadas num amassado par de calças cor cinza-ferro, feitas de material semelhante a couro. Karl foi obrigado a chegar mais perto da parede.
— Vai abandonar o navio?
— Sim, senhor, hoje batemos em retirada.
— Mas por quê? Não gosta?
— Pois é, são as circunstâncias, o que decide nem sempre é o que se gosta ou não se gosta. Aliás, tem razão: não gosto mesmo. E é provável que não esteja pensando com determinação em ser{7} foguista, mas é justo nesse caso que é mais fácil alguém vir a sê-lo. Pois eu o desaconselho decididamente. Se na Europa queria estudar, por que não irá querer estudar aqui? As universidades americanas são incomparavelmente melhores que as europeias.
— É bem possível — disse Karl —, mas eu quase não tenho dinheiro para estudar. É bem verdade que eu li sobre alguém que trabalhava numa loja de dia e estudava à noite até tornar-se doutor e creio que prefeito, mas para isso é preciso uma grande persistência, não? Temo que ela me falte. Além do mais, não fui um aluno particularmente bom, a despedida da escola realmente não se tornou um peso para mim. E talvez aqui as escolas sejam ainda mais severas. Praticamente não sei nada de inglês. Creio que em geral aqui as pessoas têm tanta prevenção contra estrangeiros!
Também já passou por essa? Ah, então está tudo bem. Então está aí o meu homem. Veja, estamos em um navio alemão, que pertence à Linha Hamburg-Amerika, e por que é que não somos todos alemães por aqui? Por que o maquinista-chefe é um romeno? Ele se chama Schubal. Não dá para acreditar. E esse cão sarnento nos esfola a nós, alemães, num navio alemão! Não creia — perdia o fôlego, agitava a mão — que reclamo por reclamar. Sei que não tem influência, que é só um pobre rapazinho. Mas isso é demais!
E bateu várias vezes com o punho sobre a mesa, não tirando os olhos dela enquanto batia.
— Já servi em tantos navios — e citou vinte nomes seguidos, como se formassem uma só palavra, Karl ficou totalmente confuso — e me destaquei, fui elogiado, fui um trabalhador ao gosto de meus comandantes, estive até por alguns anos no mesmo veleiro mercante — levantou-se como se esse constituísse o ponto culminante de sua vida — e nessa carcaça, onde tudo está organizado à risca, onde não se exige nenhum dom especial, aqui não presto para nada, aqui só atrapalho o Schubal, sou um preguiçoso, mereço ser expulso e recebo meu salário por misericórdia. Entende isso, entende? Eu não.
— Não pode tolerar isso! — disse Karl excitado.
Ele quase perdera a noção de que estava sobre o solo inseguro de um navio na costa de um continente desconhecido, tão à vontade se encontrava ali deitado na cama do foguista.
— Já esteve com o capitão? Já reivindicou junto a ele os seus direitos?
— Ora, vá embora, é melhor ir embora. Não quero que fique aqui. Não escuta o que eu estou lhe dizendo e fica me dando conselhos. Como quer que eu vá até o capitão?
E, cansado, o foguista sentou-se novamente, colocando o rosto entre as duas mãos.
“Melhor conselho não posso dar a ele”, disse Karl consigo mesmo.{8} E pensou que, de mais a mais, teria feito melhor indo buscar a sua mala em vez de ficar ali dando conselhos que só eram considerados estúpidos. Quando o pai lhe entregara a mala para todo o sempre, ele dissera brincando: “Quanto tempo será que vai ficar com ela?”, e agora talvez a preciosa mala já estivesse seriamente perdida. O único consolo era que o pai dificilmente podia ficar sabendo de sua situação atual, mesmo que viesse a investigar. O máximo que a companhia de navegação podia dizer era que ele tinha chegado a Novayork. O que Karl lamentava era o fato de não ter feito uso das coisas que estavam na mala, embora há muito precisasse ter trocado de camisa, p. ex.
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