Não pretendo em absoluto atenuar o que meu sobrinho fez para receber esse castigo — atenuações não correspondem à maneira de ser americana{16} —, mas sua falta é de uma espécie tal que sua simples menção contém já suficiente desculpa.

“Nada mal”, pensou Karl, “mas eu não quero que ele conte a todos.{17} Aliás, ele não tem como saber. De onde saberia? Mas vamos ver, ele já deve estar sabendo de tudo.”

— Pois ele foi — prosseguiu o tio e apoiou-se com pequenas inclinações do corpo sobre a bengalinha de bambu que mantinha pregada ao solo à sua frente, o que lhe permitiu de fato eliminar uma parte da desnecessária solenidade de que, de outra forma, a questão obrigatoriamente teria se revestido —, pois ele foi seduzido por uma empregada, Johanna Brummer, uma pessoa de cerca de trinta e cinco anos. Não pretendo absolutamente magoar o meu sobrinho com a palavra “seduzido”, mas é difícil encontrar uma outra igualmente adequada.

Karl, que tinha chegado bastante perto do tio, voltou-se para ler no rosto dos presentes a impressão causada pelo relato. Ninguém ria, todos escutavam paciente e seriamente. Afinal não se ri do sobrinho de um conselheiro de Estado na primeira oportunidade que se apresenta. Antes, podia-se dizer que o foguista sorria, ainda que muito pouco, para Karl, o que em primeiro lugar era animador enquanto novo sinal de vida e, em segundo, desculpável, uma vez que na cabine Karl desejara fazer dessa questão, que agora se tornava pública, especial segredo.

— Ora, essa tal de Brummer — prosseguiu o tio — teve um filho de meu sobrinho, um garoto saudável,{18} que recebeu o nome Jakob no batismo, sem dúvida em memória de minha insignificância, que, mesmo nas menções com certeza inteiramente ocasionais de meu sobrinho, deve ter causado uma forte impressão na moça. Felizmente, digo eu. Pois sendo que os pais, para evitar o pagamento de uma pensão alimentícia ou um escândalo que chegaria até eles (devo enfatizar que não conheço nem as leis lá vigentes, nem as demais condições em que os pais vivem, sei só de duas cartas de épocas anteriores nas quais eles me pedem ajuda, cartas que, embora tenha deixado sem resposta, conservei e que constituem minha única ligação com eles durante esse tempo todo, uma ligação, ademais, unilateral),{19} como ia dizendo, sendo que eles, para evitar o pagamento de uma pensão alimentícia e o escândalo, despacharam para a América o seu filho, meu querido sobrinho, equipado, como se vê, de modo irresponsavelmente precário, e, se não fosse pelos símbolos e milagres que ainda permanecem vivos justamente na América, o rapaz estaria abandonado à própria sorte e teria decerto logo sucumbido nalguma ruela do porto de Novayork, não fosse aquela empregada ter-me contado, numa carta a mim dirigida e que ontem chegou às minhas mãos depois de um longo périplo, toda a história, dando inclusive a descrição de meu sobrinho e, muito sensatamente, também o nome do navio. Se eu tivesse a intenção de entretê-los, meus senhores, poderia certamente ler alguns trechos dessa carta — tirou do bolso duas enormes folhas de papel de carta densamente escritas e balançou-as no ar — aqui mesmo. Seguramente ela surtiria efeito, já que está escrita com uma esperteza algo simplória, ainda que bem-intencionada, e com muito amor pelo pai da criança. Mas eu não quero entretê-los mais do que exige a explicação, e nem talvez ferir, no momento de sua chegada, sentimentos possivelmente ainda existentes da parte de meu sobrinho, o qual se quiser para sua informação poderá ler a carta no silêncio do quarto que já está à sua espera.

Mas Karl não nutria nenhum sentimento por aquela moça. Nas imagens confusas de um passado que se afastava cada vez mais, ele a via sentada na cozinha ao lado do armário, sobre cujo balcão apoiava o cotovelo. Ela olhava para ele quando ele entrava de vez em quando na cozinha para buscar um copo d’água para seu pai ou para executar uma tarefa para sua mãe. Às vezes, naquela posição desconfortável na lateral do armário da cozinha, ela escrevia uma carta, buscando inspiração no rosto de Karl. Às vezes mantinha os olhos cobertos pela mão, e aí nenhuma palavra que lhe dirigiam chegava até ela. Às vezes ajoelhava-se no seu quartinho apertado ao lado da cozinha e rezava diante de um crucifixo de madeira; Karl então só a ficava observando timidamente ao passar, através de uma fresta da porta um pouco entreaberta. Às vezes ela corria em círculos pela cozinha e recuava, rindo como uma bruxa, quando Karl cruzava o seu caminho. Às vezes ela fechava a porta depois de Karl ter entrado e segurava a maçaneta com a mão até ele exigir que o deixasse sair. Às vezes ela lhe trazia coisas que ele nem sequer desejava e, sem dizer nada, enfiava por entre as suas mãos. Mas uma vez ela disse “Karl!” e, enquanto ele ainda permanecia admirado com a abordagem inesperada, ela o levou, fazendo caras e bocas, ao seu quartinho, e trancou a porta. Abraçou-o, agarrando-o pelo pescoço, quase o estrangulando; e enquanto pedia que a despisse, na realidade era ela quem o despia e o deitava na cama, como se a partir de então não quisesse deixá-lo para mais ninguém e quisesse acariciá-lo e cuidar dele até o fim dos tempos. “Karl, oh, meu Karl!”, exclamou ela, como se ao vê-lo se certificasse de sua propriedade, ao passo que ele não via absolutamente nada e se sentia desconfortável em meio à roupa de cama quente, que ela parecia ter amontoado única e exclusivamente para ele. Em seguida ela também se deitou a seu lado e queria saber de algum dos seus segredos, mas ele não conseguiu contar nenhum e, de brincadeira ou a sério, ela ficou zangada e sacudiu-o, auscultando seu coração, oferecendo o próprio peito para que ele escutasse também, coisa que não conseguiu que ele fizesse; apertou a barriga nua contra o corpo dele, procurou com a mão de uma maneira tão repulsiva entre as suas pernas, que Karl esticou a cabeça e o pescoço para fora dos travesseiros; ela então empurrou algumas vezes sua barriga contra ele — ele teve a sensação de que ela fosse parte de si mesmo, e talvez por esse motivo foi tomado por uma terrível sensação de desamparo. Chorando, ele chegou finalmente até sua própria cama, depois dos muitos pedidos da parte dela para voltarem a se ver. Isso tinha sido tudo, mas o tio soube transformá-lo numa história grandiosa. Quer dizer então que a cozinheira havia mesmo pensado nele e informado o tio de sua chegada! Fora uma bela atitude de sua parte, e um dia ele certamente iria recompensá-la por isso.

— E agora — exclamou o senador — quero que diga francamente se sou ou não sou seu tio.

— E meu tio — disse Karl, beijando-lhe a mão e recebendo em troca um beijo sobre a fronte. — Estou muito alegre por tê-lo encontrado, mas está enganado se pensa que meus pais falam só coisas más a seu respeito. Mas também, independentemente disso, a sua fala conteve alguns erros, quer dizer, eu acho que, na realidade, nem tudo aconteceu assim. Mas daqui não pode mesmo avaliar as coisas tão bem; além do mais eu creio que não trará grande prejuízo o fato de os senhores estarem um pouco mal-informados a respeito de um caso que não lhes pode mesmo dizer muito respeito.

— Falou muito bem — disse o senador; levou Karl até o capitão, que assistia à cena com visível interesse, e perguntou: — Não tenho um sobrinho esplêndido?

— Estou feliz — disse o capitão com uma reverência dessas que só pessoas com formação militar sabem fazer — por ter conhecido o seu sobrinho, senhor senador. E uma honra especial para meu navio ter podido ser a sede deste encontro.