Mas a viagem nas entrecobertas deve com certeza ter sido muito desagradável — quem pode saber quem é transportado ali?! Certa vez, p. ex., até o primogênito do maior magnata húngaro — o nome e o motivo da viagem me escapam — viajou nas nossas entrecobertas. Só muito mais tarde é que vim a saber.{20} Bem, nós fazemos o possível para suavizar a viagem para as pessoas das entrecobertas, muito mais do que as companhias americanas, p. ex., mas a verdade é que ainda não conseguimos converter uma viagem dessas num divertimento.
— Não me fez nenhum mal — disse Karl.
— Não lhe fez nenhum mal! — repetiu, rindo em alta voz, o senador.
— Tenho só medo que a minha mala esteja perd... — e ao dizer isso lembrou de tudo o que tinha acontecido e o que restava ainda por fazer, olhou em torno e avistou todos os presentes mudos de atenção e assombro nos seus antigos lugares com os olhos fixos sobre ele. Somente nos funcionários do porto notava-se, pelo que deixavam transparecer seus rostos severos, autossuficientes, que lamentavam ter chegado em momento tão inoportuno; e o relógio de bolso que agora tinham diante de si sobre a mesa provavelmente lhes importava mais do que tudo o que acontecia no recinto e que talvez ainda pudesse ocorrer.
Depois do capitão, o primeiro a manifestar sua simpatia foi, curiosamente, o foguista:
— Dou-lhe os meus parabéns — disse ele e deu-lhe um aperto de mãos, com o qual pretendia expressar algo como reconhecimento. Quando a seguir ele pretendeu dirigir-se com as mesmas palavras ao senador, este recuou, como se com isso o foguista estivesse indo além dos seus direitos; o foguista logo desistiu.
Mas os demais davam-se conta agora do que deviam fazer e em seguida criaram o maior alvoroço em volta de Karl e do senador. Aconteceu então que Karl recebeu felicitações até de Schubal, aceitou-as e agradeceu. Por último, restabelecida novamente a calma, aproximaram-se os funcionários do porto e proferiram duas palavras em inglês, o que causou uma impressão ridícula.
O senador estava de bom humor, disposto a saborear aquele prazer a fundo, recordando para si e para os outros episódios menos importantes, o que naturalmente não só foi tolerado como aceito com interesse por todos. Assim, chamou a atenção para o fato de ter registrado em sua caderneta de notas os traços mais marcantes de Karl, mencionados na carta da cozinheira, para utilizá-los no momento em que isso possivelmente se fizesse necessário. Pois bem, durante o insuportável falatório do foguista, ele tinha, sem qualquer outro propósito senão o de se distrair, sacado da caderneta e, como se fosse um jogo, tentara ligar as observações da cozinheira, não exatamente de uma precisão detetivesca, à figura de Karl.
— E é assim que se faz para achar o sobrinho! — finalizou com um tom de quem quer receber mais felicitações.
— O que vai acontecer agora com o foguista? — perguntou Karl, passando ao largo do último relato do tio. Em sua nova posição, acreditava poder expressar tudo o que pensava.
— O foguista receberá o que merece — disse o senador — e o que o senhor capitão achar correto. Acho que estamos mais do que fartos do foguista, e com isso concordarão seguramente todos os senhores presentes.
— Mas não é isso que importa, em se tratando de uma questão de justiça — disse Karl.
Estava de pé entre o tio e o capitão e acreditava, influenciado talvez por essa posição, ter a decisão em suas mãos.
E, apesar disso, o foguista parecia não ter mais esperança. Tinha as mãos meio enfiadas no cinto da calça, o qual, em consequência de seus movimentos agitados, aparecera junto com partes de uma camisa estampada. Isso não lhe importava minimamente, ele já tinha se queixado de todas as suas mágoas, agora também podiam ver os poucos trapos que lhe cobriam o corpo, e depois carregá-lo para fora! Ele imaginou que o criado e Schubal — os dois de mais baixo nível ali — devessem lhe fazer este último obséquio. Então Schubal ficaria sossegado e não iria mais entrar em desespero, conforme a expressão que utilizara o caixa-mor. O capitão poderia admitir uma porção de romenos, falariam romeno por toda parte, e então talvez realmente tudo corresse melhor. Não haveria mais foguista para tagarelar no caixa principal, somente esse último falatório seu permaneceria como uma recordação bastante agradável, já que, como o senador havia assinalado expressamente, fora o motivo indireto para o reconhecimento de seu sobrinho. Sobrinho este que, aliás, já havia tentado várias vezes ser-lhe útil anteriormente e com isso havia já expressado antecipadamente sua gratidão de modo mais do que suficiente pelos serviços prestados por ocasião do reconhecimento; nem ocorria agora ao foguista exigir ainda algo dele. De resto, ele bem podia ser sobrinho de um senador, mas estava longe de ser capitão; e era da boca do capitão que sairia por fim a infeliz sentença. Em consonância com essa sua opinião, o foguista tentava não olhar na direção de Karl, mas infelizmente não restava, naquele antro de inimigos, outro lugar de repouso para seus olhos.
— Não interprete mal a situação — disse o senador a Karl —, trata-se talvez de uma questão de justiça, mas ao mesmo tempo de uma questão de disciplina.{21} Ambas, e em especial a última delas, estão nesse caso sujeitas ao julgamento do senhor capitão.
— Isso mesmo — murmurou o foguista. Quem reparou nessas palavras e as compreendeu, esboçou um sorriso de estranhamento.
— Além de tudo, já atrapalhamos tanto o senhor capitão no desempenho de suas funções, funções essas que precisamente na chegada a Novayork por certo se acumulam incrivelmente, que está mais do que na hora de abandonarmos o navio, para de mais a mais não transformarmos, por meio de alguma intromissão sumamente desnecessária, esta insignificante desavença entre dois maquinistas num grande acontecimento. Aliás, eu compreendo perfeitamente o seu modo de agir, caro sobrinho, mas é precisamente isso que me dá o direito de levá-lo embora daqui com maior pressa.
— Mandarei baixarem um bote para o senhor — disse o capitão, que, para surpresa de Karl, praticamente nada teve a objetar com relação às palavras do tio, palavras que indubitavelmente podiam ser consideradas como autodepreciativas. O caixa-mor precipitou-se sobre a escrivaninha e passou a ordem do capitão por telefone ao contramestre.
“O tempo urge”, disse Karl a si mesmo. “Mas não posso fazer nada, sem ofender a todos. Não posso abandonar o meu tio, logo depois de ele ter me reencontrado. O capitão é de fato gentil, mas isso é tudo. Sua gentileza acaba onde começa a disciplina, e o tio seguramente falou do mais fundo de sua alma. Com Schubal não quero falar, lamento inclusive ter-lhe estendido a mão. E todas as outras pessoas aqui não valem nada.”
Imerso em tais pensamentos, dirigiu-se lentamente até o foguista, retirou a mão dele do cinto, segurou-a na sua e ficou brincando com ela.
— Por que não diz nada? — perguntou ele.
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