E é precisamente por isso, pela identidade dos sentimentos humanos, independentes de latitudes e de raças, que esta obra ganha cunho de universalidade, de documento humano.

 

Eis a pergunta que nos surge: terá a morte, sempre à espreita, dado a Anne um empurrão mais forte, obrigando-a urgentemente a apanhar e exprimir a vida em flagrante, antes de esta lhe fugir?

 

Ao considerar que Anne se limita quase exclusivamente a apontar os acontecimentos diários da vida no esconderijo, verificamos com espanto que nunca lhe falta assunto. Até uma caneta, que por engano foi parar ao fogão e ardeu, lhe serve para escrever uma "Ode à minha caneta". Num estilo simples, cristalino, invulgar em pessoas da sua idade, que costumam usar uma linguagem pretensiosamente - literária -, desenha, com admirável facilidade, o ambientt e as pessoas.

 

Todas as figuras se tornam nossas conhecidas, familiares, com as suas atitudes e os seus comportamentos tantas vezes contraditórios e, justamente por isso, tão reais. Anne não vê com sentimentalismo nem com ódio, e como no seu mundo não há ninguém perfeito nem ninguém absolutamente imperfeito, todos são vivos, quase palpáveis.

 

É óbvio que as reacções de Anne dependem muito da sua disposição e que as suas personagens surgem filtradas pelas suas dores, desânimos, alegrias, paixões e perspectivas, de modo que umas vezes são mais aceitáveis do que outras. Mas não é assim, mesmo na vida, e não vemos nós, ao fim e ao cabo, as

 

pessoas não apenas como são, mas também conforme a nossa disposição do momento?

 

Não falta a Anne aquele raro dom que Thomas Mann considerava indispensável para se seguir uma obra de arte:

 

o sentido do humor. Estudando-se sempre a si própria, ela reconhece os seus defeitos e as suas quaLidades. E quanto ao seu sentido do humor diz:

 

"...e mesmo nos momentos mais perigosos, vejo ainda o cómico da situação e não posso deixar de me rir".,Se, por um lado, o próprio Thomas Mann está presente nesta frase, está-o talvez mais ainda Charlie Chaplin..Não vê ele nos momentos mais trágicos, mais perigosos - e mesmo na sua balada judaica

 

"O Ditador" -o cómico das situações?

 

Assim, parece-nos verdadeiramente chaplinesca a descrição do assaLto ao armazém, nessa terrível noite que ficará gravada na memória de todos como a mais angustiosa das noites passadas no - anexo -, onde se pressente, apesar do abalo forte que Anne sofreu, o sorriso a brincar-lhe nos lábios quando ela, por exemplo, conta como acordou com a cabeça da sra. van Daan em cima dos seus pés. Chamamos também a atenção para cenas como aquela em que o grupo - mergulhado - descasca as batatas, ou aquelas em que a sra. van Daan desafia o marido com as suas conversas políticas. Em meia dúzia de traços, através de diálogos vivos

 

e sem que a autora intervenha a explicar as personagens, elas são recortadas de modo que se nos revelam com todas as suas virtudes, manhas e limitações.

 

Talvez haja momentos em que Anne possa parecer-nos demasiado dura, sobretudo quando fala das suas relações com a mãe, ou se queixa do pai, este admirável homem que ela, bem o sentimos, coloca acima de tudo e de todos. Mas a dureza de Anne não é mais do que o resultado do conhecido conflito da adolescência a que ela, por ser inteligente e incapaz de aceitar as coisas incondicionalmente, dá expressão. O choque com a mãe, pouco atenta aos problemas íntimos da fiLha, é inevitável e agrava-se devido às circunstâncias em que são obrigadas a conviver. Provavelmente, ter-se-ia atenuado numa vida normaL, como aliás a própria Anne reconhece mais de uma vez.

 

Todos os - mergulhados - sofrem as consequências daqueLe isolamento. Sentimos-lhes a tensão nervosa que, em grande parte, provém da saturação de um convívio ininterrupto e forçado, em espaço tão restrito. E Anne, vendo como a mesquinhez se apodera daquela gente a que falta a liberdade, põe-na em flagrante contraste com esses corajosos holandeses, os protectores do pequeno grupo, que, sempre que entram em cena, trazem consigo a aragem fresca do mundo exterior.

 

Mas, apesar de tudo, dá-se no pequeno mundo de sofrimentos do - anexo - o eterno milagre da vida: o despertar do amor entre Anne e Peter. São de uma insuperável pureza as descrições dos seus primeiros idílios. "Quando o Peter e eu estamos sentados num caixote duro, no meio de ferros velhos e de pó, muito juntos, eu com um braço em volta dos seus ombros, ele com um braço em volta dos meus ombros, quando ele brinca com uma madeixa do meu cabelo, quando lá fora se ouve o chilrear dos pássaros, quando se vêem as árvores a pintarem-se de verde, quando o Sol nos chama e o ar é todo ele azul, oh!, então os meus desejos são infinitos". Mas sabemos desde logo que aquele rapaz bonito, bom, um tanto simplório, não pode corresponder às ânsias e exigências de uma rapariga como Anne que, em determinada altura, aponta no seu diário: "O melhor seria que ele, na maior parte das vezes, estivesse acima de mim", e mais tarde: "O Peter e eu passamos os dois anos mais importantes para a nossa formação aqui no anexo, falamos muitas vezes sobre o passado, o presente e o futuro, mas, como eu já disse, sinto a falta de qualquer coisa de mais autêntico; e eu tenho a certeza de que essa coisa existe". De resto, Anne, pela força e intensidade da sua vida interior, pela sua imensa sede de penetrar nas profundidades da vida e ainda pelo que nela há de extraordinário, digamos mesmo de maravilhoso, e, em certa medida, de inacessível para pessoas como o Peter van Daan, está, desde logo, condenada àquela solidão de todas as pessoas que ultrapassam os limites das normas gerais.

 

Por tudo o que neste livro está expresso: os problemas comuns a todos nós - a nossa coragem, as nossas fraquezas e, também, as nossas esperanças-, apercebemo-nos mais do que nunca do absurdo

 

de todas as teorias de discriminação racial..Ninguém pode deixar de sentir, ao ler as cartas de Anne Frank, como, ao fim e ao cabo, as alegrias e as lágrimas humanas são as mesmas em todos os seres humanos e em todas as partes do mundo.

 

Assim o sentiu, também, a juventude alemã de hoje, cuja reacção perante esta obra talvez seja, desde há muito, o mais luminoso clarão de esperança que temos visto brilhar.

 

Anne Frank, vítima de uma época de injustiças e de violências desumanas, tornou-se um símbolo. As várias manifestações de simpatia de que é objecto culminaram, em 1 de Março último, com uma peregrinação de jovens alemães ao antigo campo de concentração de Bergen-Belsen, onde o corpo de Anne foi atirado, com centenas de milhares de outros corpos, para a vala comum.