Quem começa agora? disse ele. Há de ser D. Felismi-
na. Vamos ver se alguém lhe ama em segredo.
D. Felismina sorriu amarelo. Era uma boa quarentona, sem pren-
das nem rendas, que vivia espiando um marido por baixo das pál-
pebras devotas. Em verdade, o gracejo era duro, mas natural. D. Fe-
lismina era o modelo acabado daquelas criaturas indulgentes e man-
sas, que parecem ter nascido para divertir os outros. Pegou e lançou
os dados com um ar de complacência incrédula. Número dez, bra-
daram duas vozes. Rangel desceu os olhos ao baixo da página, viu
a quadra correspondente ao número, e leu-a: dizia que sim, que
havia uma pessoa, que ela devia procurar domingo, na igreja, quando
fosse à missa. Toda a mesa deu parabéns a D. Felismina que sorriu
com desdém, mas interiormente esperançada.
Outros pegaram nos dados, e Rangel continuou a ler a sorte de
cada um. Lia espevitadamente. De quando em quando, tirava os
óculos e limpava-os com muito vagar na ponta do lenço de cambraia,
-- ou por ser cambraia, -- ou por exalar um fino cheiro de bogari.
Presumia de grande maneira, e ali chamavam-lhe "o diplomático".
-- Ande, seu diplomático, continue.
Rangel estremeceu; esquecera-se de ler uma sorte, embebido em
percorrer a fila de moças que ficava do outro lado da mesa. Namo-
rava alguma? Vamos por partes.
Era solteiro, por obra das circunstâncias, não de vocação. Em
rapaz teve alguns namoricos de esquina, mas com o tempo apare-
ceu-lhe a comichão das grandezas, e foi isto que lhe prolongou o celi-
bato até os quarenta e um anos, em que o vemos. Cobiçava alguma
noiva superior a ele e à roda em que vivia, e gastou o tempo em
esperá-la. Chegou a freqüentar os bailes de um advogado célebre e
rico, para quem copiava papéis, e que o protegia muito. Tinha nos
bailes a mesma posição subalterna do escritório; passava a noite va-
gando pelos corredores, espiando o salão, vendo passar as senhoras,
devorando com os olhos uma multidão de espáduas magníficas e
talhes graciosos. Invejava os homens, e copiava-os. Saía dali excitado
e resoluto. Em falta de bailes, ia às festas de igreja, onde poderia ver
algumas das primeiras moças da cidade.
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