Também era certo no saguão

do paço imperial, em dia de cortejo, para ver entrar as grandes da-

mas e as pessoas da corte, ministros, generais, diplomatas, desembar-

gadores, e conhecia tudo e todos, pessoas e carruagens. Voltava da

festa e do cortejo, como voltava do baile, impetuoso, ardente, capaz

de arrebatar de um lance a palma da fortuna.

O pior é que entre a espiga e a mão, há o tal muro do poeta, e o

Rangel não era homem de saltar muros. De imaginação fazia tudo,

raptava mulheres e destruía cidades. Mais de uma vez foi, consigo

mesmo, ministro de Estado, e fartou-se de cortesias e decretos. Che-

gou ao extremo de aclamar-se imperador, um dia, 2 de dezembro, ao

voltar da parada no Largo do Paço; imaginou para isso uma revolu-

ção, em que derramou algum sangue, pouco, e uma ditadura benéfica,

em que apenas vingou alguns pequenos desgostos de escrevente. Cá

fora, porém, todas as suas proezas eram fábulas. Na realidade, era

pacato e discreto.

Aos quarenta anos desenganou-se das ambições; mas a índole ficou

a mesma, e, não obstante a vocação conjugal, não achou noiva. Mais

de uma o aceitaria com muito prazer; ele perdia-as todas à força de

circunspecção. Um dia, reparou em Joaninha, que chegava aos deze-

nove anos e possuía um par de olhos lindos e sossegados, -- virgens

de toda a conversação masculina. Rangel conhecia-a desde criança.

andara com ela ao colo, no Passeio Público, ou nas noites de fogo

da Lapa; como falar-lhe de amor? Mas, por outro lado, as relações

dele na casa eram tais, que podiam facilitar-lhe o casamento; e, ou

este ou nenhum outro.

Desta vez, o muro não era alto, e a espiga era baixinha; bastava

esticar o braço com algum esforço, para arrancá-la do pé. Rangel

andava neste trabalho desde alguns meses. Não esticava o braço, sem

espiar primeiro para todos os lados, a ver se vinha alguém, e, se vinha

alguém, disfarçava e ia-se embora. Quando chegava a esticá-lo, acon-

tecia que uma lufada de vento meneava a espiga ou algum passarinho

andava ali nas folhas secas, e não era preciso mais para que ele

recolhesse a mão. Ia-se assim o tempo, e a paixão entranhava-se-lhe,

causa de muitas horas de angústia, a que seguiam sempre melhores

esperanças. Agora mesmo traz ele a primeira carta de amor, disposto

a entregá-la. Já teve duas ou três ocasiões boas, mas vai sempre espa-

çando; a noite é tão comprida! Entretanto, continua a ler as sortes,

com a solenidade de um ángur.

Tudo, em volta, é alegre. Cochicham ou riem, ou falam ao mesmo

tempo. O tio Rufino, que é o gaiato da família, anda à roda da mesa

com uma pena, fazendo cócegas nas orelhas das moças. João Viegas

está ansioso por um amigo, que se demora, o Calisto. Onde se me-

teria o Calisto?

-- Rua, rua, preciso da mesa; vamos para a sala de visitas.

Era D. Adelaide que tornava; ia pôr-se a mesa para a ceia. Toda a

gente emigrou, e andando é que se podia ver bem como era graciosa

a filha do escrivão. Rangel acompanhou-a com grandes olhos namo-

rados. Ela foi à janela, por alguns instantes, enquanto se preparava

um jogo de prendas, e ele foi também; era a ocasião de entregar-lhe

a carta.