Fe-

lismina era o modelo acabado daquelas criaturas indulgentes e man-

sas, que parecem ter nascido para divertir os outros. Pegou e lançou

os dados com um ar de complacência incrédula. Número dez, bra-

daram duas vozes. Rangel desceu os olhos ao baixo da página, viu

a quadra correspondente ao número, e leu-a: dizia que sim, que

havia uma pessoa, que ela devia procurar domingo, na igreja, quando

fosse à missa. Toda a mesa deu parabéns a D. Felismina que sorriu

com desdém, mas interiormente esperançada.

Outros pegaram nos dados, e Rangel continuou a ler a sorte de

cada um. Lia espevitadamente. De quando em quando, tirava os

óculos e limpava-os com muito vagar na ponta do lenço de cambraia,

-- ou por ser cambraia, -- ou por exalar um fino cheiro de bogari.

Presumia de grande maneira, e ali chamavam-lhe "o diplomático".

-- Ande, seu diplomático, continue.

Rangel estremeceu; esquecera-se de ler uma sorte, embebido em

percorrer a fila de moças que ficava do outro lado da mesa. Namo-

rava alguma? Vamos por partes.

Era solteiro, por obra das circunstâncias, não de vocação. Em

rapaz teve alguns namoricos de esquina, mas com o tempo apare-

ceu-lhe a comichão das grandezas, e foi isto que lhe prolongou o celi-

bato até os quarenta e um anos, em que o vemos. Cobiçava alguma

noiva superior a ele e à roda em que vivia, e gastou o tempo em

esperá-la. Chegou a freqüentar os bailes de um advogado célebre e

rico, para quem copiava papéis, e que o protegia muito. Tinha nos

bailes a mesma posição subalterna do escritório; passava a noite va-

gando pelos corredores, espiando o salão, vendo passar as senhoras,

devorando com os olhos uma multidão de espáduas magníficas e

talhes graciosos. Invejava os homens, e copiava-os. Saía dali excitado

e resoluto. Em falta de bailes, ia às festas de igreja, onde poderia ver

algumas das primeiras moças da cidade. Também era certo no saguão

do paço imperial, em dia de cortejo, para ver entrar as grandes da-

mas e as pessoas da corte, ministros, generais, diplomatas, desembar-

gadores, e conhecia tudo e todos, pessoas e carruagens. Voltava da

festa e do cortejo, como voltava do baile, impetuoso, ardente, capaz

de arrebatar de um lance a palma da fortuna.

O pior é que entre a espiga e a mão, há o tal muro do poeta, e o

Rangel não era homem de saltar muros. De imaginação fazia tudo,

raptava mulheres e destruía cidades. Mais de uma vez foi, consigo

mesmo, ministro de Estado, e fartou-se de cortesias e decretos. Che-

gou ao extremo de aclamar-se imperador, um dia, 2 de dezembro, ao

voltar da parada no Largo do Paço; imaginou para isso uma revolu-

ção, em que derramou algum sangue, pouco, e uma ditadura benéfica,

em que apenas vingou alguns pequenos desgostos de escrevente. Cá

fora, porém, todas as suas proezas eram fábulas. Na realidade, era

pacato e discreto.

Aos quarenta anos desenganou-se das ambições; mas a índole ficou

a mesma, e, não obstante a vocação conjugal, não achou noiva.