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de uma o aceitaria com muito prazer; ele perdia-as todas à força de
circunspecção. Um dia, reparou em Joaninha, que chegava aos deze-
nove anos e possuía um par de olhos lindos e sossegados, -- virgens
de toda a conversação masculina. Rangel conhecia-a desde criança.
andara com ela ao colo, no Passeio Público, ou nas noites de fogo
da Lapa; como falar-lhe de amor? Mas, por outro lado, as relações
dele na casa eram tais, que podiam facilitar-lhe o casamento; e, ou
este ou nenhum outro.
Desta vez, o muro não era alto, e a espiga era baixinha; bastava
esticar o braço com algum esforço, para arrancá-la do pé. Rangel
andava neste trabalho desde alguns meses. Não esticava o braço, sem
espiar primeiro para todos os lados, a ver se vinha alguém, e, se vinha
alguém, disfarçava e ia-se embora. Quando chegava a esticá-lo, acon-
tecia que uma lufada de vento meneava a espiga ou algum passarinho
andava ali nas folhas secas, e não era preciso mais para que ele
recolhesse a mão. Ia-se assim o tempo, e a paixão entranhava-se-lhe,
causa de muitas horas de angústia, a que seguiam sempre melhores
esperanças. Agora mesmo traz ele a primeira carta de amor, disposto
a entregá-la. Já teve duas ou três ocasiões boas, mas vai sempre espa-
çando; a noite é tão comprida! Entretanto, continua a ler as sortes,
com a solenidade de um ángur.
Tudo, em volta, é alegre. Cochicham ou riem, ou falam ao mesmo
tempo. O tio Rufino, que é o gaiato da família, anda à roda da mesa
com uma pena, fazendo cócegas nas orelhas das moças. João Viegas
está ansioso por um amigo, que se demora, o Calisto. Onde se me-
teria o Calisto?
-- Rua, rua, preciso da mesa; vamos para a sala de visitas.
Era D. Adelaide que tornava; ia pôr-se a mesa para a ceia. Toda a
gente emigrou, e andando é que se podia ver bem como era graciosa
a filha do escrivão. Rangel acompanhou-a com grandes olhos namo-
rados. Ela foi à janela, por alguns instantes, enquanto se preparava
um jogo de prendas, e ele foi também; era a ocasião de entregar-lhe
a carta.
Defronte, numa casa grande, havia um baile, e dançava-se. Ela
olhava, ele olhou também. Pelas janelas viam passar os pares, caden-
ciados, as senhoras com as suas sedas e rendas, os cavalheiros finos
e elegantes, alguns condecorados. De quando em quando, uma faísca
de diamantes, rápida, fugitiva, no giro da dança. Pares que conver-
savam, dragonas que reluziam, bustos de homens inclinados, gestos
de leque, tudo isso em pedaços, através das janelas, que não podiam
mostrar todo o salão, mas adivinhava-se o resto. Ele ao menos, co-
nhecia tudo, e dizia tudo à filha do escrivão. O demônio das gran-
dezas, que parecia dormir, entrou a fazer as suas arlequinadas no
coração do nosso homem, e ei-lo que tenta seduzir também o cora-
ção da outra.
-- Conheço uma pessoa que estaria ali muito bem, murmurou o
Rangel.
E Joaninha, com ingenuidade:
-- Era o senhor.
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