Não era tudo. Queirós levantou-se logo, dous ou três minutos de-
pois para outro brinde, e o silêncio foi ainda mais pronto e com-
pleto. Joaninha meteu os olhos no regaço, vexada do que ele iria
dizer; Rangel teve um arrepio.
-- O ilustre amigo desta casa, o Sr. Rangel, -- disse Queirós, --
bebeu às duas pessoas cujo nome é o do santo de hoje; eu bebo
àquela que é a santa de todos os dias, a D. Adelaide.
Grandes aplausos aclamaram esta lembrança, e D. Adelaide, lison-
jeada, recebeu os cumprimentos de cada conviva. A filha não ficou
em cumprimentos. -- Mamãe! mamãe! exclamou, levantando-se; e
foi abraçá-la e beijá-la três e quatro vezes; -- espécie de carta para
ser lida por duas pessoas.
Rangel passou da cólera ao desânimo, e, acabada a ceia, pensou
em retirar-se. Mas a esperança, demônio de olhos verdes, pediu-lhe
que ficasse, e ficou. Quem sabe? Era tudo passageiro, causas de uma
noite, namoro de S. João; afinal, ele era amigo da casa, e tinha a
estima da família; bastava que pedisse a moça, para obtê-la. E depois
esse Queirós podia não ter meios de casar. Que emprego era o dele na
Santa Casa? Talvez alguma cousa reles... Nisto, olhou obliquamente
para a roupa de Queirós, enfiou-se-lhe pelas costuras, escrutou o bor-
dadinho da camisa, apalpou os joelhos das calças, a ver-lhe o uso, e
os sapatos, e concluiu que era um rapaz caprichoso, mas provavel-
mente gastava tudo consigo, e casar era negócio sério. Podia ser tam-
bém que tivesse mãe viúva, irmãs solteiras... Rangel era só.
-- Tio Rufino, toque uma quadrilha.
-- Não posso; flauta depois de comer faz indigestão. Vamos a um
víspora.
Rangel declarou que não podia jogar, estava com dor de cabeça;
mas Joaninha veio a ele e pediu-lhe que jogasse com ela, de socie-
dade. -- "Meia coleção para o senhor, e meia para mim", disse ela,
sorrindo; ele sorriu também e aceitou. Sentaram-se ao pé um do
outro. Joaninha falava-lhe, ria, levantava para ele os belos olhos,
inquieta, mexendo muito a cabeça para todos os lados. Rangel sen-
tiu-se melhor, e não tardou que se sentisse inteiramente bem. Ia mar-
cando à toa, esquecendo alguns números, que ela lhe apontava com
o dedo, -- um dedo de ninfa, dizia ele consigo; e os descuidos pas-
saram a ser de propósito, para ver o dedo da moça, e ouvi-la ralhar:
"O senhor é muito esquecido; olhe que assim perdemos o nosso
dinheiro..."
Rangel pensou em entregar-lhe a carta por baixo da mesa; mas
não estando declarados, era natural que ela a recebesse com espanto
e estragasse tudo; cumpria avisá-la. Olhou em volta da mesa: todos
os rostos estavam inclinados sobre os cartões, seguindo atentamente
os números. Então, ele inclinou-se à direita, e baixou os olhos aos
cartões de Joaninha, como para verificar alguma cousa.
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