O Falecido Mattia Pascal
LUIGI
PIRANDELLO
O FALECIDO
MATTIA PASCAL
*
Tradução
Fernando Correa Fonseca

FUNDADOR
Victor Civita (1907-1990)
© Copyright desta edição Editora Nova Cultural Ltda., 2002 Todos os direitos reservados
Título original: Il Fu Mattia Pascal
Coordenação Editorial - Janice Florido
Editores - Eliel Silveira Cunha, Fernanda Cardoso
Revisão - Ubirajara Idoeta Cará
Editoras de arte - Ana Suely S. Dobón, Mônica Maldonado
Editoração eletrônica - Dany Editora Ltda.
ISBN: 85-13-01101-0

Editora Nova Cultural Ltda.
Rua Paes Leme, 524 - 10° andar
CEP 05424-010 - São Paulo - SP
www.novacultural.com.br
2003
Papel: O papel utilizado para a impressão deste
livro foi o Off Set Bahia Sul
Impressão e Acabamento:
RR Donnelley América Latina
Tel. (55 11) 4166-3500
ÍNDICE
01 - Premissa
02 - Premissa Segunda (Filosófica) Como Desculpa
03 - A Casa e a Toupeira
04 - Aconteceu Assim
05 - Maturação
06 – Tiquetaque, Tiquetaque
07 – Troco de Trem
08 - Adriano Meis
09 - Um Pouco de Neblina
10 - Pia de Água Benta e Cinzeiro
11 – A Noite, Olhando Para o Rio
12 - O Olho e Papiano
13 - A Lanterninha
14 - As Proezas de Max
15 - Eu e Minha Sombra
16 - O retrato de Minerva
17 - Reencarnação
18 - O Falecido Matias Pascal
Pirandello - Vida e Obra
Notas
1
Premissa
Uma das poucas coisas, talvez a única, que eu sabia com certeza era esta: que me chamava Mattia Pascal. E tirava partido dela. Todas as vezes que algum dos meus amigos ou conhecidos demonstrava haver perdido o juízo, a ponto de vir me procurar, em busca de conselhos ou opiniões, eu erguia os ombros e respondia:
— Eu me chamo Mattia Pascal.
— Obrigado, meu caro. Eu já sei.
— E acha pouco?
Para ser sincero, eu também não achava muito. Porém, naquela época, ignorava o que significa não saber sequer isso, ou seja, não poder mais responder, em caso de necessidade, como antigamente:
— Eu me chamo Mattia Pascal.
Com certeza, alguém vai desejar condoer-se comigo (custa tão pouco), imaginando a dor cruel de um infeliz ao qual ocorra, de repente, descobrir que... sim, nada, enfim: nem pai, nem mãe, nem como foi ou deixou de ser; e também vai desejar indignar-se (custa ainda menos) da corrupção dos costumes, dos vícios e da malvadeza dos tempos que podem causar tamanha desgraça a um pobre inocente.
Pois bem, fique à vontade para fazê-lo. Mas é meu dever avisá-lo de que não se trata exatamente disso. Poderia aqui expor, numa árvore genealógica, a origem e a descendência da minha família e provar que não apenas conheci meu pai e minha mãe, mas também todos os meus antepassados e seus atos, durante um longo período de tempo, nem todos, na verdade, louváveis.
E então?
Aí está: meu caso é bem mais estranho e diferente, tão diferente e estranho que vou logo contá-lo.
Fui, durante dois anos, não sei se caçador de ratos mais do que guardador de livros na biblioteca que um certo monsenhor Boccamazza, ao falecer, em 1803, houve por bem deixar para o nosso município. É evidente que o monsenhor devia conhecer pouco a índole e os hábitos de seus concidadãos; ou talvez alimentasse a esperança de que seu legado deveria, com o tempo e a comodidade que representava, despertar no espírito deles o amor pelo estudo. Até aqui, posso testemunhá-lo, não despertou; e o digo em louvor dos meus concidadãos. O município, aliás, mostrou-se tão pouco agradecido a Boccamazza que nem sequer quis lhe erguer ao menos um meio-busto e deixou os livros empilhados, durante muitos e muitos anos, num amplo e úmido depósito, de onde, depois, os tirou, podem imaginar em que estado, para guardá-los na igrejinha, fora de mão, de Santa Maria Liberal, dessagrada não sei por que razão. Ali os confiou, sem o menor critério, a título de benefício e como sinecura, a algum vadio bem recomendado, que, por duas liras ao dia, ficando a olhar para eles ou, mesmo, sem os olhar, suportasse, durante algumas horas, seu cheiro de bolor e velharia.
Essa sorte coube também a mim; e, desde o primeiro dia, concebi tão escassa estima pelos livros, quer impressos, quer manuscritos (como eram alguns, antiqüíssimos, da nossa biblioteca) que jamais teria começado a escrever, como o faço agora, se, como disse, não considerasse meu caso realmente estranho e capaz de servir de ensinamento a algum leitor curioso que, por acaso, tornando-se finalmente realidade a antiga esperança de monsenhor Boccamazza, viesse a esta biblioteca, à qual deixo meu manuscrito, com a obrigação, no entanto, de que ninguém possa abri-lo senão cinqüenta anos depois da minha terceira, última e definitiva morte.
Porque, no momento (e Deus sabe quanto o deploro), já morri, sim, duas vezes, mas a primeira, por engano, e a segunda... ficarão sabendo.
2
Premissa. Segunda (Filosófica)
Como Desculpa
A idéia, ou melhor, o conselho de escrever veio-me do meu reverendo amigo padre Eligio Pellegrinotto, o qual, presentemente, tem a seu cuidado os livros de monsenhor Boccamazza e a quem confiarei o manuscrito, logo que o tiver terminado, se algum dia o terminar.
Escrevo-o aqui, na igrejinha dessagrada, à luz que me chega da lanterna, lá em cima, da cúpula; aqui, na abside, reservada ao bibliotecário e fechada por uma baixa grade de madeira em balaústres, enquanto padre Eligio fica bufando na tarefa, que heroicamente tomou a si, de colocar um pouco de ordem nessa verdadeira babel de livros. Temo que nunca chegue a dar conta do recado. Ninguém, antes dele, se preocupara em saber, nem mesmo por alto, dando de relance uma olhadela nas lombadas, que tipos de livros aquele monsenhor havia doado ao município: pensava-se que todos ou quase todos deviam tratar de assuntos religiosos. Ora, Pellegrinotto descobriu, para seu maior consolo, uma enorme variedade de matérias na biblioteca do monsenhor; e, como os livros foram apanhados aqui e acolá, no depósito, e arrumados ao acaso, tal como vinham às mãos, a confusão é indescritível. Por motivo de vizinhança, estreitaram-se, entre esses livros, as amizades mais singulares: padre Eligio Pellegrinotto disse-me, por exemplo, que não lhe foi nada fácil separar de um tratado muito indecente, Da Arte de Amar as Mulheres, em três volumes, de Anton Muzio Porro, do ano de 1571, uma Vida e Morte de Faustino Materucci, Beneditino de Polirone, que Alguns Chamavam Bem-Aventurado, biografia editada em Mântua em 1625. Por causa da umidade, as encadernações dos volumes se haviam fraternalmente colado uma à outra. Note-se que no segundo volume daquele tratado indecente, fala-se longamente da vida e aventuras monacais.
Muitos volumes curiosos e de agradabilíssima leitura, padre Eligio Pellegrinotto, trepado o dia todo numa escada de acendedor de lampiões, andou pescando nas estantes da biblioteca. Toda vez que encontra um deles, atira-o do alto com elegância, para a grande mesa que fica no meio, fazendo a igrejinha retumbar. Levanta-se uma nuvem de pó da qual fogem espavoridas duas ou três aranhas; eu corro para a abside, pulando a grade; primeiro, com o próprio livro, dou caça às aranhas, por cima da grande mesa empoeirada; depois, abro o livro e começo a folheá-lo.
Dessa maneira, aos poucos, tomei gosto por esse tipo de leituras. Agora, padre Eligio me diz que o meu livro deveria seguir o modelo desses que ele vai desencantando na biblioteca, ou seja, ter o especial sabor que eles têm. Eu dou de ombros e respondo que não é tarefa para mim. E outra coisa ainda me retém.
Todo suado e empoeirado, padre Eligio desce da escada e vem respirai um pouco de ar fresco, na pequena horta que conseguiu fazer nascer aqui, atrás da abside, protegida em toda a volta, por fasquias e puas de madeira.
— Ora, meu reverendo amigo — digo-lhe, sentado na mureta, o queixo apoiado no castão da bengala, enquanto ele cuida de suas alfaces. — Atualmente não me parece mais tempo de escrever livros, nem por brincadeira. No que diz respeito à literatura, como a tudo o mais, devo repetir meu habitual estribilho: "Maldito seja Copérnico!”.
— Oh, oh, oh, o que Copérnico tem a ver com isso?! — exclama padre Eligio, erguendo o busto, o rosto afogueado sob o grande chapéu de palha.
— Tem, sim, padre Eligio.
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