Porque, quando a Terra não girava...

Mas ela sempre girou!

Não é verdade. O homem não sabia disso e, por conseguinte, era como se não girasse. Para muitos, ela continua a não girar também agora. Eu falei que girava, outro dia, a um velho camponês; sabe o que ele me respondeu? Que era uma boa desculpa para os bêbados. Aliás, o senhor também, tenha paciência, não pode pôr em dúvida que Josué fez o sol parar. Mas deixemos isso. Digo que, quando a Terra não girava e o homem, vestido de grego ou de romano, nela fazia boa figura, formando tão elevado conceito de si e comprazendo-se tanto com sua própria dignidade, acredito perfeitamente que pudesse ter acolhida favorável uma narração minuciosa e repleta de inúteis detalhes. Lê-se ou não se lê em Quintiliano, como o senhor me ensinou, que a História devia ser feita para narrar e não para demonstrar?

Não nego — responde padre Eligio —, mas, também, é verdade que nunca se escreveram tantos livros, tão pormenorizados, ou melhor, tão carregados das mais secretas minudências, como desde quando, no seu modo de dizer, a Terra começou a girar.

Está bem: o senhor conde levantou-se cedo, às oito horas e meia em ponto... A senhora condessa pôs um vestido lilás, ricamente guarnecido de rendas no pescoço... Teresinha estava morrendo de fome... Lucrécia consumia-se de amor... Oh, meu Deus do céu! Que importância isso pode ter para mim? Estamos ou não estamos num invisível piãozinho, para o qual um fio de sol serve de chicote, num grãozinho de areia enlouquecido que gira e continua a girar, sem saber por quê, sem chegar nunca ao seu destino, como se achasse muito divertido girar assim, para fazer-nos sentir ora um pouco mais de calor, ora um pouco mais de frio, e, no fim, fazer-nos morrer (com freqüência, com a consciência de ter cometido uma série de pequenas tolices), após cinqüenta ou sessenta giros? Copérnico, Copérnico, meu caro padre Eligio, estragou a humanidade irremediavelmente. Agora, todos já nos adaptamos, aos poucos, à nova concepção da nossa infinita pequenez e a nos considerarmos menos do que nada, no Universo, com todas a nossas lindas descobertas e invenções. Que importância quer, então, que tenham as notícias, já não digo das misérias privadas, mas das nossas calamidades gerais? Histórias de minhocas, as nossas, agora. Leu a respeito daquele pequeno desastre nas Antilhas? Nada de importante. A Terra, coitada, cansada de girar, como quer aquele cônego polonês, sem nenhuma finalidade, teve um pequeno movimento de impaciência e soprou um pouco de fogo por uma de suas muitas bocas. Sabe-se lá o que foi que lhe agitou essa espécie de bílis! Talvez a estupidez dos homens, que nunca foram tão aborrecidos como agora. Resultado: vários milhares de minhocas torradas. E toca para a frente! Quem fala mais nisso?

Padre Eligio Pellegrinotto, contudo, faz-me observar que, por mais esforços que empreguemos no cruel propósito de arrancar, de destruir as ilusões que a previdente natureza criou para o nosso bem, não o conseguimos. Por sorte, o homem distrai-se facilmente.

Isso é verdade. Nosso município, em certas noites marcadas na folhinha, não manda acender os lampiões e, amiúde, se o tempo é nublado, nos deixa no escuro.

E isso quer dizer, no fundo, que nós, ainda hoje, acreditamos que a lua esteja no céu apenas para nos dar luz à noite, tal como o sol de dia, e as estrelas, tão só para nos oferecer um maravilhoso espetáculo. Pronto. E, com muita freqüência, esquecemos que somos átomos infinitesimais, passamos a respeitar-nos e admirar-nos reciprocamente e somos capazes de nos atracar por um pedacinho de terra ou de nos queixar de certas coisas que, se estivéssemos compenetrados do que somos realmente, deveriam parecer-nos desprezíveis misérias.

Pois bem, graças a essa providencial distração, bem como à estranheza do meu caso, vou falar de mim, porém o mais brevemente possível, fornecendo apenas as notícias que considerar necessárias.

Algumas delas, com certeza, não me farão muita honra; mas eu me encontro, neste momento, em uma condição tão excepcional que já posso me considerar fora da vida, portanto, sem obrigações nem escrúpulos de qualquer natureza. Vamos começar.


3

A Casa e a Toupeira

Fui um tanto apressado, no começo, em declarar que conheci meu pai. Não o conheci. Eu tinha quatro anos e meio quando ele faleceu. Havendo viajado para a Córsega, a bordo de uma lata-velha de sua propriedade e por causa de certos negócios que fazia por lá, não regressou mais, vitimado, em três dias, por uma febre perniciosa, aos 38 anos de idade. Deixou, porém, na abastança, a esposa e os dois filhos: Mattia (que seria, e fui, eu) e Roberto, dois anos mais velho que eu.

Alguns velhos da nossa aldeia ainda gostam de dizer que a riqueza de meu pai (que, contudo, não deveria mais incomodá-los, já tendo, de há muito, passado para outras mãos) possuía origens, digamos assim, misteriosas.

Pretendem que ele a conseguiu jogando cartas, em Marselha, com o capitão de um navio mercante inglês; este, depois de perder todo o dinheiro que trazia consigo, e que não devia ser pouco, havia jogado também um grande carregamento de enxofre, que fora embarcado na distante Sicília por conta de um comerciante de Liverpool (até isso eles sabem! E o nome?) que fretara o navio; e, depois de zarpar, afogou-se, por desespero, em alto-mar. Assim, o navio atracara em Liverpool aliviado também do peso do capitão. Sorte dele que possuía como lastro a maldade dos meus conterrâneos.

Nós possuíamos terras e casas. Perspicaz e arrojado, meu pai jamais teve, para os seus negócios, sede permanente: sempre navegando por aí na sua lata-velha, comprava, onde melhor e mais oportunamente encontrasse, e logo revendia, toda sorte de mercadorias; e, porque não o tentasse empresas demasiado grandes e arriscadas, ia investindo os lucros, à medida que os realizava, em terras e casas, aqui, na própria aldeia, onde talvez contasse, dentro em breve, repousar no conforto das riquezas fadigosamente adquiridas, contente e sossegado, entre a esposa e os filhos.

Dessa forma, primeiro adquiriu a terra das Due Riviere, rica de oliveiras e amoreiras, em seguida o sítio da Stia, também ricamente beneficiado e com uma linda nascente de água, que foi captada, mais tarde, para o moinho; depois, toda a colina do Sperone, que era o melhor vinhedo das redondezas, e, por fim, San Rocchino, onde construiu deliciosa vila.

Na aldeia, além da casa em que morávamos, comprou outras duas e todo o quarteirão atualmente transformado e adaptado para servir de arsenal.

Seu falecimento quase repentino foi a nossa ruína.