Esta, para não tê-la assim, tão cara a cara, recuou um passo, ameaçadora, como se quisesse lançar mão do rolo; e, então, tia Scolastica, tomando nas mãos, da masseira, a grossa bola de massa, espalhou-a feito um emplastro, na cabeça da outra, puxou-a sobre a sua cara e, com os punhos fechados, foi desferindo socos, no seu nariz, nos olhos, na boca, onde calhasse. Depois, pegou minha mãe por um braço e a arrastou para fora.
O que se seguiu foi apenas para mim. A viúva Pescatore, rugindo de ódio, arrancou a massa do rosto e dos cabelos, todos empastados, e veio atirá-la na minha cara, enquanto eu ria, ria, numa espécie de convulsão; agarrou minha barba, arranhou-me todo; depois, como ensandecida, jogou-se no chão e começou a tirar furiosamente as roupas de cima de si e a rolar, rolar, frenética, no piso. Entrementes, minha mulher, sit venia verbo [com o perdão da palavra], vomitava do lado de lá, por entre gritos agudos, enquanto eu:
— As pernas! As pernas! — berrava para a viúva Pescatore no chão. — Não me mostre as pernas, pelo amor de Deus!
Posso afirmar que, a partir de então, tomei o gosto de rir de todas as minhas desgraças e de todos os meus aborrecimentos. Vi-me, naquele instante, ator de uma tragédia, que não se poderia imaginar mais burlesca: minha mãe, que fugira daquela forma com a louca da tia Scolastica; minha mulher, do outro lado, que... bem, não vamos falar nela! Marianna Pescatore ali, no chão; e eu, eu, que já não tinha pão, mas aquilo que se chama pão, mesmo, para o dia seguinte, eu, com a barba toda emplastada de massa, o rosto arranhado e pingando, não sabia ainda se era sangue ou lágrimas; pelo excesso de riso. Fui averiguar no espelho. Eram lágrimas; mas estava, também, bastante arranhado. Ah, aquele meu olho, como gostei dele! Por desespero, pusera-se a olhar, mais do que nunca, para outro lado, em outro rumo, por sua própria conta. E fugi, decidido a não regressar para casa, se antes não encontrasse um meio qualquer de sustentar, mesmo miseramente, minha mulher e a mim.
Do ressentimento raivoso que experimentava, naquele momento, pelos muitos anos de estouvada vadiagem, inferia, porém, facilmente, que minha desgraça não podia inspirar a ninguém, já não digo compaixão, mas nem ao menos consideração. Eu bem que a merecera. Uma só pessoa poderia apiedar-se dela: aquela que se apoderara de todos os nossos haveres; mas imaginem só se Malagna podia ainda sentir a obrigação de vir em minha ajuda, depois do que se havia passado entre mim e ele.
A ajuda, ao contrário, veio de quem eu menos podia esperá-la.
Havendo ficado fora de casa aquele dia todo, encontrei-me casualmente, ao anoitecer, com Pomino, que, fingindo não me ver, queria passar reto.
— Pomino!
Virou-se, de cara amarrada, e parou, baixando os olhos:
— O que você quer?
— Pomino! — repeti em voz mais alta, sacudindo-o por um ombro e rindo do seu ar zangado. — Está falando a sério?
Oh, ingratidão humana! Pomino guardava-me rancor, ainda por cima, guardava-me rancor da traição que, segundo pensava, eu lhe fizera. E não consegui persuadi-lo de que a traição, ao contrário, ele é que a fizera a mim, e de que deveria não só me agradecer, mas ainda jogar-se de cara no chão e beijar o lugar onde eu pisava.
Eu estava ainda embriagado da má alegria que havia se apoderado de mim desde que me olhara no espelho.
— Está vendo estes arranhões? — eu lhe disse, a certa altura. — Foi ela quem os fez!
— Ro... quero dizer, sua mulher?
— A mãe dela!
E lhe contei como e por quê. Pomino sorriu, porém moderadamente. Talvez pensasse que, nele, aqueles arranhões, a viúva Pescatore, não os faria: ele estava em condições bem diferentes das minhas e possuía outro caráter e outro coração.
Veio-me, então, a tentação de perguntar-lhe por que, nesse caso, se estava realmente tão sentido, não havia se casado ele com Romilda, em tempo, até mesmo fugindo com ela, como eu lhe tinha aconselhado, antes que, por causa da sua ridícula timidez ou da sua indecisão, a desventura de apaixonar-me por ela acontecesse comigo; e muitas outras coisas desejei lhe dizer, na grande agitação em que me encontrava; contive-me. Em vez disso, perguntei, estendendo- lhe a mão, em companhia de quem andava, naqueles dias.
— De ninguém! — ele suspirou. — De ninguém! Aborreço-me, aborreço-me mortalmente!
Pelo tom exasperado com que pronunciou essas palavras pareceu-me compreender, de repente, o verdadeiro motivo pelo qual Pomino estava tão sentido. Era menos de Romilda, talvez, que ele lamentava a perda, do que da companhia que viera a faltar-lhe: Berto não estava mais lá; comigo não podia ter mais relações de amizade, porque havia Romilda entre nós; e que restava, então, ao pobre Pomino?
— Case-se, meu caro! — eu lhe disse. —- Você vai ver que alegria!
Mas ele meneou a cabeça, seriamente, com os olhos fechados; ergueu uma das mãos:
— Nunca! Nunca mais!
— Muito bem, Pomino: persista! Se o que deseja é companhia, estou às suas ordens, mesmo a noite toda, você querendo.
E manifestei-lhe o propósito que fizera ao sair de casa e expus-lhe, também, as condições desesperadas em que me achava. Pomino comoveu-se, como verdadeiro amigo, e ofereceu-me o pouco de dinheiro que tinha consigo. Agradeci- lhe de todo o coração e disse-lhe que o auxílio não me seria de nenhuma utilidade: no dia seguinte, estaria novamente no mesmo ponto. Eu precisava era de um emprego.
— Espere! — ele exclamou, então. — Você sabe que meu pai, agora, está na prefeitura?
— Não. Mas imagino.
— Assessor municipal para a Instrução Pública.
— Isso eu não imaginava.
— Ontem à noite, durante o jantar... Espere! Você conhece Romitelli?
— Não.
— Como é que não? Aquele que trabalha lá longe, na Biblioteca Boccamazza. E surdo, quase cego, caduco e não se agüenta mais em pé.
1 comment