Ontem à noite, durante o jantar, meu pai me dizia que a biblioteca está em petição de miséria e que é preciso tomar providências, o mais depressa possível. É esse o lugar para você!

Bibliotecário?! — exclamei. — Mas eu...

E por que não? — disse Pomino. — Se o foi Romitelli...

O argumento me convenceu.

Pomino aconselhou-me que mandasse tia Scolastica falar com seu pai. Seria melhor.

No dia seguinte, fui visitar mamãe e falei do assunto com ela, porque tia Scolastica não me quis ver, E assim, quatro dias mais tarde, tornei-me bibliotecário. Sessenta liras por mês. Mais rico do que a viúva Pescatore! Eu podia cantar vitória.

Nos primeiros meses, foi uma coisa quase divertida, por causa de Romitelli, a quem não havia meio de fazer compreender que havia sido aposentado pela municipalidade e que, por conseguinte, não devia mais vir à biblioteca. Todas as manhãs, à mesma hora, nem um minuto antes nem um minuto depois, via-o aparecer a quatro pés (incluindo as duas bengalas, uma em cada mão, que lhe prestavam serviço melhor do que os pés). Assim que chegava, tirava do bolsinho do colete um velho cebolão de cobre e o pendurava na parede, com toda a sua formidável corrente, sentava-se, com as duas bengalas entre as pernas, sacava do bolso o solidéu, a tabaqueira e um grande lenço xadrez vermelho e preto; enfiava nas narinas uma farta pitada de rapé, limpava-se, depois abria a gaveta da mesinha e dela tirava um enorme livro que pertencia à biblioteca: Dicionário Histórico dos Músicos. Artistas e Amadores. Mortos e Vivos, impresso em Veneza, em 1758.

Sr. Romitelli! — gritava-lhe eu, vendo-o realizar essas operações com todo o sossego, sem dar o menor sinal de perceber a minha presença.

Mas era tempo perdido. Não seria capaz de ouvir nem tiros de canhão. Eu o sacudia pelo braço e ele, então, voltava-se, piscava os olhos, contraía o rosto todo para me lançar uma olhadela. Depois, mostrava-me os dentes amarelos, talvez na intenção de, assim, sorrir-me; por fim, inclinava a cabeça em cima do livro, como se quisesse usá-lo a modo de travesseiro; mas não era nada disso: lia daquele jeito, a dois centímetros de distancia, com um só olho; e lia em voz alta:

Birnbaum, Giovanni Abramo... Bimbaum, Giovanni Abramo, mandou imprimir... Birnbaum, Giovanni Abramo, mandou imprimir em Leipzig, em 1738... em Leipzig, em 1738... um opúsculo em oitavo... em oitavo: Observações Imparciais sobre uma Passagem Delicada do Músico Crítico. Mitzler... Mitzler inseriu... Mitzler inseriu este escrito no primeiro volume da sua Biblioteca Musical. Em 1739...

E continuava assim, repetindo duas ou três vezes nomes e datas, como para aprendê-los de cor. Por que lia assim em voz alta, não sei. Repito: não seria capaz de ouvir nem tiros de canhão.

Eu ficava olhando para ele, admirado. Que podia importar a esse homem, reduzido àquele estado, já com um pé na cova (morreu, com efeito, quatro meses depois de minha nomeação para bibliotecário), que podia importar-lhe que Birnbaum, Giovanni Abramo, tivesse mandado imprimir em Leipzig, em 1738, um opúsculo em oitavo? E se, ao menos, a leitura não lhe custasse aquele esforço todo! E preciso, realmente, convir em que não podia dispensar nem aquelas datas nem aquelas notícias a respeito de músicos (ele, tão surdo), e artistas amadores, mortos e vivos até 1758. Ou acreditaria, talvez, que um bibliotecário, visto que a biblioteca existia para alguém ficar ali lendo, tivesse a obrigação de ler ele próprio, dado que nunca vira aparecer por lá vivalma, e apanhara aquele livro como poderia ter apanhado outro? Estava tão caduco que também essa suposição é possível e, aliás, muito mais provável do que a primeira.

O fato, porém, é que, na grande mesa, lá no meio, havia uma camada de pó com ao menos um dedo de altura; a tal ponto que eu, para reparar, de alguma forma, a negra ingratidão dos meus concidadãos, pude traçar nela, em grandes letras, esta inscrição:

AO

MONSENHOR BOCCAMAZZA

GENEROSÍSSIMO DOADOR

EM ETERNO TESTEMUNHO DE GRATIDÃO

OS CONCIDADÃOS

COLOCARAM ESTA LÁPIDE.

Além disso, de vez em quando, despencavam das estantes dois ou três livros, seguidos de certas ratazanas grandes como coelhos.

Significaram, para mim, como a maçã de Newton.

— Achei! — exclamei, todo feliz. — Aí está uma ocupação para mim, enquanto Romitelli fica lendo o seu Birnbaum.

E, para começar, escrevi um bem elaborado ofício, em qualidade de bibliotecário, ao ilustríssimo cavaliere Gerolamo Pomino, assessor municipal para a Instrução Pública, a fim de que a Biblioteca Boccamazza ou de Santa Maria Liberal fosse, com a maior urgência, provida de um par de gatos, pelo menos, cujo sustento não acarretaria quase nenhuma despesa à municipalidade, considerando que os referidos animais encontrariam farta alimentação no produto de sua caça. Acrescentava que não seria mau prover a biblioteca, ademais, de uma meia dúzia de ratoeiras e da necessária isca, para não dizer “queijo”, palavra vulgar que, como funcionário subalterno, não julguei conveniente submeter à leitura de um assessor municipal para a Instrução Pública.

Mandaram-me, inicialmente, dois gatinhos tão mirrados que se assustaram logo com aquelas enormes ratazanas, e, para não morrer de fome, eles é que se enfiavam nas ratoeiras e comiam o queijo. Todas as manhãs encontrava-os lá dentro, aprisionados, magros, feios e tão agoniados, que parecia não terem mais nem força nem vontade para miar.

Reclamei. E vieram, então, dois bonitos gatões, rápidos e sérios, que, sem perda de tempo, começaram a cumprir seu dever. As ratoeiras também serviam: e estas me davam os ratos vivos.