Ora, certa tarde, ressentido de que Romitelli não quisesse tomar o menor conhecimento daquelas minhas fadigas e vitórias, como se ele tivesse unicamente a obrigação de ler e os ratos, a de roerem os livros da biblioteca, eu quis, antes de sair, enfiar dois deles, vivos, na gaveta da sua mesinha. Tinha a esperança de estragar-lhe, ao menos, na manhã seguinte, a habitual e enfadonha leitura. Qual nada! Assim que abriu a gaveta e sentiu passarem-lhe correndo, debaixo do nariz, os dois bichos, virou-se para mim, que já não conseguia me segurar e rompia numa gargalhada, e perguntou:
— O que foi?
— Dois ratos, sr. Romitelli!
— Ah, ratos... — comentou calmamente.
Eram de casa, estava acostumado a eles. E recomeçou, como se nada tivesse acontecido, a leitura do seu livro antigo.
* * *
No Tratado das Árvores, de Giovan Vittorio Soderini, lê-se que os frutos amadurecem, “em parte, pelo calor e, em parte, pelo frio; por isso o calor, como a todos é evidente, consegue a força de cozimento e é a simples causa da maturação”. Ignorava Giovan Vittorio Soderini, portanto, que, além do calor, os vendedores de frutas experimentaram outra “causa da maturação”. Para levar as primícias ao mercado e vendê-las mais caro, eles colhem as frutas, maçãs, pêssegos e peras, antes que cheguem à condição que as torna sadias e saborosas; e fazem que amadureçam à força de amassadelas, pelas batidas que levam.
Exatamente assim chegou à maturação a minha alma, ainda verde.
Em pouco tempo, transformei-me em outro. Depois que morreu Komitelli, encontrei-me aqui, sozinho, consumido pelo tédio, nesta igrejinha fora de mão, no meio de todos estes livros; terrivelmente só e, contudo, sem vontade de nenhuma companhia. Poderia demorar-me poucas horas; mas tinha vergonha de que me vissem, assim, reduzido à miséria, pelas ruas da aldeia; evitava minha casa como uma prisão; e, por conseguinte, é melhor ficar aqui mesmo, repetia com os meus botões. Mas o que fazer? A caça aos ratos, está bem; mas isso podia me bastar?
A primeira vez que me aconteceu encontrar-me com um livro nas mãos, apanhado ao acaso, sem dar por isso, numa das estantes, tive um calafrio de horror. Com que, então, eu me reduziria, como Romitelli, a sentir-me na obrigação de ler, eu, bibliotecário, por todos os que não vinham à biblioteca? E joguei o livro ao chão. Porém, depois, voltei a apanhá-lo; e, sim, senhores, comecei a lê-lo, eu também, e também apenas com um olho, porque o outro não queria saber disso.
Li, assim, um pouco de tudo, desordenadamente; mas, sobretudo, livros de filosofia. São muito pesados; contudo, quem deles se alimenta, imbuindo-se em seu conteúdo, vive nas nuvens. Desarranjaram ainda mais meu cérebro, já por si extravagante. Quando ficava com a cabeça zonza, fechava a biblioteca e ia, por uma íngreme senda, até uma nesga de praia solitária.
A vista do mar punha-me num estado de atônito pavor, que, aos poucos, se tornava intolerável opressão. Sentava- me na praia e evitava olhar para ele, baixando a cabeça; mas ouvia-lhe ao longo da costa toda, o estrondo, enquanto, lentamente, deixava escorregar entre meus dedos a areia densa e pesada, murmurando:
— Assim, sempre, até a morte, sem nenhuma mudança, jamais...
A imobilidade da condição da vida que eu levava sugeria-me, então, pensamentos inopinados, estranhos, quase lampejos de loucura. Erguia-me num pulo, como para sacudir essa loucura de cima de mim, e punha-me a passear à beira da água; mas via, então, o mar mandar, sem tréguas, suas vagas cansadas e sonolentas para a praia; via aquelas areias abandonadas; e bradava com raiva, sacudindo os punhos:
— Mas por quê? Por quê?
E molhava os pés.
Talvez o mar alongasse um pouco mais alguma onda com o objetivo de me censurar:
— “Estás vendo, meu caro, o que se ganha em perguntar certos porquês? Molha os pés. Volte para a sua biblioteca! Água salgada estraga os sapatos; e dinheiro para jogar fora é que não tem. Volte para a sua biblioteca e deixe os livros de filosofia; vá, vá também, de preferência, ler que Bimbaum, Giovanni Abramo, mandou imprimir em Leipzig, em 1738, um opúsculo em oitavo: não há dúvida de que lhe será mais proveitoso”.
Mas um dia, finalmente, vieram dizer-me que minha mulher tinha sido acometida pelas dores do parto e que corresse logo para casa. Fugi como um cervo: porém mais para escapar de mim mesmo, para não ficar nem um só minuto a sós comigo pensando que estava para ter um filho: eu, naquelas condições, um filho!
Mal cheguei ao portão da casa, minha sogra me agarrou pelos ombros e me fez rodar sobre mim mesmo:
— Um médico! Corra! Romilda está morrendo!
É de cair para trás, não é? Uma notícia dessa, assim, à queima-roupa. Pois, ao contrário, “Corra!” E já não sentia as pernas; não sabia mais para que lado ir; e, enquanto corria, não sei como, continuava repetindo: “Um médico! Um médico!”; e as pessoas paravam na rua e queriam que eu também parasse, para explicar o que havia me acontecido; sentia que me puxavam pelas mangas, via, na minha frente, rostos pálidos, consternados; desviava-me, fugia de todos: “Um médico, um médico!”.
E o médico, nesse meio tempo, já estava lá, na minha casa. Quando, esbaforido, num estado lastimável, depois de correr todas as farmácias, regressei para casa, desesperado e furioso, a primeira menina já tinha nascido; e era um custo fazer vir ao mundo a outra.
— Duas!
Parece-me, ainda, que as estou vendo, ali, no berço, uma ao lado da outra: arranhavam-se mutuamente com as mãozinhas tão gráceis e, não obstante, quase providas de garras por um instinto selvagem, que incutia repugnância e piedade: miúdas e mirradas, mais do que os dois gatinhos que, todas as manhãs, encontrava presos nas ratoeiras, e elas, também sem força de vagir, como aqueles de miar; e, apesar disso, não é que se arranhavam?
Afastei-as uma da outra e, ao primeiro contato com aquelas carninhas tenras e frias, senti um arrepio novo, um tremor de ternura, indescritível: eram minhas!
Uma delas morreu poucos dias depois; a outra, ao contrário, quis dar-me tempo de que me afeiçoasse a ela, com todo o ardor de um pai que, nada mais tendo, faça da sua própria criaturinha a única finalidade da existência; quis ter a crueldade de morrer quando já contava quase um ano de idade e se tornara tão bonitinha, com aqueles cachos de ouro, que eu enrolava nos meus dedos e beijava, sem jamais saciar-me de beijá-los; chamava-me papai e eu respondia logo:
— Filha.
E ela, de novo:
— Papai... — Assim, sem motivo, tal como os pássaros se chamam entre si.
Morreu ao mesmo tempo que mamãe, no mesmo dia e quase na mesma hora. Eu não sabia mais como repartir os meus cuidados e a minha dor. Deixava a menininha descansando e corria a ver mamãe, que não se preocupava consigo, com a sua própria morte, e pedia-me notícias dela, da neta, angustiada de não poder mais revê-la, beijá-la pela última vez. E durou nove dias aquele desespero! Pois bem, depois de nove dias e nove noites de vigília contínua, sem pregar olho nem por um minuto... devo dizê-lo? Muitos, talvez, teriam escrúpulos em confessá-lo; porém é humano, absolutamente humano, não senti pena, no momento: fiquei, durante um certo tempo, num horror atônito, pavoroso, e adormeci. Tive, primeiro, de dormir. Depois sim, quando acordei, a dor me assaltou, furiosa, feroz, pela minha filhinha, por minha mamãe, que não viviam mais...
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