Minha mãe, incapaz de administrar a herança, teve de confiá-la a um indivíduo, que, depois de receber de meu pai tantos benefícios, a ponto de mudar de situação social, ela julgou que devesse sentir, ao menos, a obrigação de um pouco de gratidão, pois esta, além do cuidado e honestidade, não lhe custaria nenhum tipo de sacrifícios, lautamente remunerado como era.

Uma santa mulher, minha mãe! De temperamento retraído e muito pacata, possuía muito pouca experiência da vida e dos homens. Ouvindo-a falar, parecia uma criança. Falava em tom fanhoso e ria, também, com o nariz, visto que, todas as vezes, como se tivesse vergonha de rir, apertava os lábios. De compleição muito delicada, andou sempre meio combalida, após a morte de meu pai; mas nunca se queixou de seus males e não creio que se apoquentasse muito por eles, aceitando-os, resignada, como uma conseqüência natural da sua desventura. Talvez contasse que ela também morreria, de dor; devia, portanto, agradecer a Deus, que a mantinha em vida, ainda que infeliz e atribulada, para o bem dos filhos.

Dedicava a nós uma ternura até mesmo mórbida, cheia de ansiedades e de temores; queria-nos sempre por perto, como se temesse nos perder; e, amiúde, mandava as criadas revistarem a ampla casa, logo que um de nós se afastava, por pouco que fosse.

Como cega, havia se entregado à orientação do marido; sem ele, sentiu-se perdida no mundo. E não saiu mais de casa, salvo aos domingos, de manhã cedo, para ir à missa na igreja vizinha, acompanhada de duas velhas criadas, que ela tratava como parentes. Na própria casa, aliás, reduziu-se a viver em três quartos, apenas, abandonando os muitos outros aos escassos cuidados das criadas e às nossas travessuras. Exalava-se, nesses quartos, de todos os móveis de feitio antigo e das cortinas desbotadas, o especial bafio das coisas antigas, quase o hálito de tempos idos; lembro-me de que, mais de uma vez, olhei a meu redor com uma estranha consternação, que me vinha da silenciosa imobilidade daqueles velhos objetos, desde tantos anos lá, sem uso, sem vida.

Entre as pessoas que com maior freqüência vinham visitar mamãe, havia uma irmã de meu pai, solteirona rabugenta, com dois olhos de fuinha, morena e orgulhosa. Chamava-se Scolastica. Suas visitas, porém, eram curtíssimas, porque, de repente, conversando, se enfurecia e ia embora sem despedir-se de ninguém. Quando criança, eu a temia muito. Olhava para ela espantado, sobretudo quando a via levantar-se de súbito, furiosa, e a ouvia gritar, dirigindo-se a minha mãe e batendo raivosamente um pé no chão.

Está ouvindo o vazio? A toupeira! A toupeira!

Referia-se a Malagna, o administrador, que, sorratei-ramente, nos ia escavando a cova debaixo dos pés.

Tia Scolastica (eu fiquei sabendo disso mais tarde) queria de toda maneira que minha mãe tornasse a se casar. Habitualmente, as cunhadas não têm dessas idéias nem dão desses conselhos. Mas ela possuía um sentimento rígido e embirrado da justiça; e, com certeza mais por isso do que por amor a nós, não podia tolerar que aquele homem nos roubasse assim, tranqüilamente. Ora, considerando a absoluta inépcia e cegueira de minha mãe, ela não via outro remédio senão um segundo marido. E o indicava, também, na pessoa de um pobre homem chamado Gerolamo Pomino.

Este era viúvo, com um filho que ainda vive e se chama Gerolamo, como o pai: era grande amigo meu, e, inclusive, como direi adiante, mais do que amigo. Desde menino, vinha com o pai à nossa casa e era o meu desespero e o de meu irmão Berto.

O pai, na juventude, almejara longamente se casar com tia Scolastica, que não quisera saber dele, como, aliás, de nenhum outro; e, isso, não porque não sentisse em si disposições para o amor, mas porque a mais remota suspeita de que o homem por ela amado pudesse enganá-la, mesmo que só em pensamento, a levaria, ela dizia, a um crime. Todos uns fingidos, os homens, para ela; velhacos e traidores. Também Pomino? Não; bem, Pomino, não. Mas percebera isso tarde demais. De todos os homens que haviam pedido sua mão e, depois, se casaram com outras, ela conseguira descobrir alguma traição, que lhe proporcionara um prazer feroz. Somente de Pomino, nada; o pobre homem, ao contrário, é que havia sido um mártir da esposa.

Por que, então, ela não se casava com ele? Porque era viúvo!, pertencera a outra mulher, na qual, possivelmente, vez por outra poderia pensar. E depois, porque... ora!, via-se à distância de cem léguas, malgrado a timidez, que estava apaixonado; estava apaixonado... já se sabe por quem, o pobre sr. Pomino!

Imaginem se minha mãe aceitaria. Acharia aquilo um verdadeiro sacrilégio. Mas, pobrezinha, tampouco acreditava que tia Scolastica falasse a sério; e ria, com sua especial maneira, das raivas da cunhada e das exclamações do pobre sr. Pomino, que se encontrava presente àquelas discussões e a quem a solteirona dispensava os mais desbragados elogios.

Imagino quantas vezes ele terá exclamado, remexendo-se na cadeira como num instrumento de tortura:

Oh, santo nome de Deus!

Homenzinho muito atencioso, arrumado, de olhinhos azuis e mansos, penso que usava pó-de-arroz e tinha, também, a fraqueza de passar um pouco de carmim, um nadinha, um véu, nas faces; com certeza se ufanava de haver conservado, até a sua idade, os cabelos, que penteava com esmero, repartidos em duas pastinhas por uma risca ao meio e que levava o tempo todo endireitando com as mãos.

Não sei como acabariam os nossos negócios se minha mãe, certamente não por si, mas pensando no futuro dos filhos, seguisse o conselho de tia Scolastica, casando-se com o sr. Pomino.