Por último, deixou cair a adaga enferrujada dentro das grossas botas do embaixador, onde o mordomo foi encontrá-la no dia seguinte de manhã.
Uma vez no refúgio da sua alcova, atirou-se para cima da estreita cama de lona e enterrou o rosto nos lençóis. Porém, transcorrido um tempo, a antiga coragem dos Cantervilles recuperou sua tradição. Decidiu ir falar com o outro fantasma logo que nascesse o dia. E apenas a aurora prateou as colinas, voltou ao local onde havia, pela primeira vez, lançado os olhos sobre o formidável espectro, raciocinando que, no final das contas, dois fantasmas valiam mais do que um e que, com a ajuda do seu novo colega, talvez vencesse melhor os gêmeos.
Mas quando ali chegou, no mesmo lugar, um horrível espetáculo feriu seus olhos. Era de todo evidente que acontecera qualquer coisa ao fantasma, porque a luz lhe desaparecera completamente das órbitas, o gládio luzidio escorregara-lhe da mão e o corpo encostava-se à parede numa atitude de constrangimento e incômodo.
Precipitou-se para ele e tornou-o nos braços. Mas, com assombro seu, a cabeça do outro rolou para o chão; o corpo foi-se abaixo e ele percebeu que estreitava apenas um cortinado de cama, de fustão branco, ao mesmo tempo que uma escova de cabo, um machado de cozinha e um nabo oco lhe jaziam aos pés. Incapaz de compreender esta curiosa transformação, pegou o letreiro com pressa febril e, à luz fosca da aurora, leu estas palavras abomináveis:
O FANTASMA OTIS
é o único, autêntico e original.
DESCONFIEM DAS IMITAÇÕES!
Como num relâmpago, compreendeu tudo. Tinham-lhe pregado uma peça! A característica expressão dos Cantervilles perpassou-lhe nos olhos; cerrou as maxilas sem dentes e, levantando muito alto, acima da cabeça, as mãos descamadas, jurou, segundo a fraseologia pitoresca da escola antiga, que, quando se ouvisse mais duas vezes o alegre apelo do galo, dar-se-iam ali acontecimentos sangrentos e a morte deslizaria por aqueles lugares em silenciosos passos.
Mal formulara este temível juramento, subiu, a distância, de uma granja coberta de telhas vermelhas, a voz de um galo. 0 fantasma soltou um prolongado e amargo riso e esperou. Hora após hora, esteve à espera; mas, por qualquer razão estranha, o galo não repetiu o canto. Por fim, às sete horas e meia, a chegada dos serviçais obrigou-o a abandonar o seu horrível posto de sentinela. Regressou ao quarto a passos lentos, a meditar na sua vã esperança e no seu abortado plano. Consultou, então, muitas obras a que dedicava particular apreço e que tratavam dos antigos tempos da cavalaria. Aí verificou que, em todas as vezes que tal juramento havia sido formulado, sempre o galo cantara a segunda vez.
— Diabos levem aquele maldito volátil! — resmungou ele. — Ali! Pena não me encontrar no tempo em que, com minha intrépida lança, lhe trespassaria a garganta e em que o teria obrigado a cantar só para mim até perder o sopro! Depois, estendeu-se num confortável ataúde de chumbo, em que permaneceu até o cerrar da noite.

IV
No dia seguinte, o fantasma estava muito fraco e cansadíssimo. Começava a ressentir-se dos efeitos da medonha agitação das quatro últimas semanas. Estava com os nervos abalados; até o menor ruído o sobressaltava. Não saiu do quarto durante cinco dias e decidiu por fim renunciar à nódoa de sangue no chão da biblioteca. Se a família Otis não queria aquilo, estava claro que, sem sombra de dúvida, não era digna do caso. Com plena evidência, essas pessoas viviam num plano de existência de baixo materialismo e eram em absoluto incapazes de apreciar o valor simbólico dos fenômenos sobrenaturais. O assunto das aparições espectrais e o desenvolvimento dos corpos astrais eram, bem entendido, coisas diferentes e alheias à atenção dessa gente. Ele, fantasma, tinha como missão, missão solene, aparecer no corredor uma vez por semana e ulular através de um janelão em ogiva na primeira e na terceira quarta-feira do mês e não via maneira de poder subtrair-se honrosamente às suas ocupações. A sua vida, é certo,fora culposa; mas, por outro lado, ele era rigidamente escrupuloso em tudo quanto se relacionava com o sobrenatural.
Três sábados a fio, o fantasma atravessou, portanto, o corredor como de costume, entre a meia-noite e as três horas da manhã, tomando mil precauções para não ser visto, nem ouvido. Tirou os sapatos, pisou tão levemente quanto possível as tábuas do assoalho roídas pelo cupim, enrolou-se no manto de veludo negro e pensou lubrificar seus grilhões. É inevitável reconhecer que não foi sem dificuldade que veio a adotar este derradeiro meio de proteção; mas, uma noite, na hora em que a família se preparava para ir jantar, ele introduziu-se nos aposentos de Mr. Otis e lançou mão do respectivo frasco. Ao fazê-lo, experimentou, a princípio, um pouco de humilhação, mas logo adquiriu inteligência bastante para se inteirar de que a invenção estava longe de ser má e de que, até certo ponto, lhe favorecia os planos.
Apesar de tudo, não o deixavam, entretanto, em paz. Estendiam, constantemente, cordas no corredor, nas quais, quando estava escuro, tropeçava; e uma vez, em que se encontrava vestido para desempenhar o papel do “Negro Isaac" ou do "Caçador de Hogley Woods”, teve uma queda muito grave sobre um declive que os gêmeos haviam armado e que ia da sala das tapeçarias até o alto da escada de carvalho. Esta última afronta pô-lo em tamanha fúria que resolveu fazer um derradeiro esforço a fim de restabelecer a sua dignidade e a sua posição social. Decidiu, pois, fazer uma visita na noite seguinte aos juvenis e insolentes colegiais de Eton no seu famoso disfarce de “Rupert, o Arrisca-Tudo", ou do "Conde-Sem-Cabeça”.
O fantasma já não fazia aparição alguma mascarado desta maneira há mais de setenta anos, precisamente desde que, assim vestido, aterrorizara a gentil Lady Bárbara Modisli, a ponto de ela ter rompido bruscamente as promessas de noivado com o avô do atual Lord Canterville e fugido para Grema Green com o belo Jack Castleton, declarando que nada neste mundo a faria entrar numa família que deixava um tão horrível fantasma percorrer o terraço, ao cair o crepúsculo.
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