Mais tarde, o pobre Jack foi morto em duelo por Lord Canterville em Wandsworth Common, e Lady Barbara, com o coração despedaçado, morreu em Tunbridge Wells, antes de findar aquele mesmo ano; de sorte que, de todos os aspectos, fora um esplêndido êxito.
Todavia, tratava-se de uma “composição” extremamente difícil (se me é permitido usar esta expressão de teatro a propósito de um dos maiores mistérios do sobrenatural, ou, para empregar um termo científico do mundo supranormal), e foram gastas precisamente três horas para executar os preparativos. Tudo se aprontou, finalmente.
Estava muitíssimo satisfeito com o seu aspecto. As altas botas de montar que condiziam com o traje eram um tanto largas de mais para ele, e não tinha podido achar senão uma das pistolas dos coldres da sela; mas, em suma, estava muito contente, e, à uma hora e um quarto, deslizou através do forro de madeira e desceu suavemente para o corredor. Chegando ao quarto que os gêmeos ocupavam (chamavam-no o quarto azul, por motivo do tom das pinturas), encontrou a porta entreaberta. Querendo fazer uma entrada de pleno efeito, empurrou bruscamente a porta, mas o conteúdo de um grande jarro entornou-se em cima dele e o próprio jarro, ao cair, roçou-lhe pela espádua esquerda.
No mesmo instante, risadas que alguém procurava reprimir subiram dos leitos de colunas. 0 abalo nervoso que experimentou foi tamanho que desatou a fugir para o seu esconderijo com a maior rapidez. No dia seguinte, muitíssimo resfriado, teve de conservar-se na cama. A consolação única que lhe restava era a de não ter levado a própria cabeça nesta expedição; do contrário, a imprudência poderia ter acarretado as mais graves consequências.
O fantasma abandonou, então, toda a esperança de assustar aquela grosseira família americana e contentou-se, afinal, em percorrer os corredores com chinelos de solas de feltro, o pescoço envolto num espesso cachecol vermelho, em virtude das correntes de ar, e empunhando um bacamarte, com receio de ser atacado pelos gêmeos. Foi a 19 de setembro que ele recebeu o golpe final.
O fantasma tinha descido ao vasto hall de entrada, certo de que ali ninguém o molestaria, e divertia-se a alvejar, com observações satíricas, as grandes fotografias do embaixador dos Estados Unidos e da mulher, assinadas por Saroni, que haviam substituído os retratos da família dos Cantervilles. Vestia um longo sudário, muito simples mas decente, salpicado de manchas de lama vinda do cemitério. Atara o queixo com uma ligadura de tela amarelada e segurava uma lanternazinha e uma enxada de coveiro. Numa palavra, estava disfarçado no papel de “Jonas, o Morto sem Sepultura”, ou “O Ladrão de Cadáveres de Chestsey Barn”, uma das suas mais notáveis criações, da qual os Cantervilles tinham excelentes razões para se lamentar, porque fora essa a verdadeira origem da desavença com o vizinho, Lord Rufford.
Eram aproximadamente duas horas e quinze da manhã. O fantasma podia afirmar que todos os moradores da casa repousavam. Mas ao dirigir-se, em ar de passeio, para a biblioteca, a fim de ver se ainda restava algum vestígio da mancha de sangue, saltaram de súbito sobre ele de um recanto escuro dois vultos que agitavam ferozmente os braços acima da cabeça e berravam “U-u! U-u!” nos ouvidos.
Tomado de pânico, o que em tais circunstâncias era muitíssimo natural, precipitou-se para a escadaria; porém, ali o esperava Washington com a grande mangueira do jardim.
Cercado de todos os lados pelos inimigos, literalmente encurralado, desapareceu no interior do enorme fogão, que, felizmente para ele, não estava aceso. Teve de abrir caminho através dos canos e das chaminés e alcançou seu quarto num terrível estado de sujeira, descontrole e desespero.
Após esta aventura renunciou às expedições noturnas. Os gêmeos muitas vezes se ocultaram à espera dele e, todas as noites, juncavam os corredores de cascas de nozes, coisa que aborrecia bastante os pais e os criados; mas foi tudo inútil. Era óbvio que o fantasma, ferido em seus sentimentos, se recusava a aparecer. Em consequência, Mr. Otis retomou sua grande obra sobre a “História do Partido Democrático”, em que vinha trabalhando por muitos anos. Mrs. Otis organizou um maravilhoso festival de frutos do mar, que causou espanto em toda a região. Os rapazes dedicaram-se aos jogos de cross, écarté, poker e a outros entretenimentos nacionais americanos. Virgínia percorreu em seu potro todos os caminhos circunvizinhos, levando o clambake, prato feito de moluscos de todas as espécies, cozidos entre camadas de algas sobre pedras em brasa.
O Duque de Cheshire tinha vindo passar no Parque Canterville sua última semana de férias. Supôs-se, naturalmente, que o fantasma desaparecera dali e Mr. Otis escreveu a Lord Canterville para informá-lo do caso. Este respondeu que a notícia lhe dava grande prazer e enviou os seus cumprimentos à digna esposa do embaixador.
Mas os Otis se enganaram, porque o fantasma permanecia ainda na casa e, embora estivesse agora quase inválido, não tinha de forma alguma a intenção de ficar quieto, sobretudo desde que soube que, entre os convidados, estava o Duquezinho de Cheshire, cujo tio-avô, Lord Francis Stilton, apostara um dia cem guinéus em como jogaria dados com o fantasma de Canterville, vindo a ser encontrado, na manhã seguinte, estendido no chão da sala de jogos completamente paralítico. Não obstante ter vivido até avançada idade, nunca pôde dizer senão isto: “Duplo-seis!” A história era bem conhecida na época em que sucedera o caso; mas, para poupar o sentimento de duas famílias nobres, tudo foi feito para ocultar o fato. Todavia, é possível encontrar uma narrativa pormenorizada a respeito do caso no terceiro volume da obra de Lord Tattle: “Memórias Relativas ao Príncipe Regente e seus Amigos.” Era consequentemente natural que o fantasma quisesse provar que não tinha perdido a influência sobre os Stilton, aos quais o unia um parentesco afastado, porque uma sua prima-irmã se casara em segundas núpcias com o Senhor de Bulkeley, de quem os Duques de Cheshire, como se sabe, descendem em linha direta. Assim, tomou as providências para aparecer ao jovem enamorado de Virgínia na sua célebre criação do “Monge Vampiro” ou “Beneditino Exangue”, espetáculo tão horrível que quando a velha Lady Startup o viu, coisa que lhe sucedeu nessa fatal véspera do ano de 1764, desatou nos mais dilacerantes gritos, que terminaram num ataque de apoplexia; morreu três dias depois, não sem ter deserdado a família, seus parentes mais próximos, deixando todo o dinheiro que possuía ao seu farmacêutico de Londres.
Mas, à última hora, o terror que lhe davam os gêmeos impediu o fantasma de abandonar seu quarto. E, nos aposentos reais, o jovem duque dormia em paz no vasto leito de baldaquino ornado de plumas, e sonhava com Virgínia.

V
Passados uns dias, Virgínia e seu apaixonado de cabelos encaracolados percorriam a cavalo as pradarias de Brockley; foi quando a jovenzinha, ao sentir-se presa numa sebe, rasgou o vestido de amazona tão desastradamente que, ao reentrar em casa, decidiu tomar a escada secreta para que ninguém a visse.
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