Ele nem sequer sabe manipulá-lo muito bem: no capítulo central do livro (o capítulo 5), ao reencontrar Daisy após tantos anos, ele quase derruba um relógio no chão. Esse relógio está “quebrado”, o que talvez faça dele uma companhia perfeita e testemunha material da tentativa de Gatsby de parar o tempo, só que em toda parte os relógios estão funcionando a pleno vapor. (Há, neste romance, um número excepcionalmente alto de palavras relacionadas ao tempo — mais de quatrocentas.) Não surpreende que ele tenha encarado a filha de Daisy com tamanha surpresa: “Acho que até então ele não havia cogitado a sério sua existência”. E a Tom basta mencionar as datas e lugares em que possuiu Daisy sexualmente para desmontar o rival por completo. Eu diria que Gatsby — “Jay Gatsby” — desabou feito um castelo de cartas diante da malícia de Tom, e o longo e secreto espetáculo havia chegado ao fim. A identidade arquitetada e o simulacro de Gatsby, ambos produzidos pela ideia esperançosa de uma Daisy resgatável e recomprável e de um tempo recuperado, caíram em ruínas. Daisy continuava subornada.
O adjetivo “grande” seria, portanto, uma ironia ou uma hipérbole esperançosa que recai em si mesma? Seria esse logro reconfortante a obra de um solteirão fracassado e desgraçado, que inventa uma figura “grandiosa” para compensar o “deplorável” Meio-Oeste ao qual retorna — teria Nick empreendido uma falsificação da falsificação de Gatsby? Não é tão simples assim, embora muitos acreditem nisso. Sabemos pelo próprio Nick até que ponto é exatamente isso. Assim como Gatsby fornece aqui e ali uma insinuação clara de sua fraude, também Nick o faz com o leitor atento. Após o embate demolidor com a dura “rocha” de Tom, resta a Gatsby algo além dos estilhaços de sua identidade construída, algo que, no fim, ele articula insatisfatoriamente e encarna com imperfeição, mas que é parte da “essência” dessa nação que se autoinventa e assume a própria paternidade, nação da qual ele é um produto tão notável e representativo. À maneira de Nick, podemos chamar de “um talento extraordinário para a esperança, uma prontidão romântica”, uma adesão à convicção ou instinto de que deve haver algo na vida além da deterioração circundante, além da materialidade desejável, egoísta e simples com a qual os Buchanan se sentem tão negligentemente à vontade. O fato de essa esperança assumir a forma de um sonho romântico ou de uma obsessão impossível, a um só tempo condenada e irrealizável, não invalida necessariamente a carência ou o desejo que a nutre. Se a “vitalidade colossal de sua ilusão” afinal atinge um patamar “além de tudo”, sofrendo uma decepção ou caindo em desgraça, isso não quer dizer que a apatia resultante de determinada desilusão seja a melhor saída. Significa que há um tipo específico de tristeza neste livro. Pois há páthos (e também, se preferir, certa puerilidade) na figura de Gatsby — sua aura de solidão e isolamento, o vazio que emana de sua mansão, suas pilhas de “camisas bonitas”, sua generosidade nunca reconhecida (ninguém lhe agradece por assumir a culpa no lugar de Daisy, o que lhe custaria a vida), sua morte cruel e o funeral solitário. Na medida em que Gatsby — “Gatsby” — é exagerado, tolo e predestinado à tragédia, diz o livro, assim também é a América.
Passado algum tempo da publicação do romance, Fitzgerald escreveu a Marya Mannes: “A grande promessa da América é a de que algo está para acontecer, e depois de um tempo você fica cansado de esperar porque nada acontece às pessoas exceto envelhecer, e nada acontece à arte americana porque a nossa história é a da lua que nunca se eleva no céu” (outubro de 1925). No famoso desfecho de O grande Gatsby, quando a lua enfim se eleva no céu, ergue-se também um dos parágrafos mais famosos da literatura americana:
Conforme a lua subia no céu, as casas insignificantes passaram a se dissolver até que, pouco a pouco, meus pensamentos desaguaram na antiga ilha selvagem que surgira aos olhos dos marinheiros holandeses neste exato lugar — o seio verde e frondoso de um Novo Mundo. Suas árvores extintas, aquelas que cederam lugar à casa de Gatsby, outrora estimularam os sonhos derradeiros e mais ambiciosos dos homens; por um momento transitório e mágico, alguém deve ter prendido o fôlego à vista deste continente, compelido a uma contemplação estética que não compreendia e tampouco desejava, face a face, pela última vez na história, com algo proporcional à sua capacidade de maravilhar-se. [Grifo meu.]
Esse trecho pertencia originalmente ao primeiro capítulo do livro, até que, após uma de suas revisões certeiras, Fitzgerald o transportou para o final, no ocaso da narrativa onde esse tom crepuscular é tão adequado. Sua posição inicial no texto indica que o livro sempre se propôs a ser uma elegia, permeada pela ideia de algo fracassado e perdido — uma chance que escapou, um sonho condenado. O “seio verde e frondoso de um Novo Mundo”, cerne de uma possível vida nova, poderia ter fornecido um suprimento inesgotável de “leite de assombro”. Seja o que for que os marinheiros buscavam — todos, de puritanos a piratas —, eles não vieram para maravilhar-se com a América, mas antes para “estuprá-la”, usando a metáfora de William Carlos Williams para as várias e múltiplas formas de espoliação da terra. O seio verde do novo mundo cedeu lugar, enquanto imagem, ao espetáculo chocante do seio esquerdo de Myrtle, “dependurado livremente como um trapo” após o acidente na estrada. Fitzgerald foi muito incisivo em reter essa imagem: “Eu quero que o seio de Myrtle Wilson seja arrancado — é isso mesmo, eu acho” (para Maxwell Perkins, circa 20 de dezembro de 1924). É óbvio que Fitzgerald sabia o que estava fazendo. Ele quis mostrar a América profanada, mutilada, violada. Fossem quais fossem os auspícios do novo mundo — e as tentativas incoerentes, esperançosas e ainda assim desesperançadas de Gatsby dão uma indicação vaga, residual e distorcida de uma “capacidade de maravilhar-se”, desejada e não inteiramente compreendida, que poderia ter sido essencial para aperfeiçoar a América, a última grande chance da humanidade —, enfim, fossem quais fossem suas promessas, a América conseguiu tornar-se completamente acidental e propensa ao acaso. O que poderia ter sido o paraíso (um tema endêmico à literatura americana) tornou-se uma terra desolada.
Fitzgerald sabia praticamente de cor o poema de T. S. Eliot (“A terra desolada”), e decerto criou sua própria versão de deserto no vale das cinzas (um dos títulos que cogitou para o livro foi Entre cinzas e milionários): “um sítio surreal onde as cinzas crescem como trigo em sulcos, colinas e jardins grotescos; onde as cinzas tomam a forma de casas, chaminés e fumaça e, por fim, num esforço transcendental, assumem a forma de homens cinzentos que se movem debilmente e se desmancham no ar poeirento.
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