Onde nos pretendeis levar nesta marcha?
– Vereis.
– Já que não há meio de vos sacar mais palavra, segui com Deus, misser Loredano.
– Sim, acudiu Rui Soeiro, segui; que nós tornamos por onde viemos.
– Quando estiverdes de vez para falar, nos avisareis.
E os dois aventureiros pararam dispostos a retroceder; o italiano voltou-se com um gesto de desprezo.
– Parvos que sois! disse ele. Se vos parece, revoltai-vos agora que estais em meu poder, e que não tendes outro remédio senão seguir a minha fortuna! Voltai!... Também eu voltarei; mas para denunciar-vos a todos.
Os dois aventureiros empalideceram.
– Não me façais lembrar, Loredano, disse Rui Soeiro abaixando um olhar rápido para o punhal, que há um meio de fechar para sempre as bocas que se obstinam a falar.
– Isto quer dizer, replicou o italiano desdenhosamente, que me mataríeis no caso de que eu vos quisesse denunciar?
– À fé que sim! respondeu Rui Soeiro com um tom que mostrava a sua resolução.
– E eu pela minha parte faria o mesmo! Primeiro está a nossa vida que as vossas venetas, misser italiano.
– E que ganharíeis vós em matar-me? perguntou Loredano sorrindo.
– Essa é melhor! que ganharíamos? Achais que é coisa de pequena valia assegurar a sua existência e o seu descanso?
– Néscios!... disse o italiano cobrindo-os com um olhar de desprezo e de piedade ao mesmo tempo. Não vedes que quando um homem traz um segredo como o meu, a menos que esse homem não seja um truão da vossa laia, ele deve ter tomado as suas precauções contra estes pequenos incidentes?
– Bem vejo que estais armado, e mais vale assim, respondeu Rui Soeiro; será morte antes que homizio.
– Direis melhor, execução, Rui Soeiro! retrucou Bento Simões.
O italiano continuou:
– Não são essas armas que me servirão contra vós; outras tenho eu que mais podem; sabei unicamente que, vivo ou morto, a minha voz virá de longe, até mesmo da campa, denunciar-vos e vingar-me.
– Quereis gracejar, misser italiano? A ocasião não é azada.
– A seu tempo vereis se gracejo. Tenho na mão de D. Antônio de Mariz o meu testamento, que ele deve abrir quando me saiba ou me julgue morto. Nesse testamento conto as relações que existem entre nós, e o fim para que trabalhamos.
Os dois aventureiros tornaram-se lívidos como espetros.
– Compreendeis agora, disse Loredano sorrindo, que se me assassinardes, se um acidente qualquer me privar da vida, se me der na cabeça mesmo fugir e fazer supor que morri, estais perdidos irremediavelmente.
Bento Simões ficou paralisado como se uma catalepsia o tivesse fulminado. Rui Soeiro, apesar do violento abalo que sentia, conseguiu com um esforço recobrar a palavra.
– É impossível!... gritou ele. Isso que dizeis é falso. Não há homem que o fizesse.
– Ponde à prova! respondeu o italiano calmo e impassível.
– Ele o fez... estou certo... balbuciou Bento Simões em voz sumida.
– Não, retrucou Rui Soeiro; Satanás não o faria. Vamos, Loredano: confessai que nos enganastes, que quisestes atemorizar-nos?
– Disse a verdade.
– Mentes! gritou o aventureiro desesperado.
O italiano sorriu: tirando a sua espada estendeu a mão sobre a cruz do punho, e disse lentamente deixando cair as palavras uma a uma:
– Por esta cruz e pelo Cristo que nela sofreu; por minha honra neste mundo, e minha alma no outro, juro.
Bento Simões caiu de joelhos esmagado por este juramento, que não deixava de ter alguma solenidade no meio da floresta sombria e silenciosa.
Rui Soeiro, pálido, com os olhos a saltarem-lhe das órbitas, os lábios trêmulos, os cabelos eriçados e os dedos hirtos, parecia a múmia do desespero.
Estendeu os braços para Loredano, e exclamou com a voz trêmula e sufocada:
– Pois vós, Loredano, confiastes a D. Antônio de Mariz um papel onde existe a maquinação infernal que tramastes contra sua família?
– Confiei-o!
– E nesse papel escrevestes que o pretendeis assassinar a ele e a sua mulher, e lançar fogo à casa se preciso for para a realização de vossos intentos?
– Escrevi tudo!
– Tivestes o arrojo de confessar que tencionais roubar sua filha e fazer dela, nobre moça, a barregã de um aventureiro e réprobo como vós?
– Sim!
– E dissestes também, continuou Rui no auge da desesperação, que a outra sua filha nos pertencerá, a nós que jogaremos à sorte para decidir a qual deverá tocar?
– Não me esqueci de nada, e menos desse ponto importante, respondeu o italiano com um sorriso; tudo isso está escrito em um pergaminho, nas mãos de D. Antônio de Mariz. Para sabê-lo, basta que o fidalgo rompa os pingos de cera preta com que mestre Garcia Ferreira[30], tabelião do Rio de Janeiro, o cerrou na minha penúltima viagem.
Loredano pronunciou estas palavras com a maior calma, contemplando os dois aventureiros pálidos e humilhados diante dele.
Passou-se algum tempo em silêncio.
– Já vedes, disse o italiano, que estais na minha mão; sirva-vos isto de exemplo. Quando uma vez se pôs o pé sobre o precipício, amigos, é preciso caminhar por cima dele, para não rolar e ir ao fundo. Caminhemos, pois. Só de uma coisa vos advirto; – de hoje em diante obediência cega e passiva!
Os dois aventureiros não disseram palavra; porém a sua atitude respondia melhor do que mil protestos.
– Agora deixai essa cara triste e consternada. Estou vivo: e D. Antônio é um verdadeiro fidalgo incapaz de abrir um testamento. Criai esperança, confiai em mim, que breve alcançaremos a meta.
A fisionomia de Bento Simões reanimou-se.
– Falai claro uma vez ao menos, retrucou Rui Soeiro.
– Não aqui; segui-me, que vos levarei a um lugar onde conversaremos à vontade.
– Esperai, acudiu Bento Simões; antes de tudo, reparação vos é devida. Há pouco vos ameaçamos; aqui tendes as nossas armas.
– Sim, depois do que se passou, é justo que desconfieis de nós; tomai. Os dois tiraram os punhais e as espadas.
– Guardai as vossas armas, disse Loredano escarnecendo, servirão para me defenderdes. Eu sei quanto vos é preciosa e cara a minha existência!
Ambos os aventureiros empalideceram, e seguiram o italiano, que depois de uma meia hora de caminho chegou à touça de cardos que já descrevemos.
A um sinal de Loredano, os seus companheiros subiram à árvore, e desceram pelo cipó ao centro dessa área cercada de espinhos, que tinha quando muito três braças de comprimento sobre duas de largura.
De um lado, na quebrada que fazia o terreno, via-se uma espécie de gruta ou abóbada, restos desses grandes formigueiros que se encontram pelos nossos campos, já meio aluídos pela chuva. Neste lugar, à sombra de um pequeno arbusto que nascera entre os cardos, sentaram-se os três aventureiros.
– Oh! disse o italiano imediatamente; há algum tempo já que não venho dessas bandas; mas parece-me que ainda deve haver aqui o quer que seja que vos dará no goto.
Reclinou-se, e estendendo o braço pela cava retirou uma botija que ali estava deitada, e que colocou no meio do grupo.
– É de Caparica, mas do bom. Deste cá não vem!
– Diabo! tendes uma adega!... exclamou Bento Simões a quem a vista da botija tinha restituído todo o bom humor.
– A falar a verdade, disse Rui, esperaria tudo, menos ver sair deste buraco uma botija de vinho.
– É para verdes! Como costumo vir a este lugar, onde às vezes passo bem boas soalheiras, precisava ter um companheiro com quem espairecesse.
– E não podíeis achar melhor! disse Bento Simões dando uma empinadela à botija e estalando a língua.
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