Já lhe tinha saudades!

Cada um dos três tomou a sua vez de vinho e a botija voltou ao seu lugar.

– Bom, disse o italiano, agora tratemos do que serve. Prometi, quando vos convidei a seguir-me, que vos faria ricos, muito ricos.

Os dois inclinaram a cabeça.

– A promessa que vos fiz vai-se realizar: a riqueza está aqui perto de nós, podemos tocá-la.

– Onde? perguntaram os aventureiros lançando um olhar ávido em roda.

– Não vai assim também; fala-se figuradamente. Digo que a riqueza está diante de nós, mas para nos apoderarmos dela é preciso...

– O quê? Dizei?

– A seu tempo; agora quero contar-vos uma história.

– Uma história! replicou Rui Soeiro.

– Da carocha? perguntou Bento Simões.

– Não, uma história verídica como uma bula do nosso santo padre. Ouvistes falar, algum dia, em um certo Robério Dias?[31]

– Robério Dias... Ah! sei! um tal do São Salvador? disse Rui Soeiro.

– O mesmo, sem tirar nem pôr.

– Vi-o há coisa de oito anos em São Sebastião, donde se passou às Espanhas.

– E sabeis o que ia fazer às Espanhas esse digno descendente de Caramuru, amigo Bento Simões? perguntou o italiano.

– Ouvi rosnar que se tratava de um tesouro fabuloso que contava oferecer a Filipe II, o qual em volta o faria marquês e grande fidalgo de sua casa.

– E o resto, não vos chegou à notícia?

– Não; nunca mais ouvi falar do tal Robério Dias.

– Pois ouvi lá; chegando a Madri, o homem fez a sua oferta mui lampeiro; e foi recebido na palma das mãos por el-rei Filipe II que, como sabeis, tinha as unhas demasiado longas.

– E cinzou-o como uma raposa que era? acudiu Rui Soeiro.

– Enganai-vos; dessa vez a raposa tornara-se macaco; quis ver o coco antes de pagá-lo.

– E então?

– Então, disse o italiano sorrindo maliciosamente, o coco estava oco.

– Como oco?

– Sim, amigo Rui, tinham-lhe deixado apenas as cascas; felizmente para nós, que vamos lograr o miolo.

– Sois um homem de caixas encouradas, Loredano!

– Dá-se a gente a tratos, e não é possível entender-vos.

– Tenho culpa eu, que não sejais lido na história das coisas de vossa terra?

– Nem todos são mitrados como vós, dom italiano.

– Bom, acabemos de uma vez; o que Robério Dias julgava oferecer em Madri a Filipe II, amigos, está aqui!

E Loredano dizendo estas palavras assentou a mão sobre um seixo que havia ao lado.

Os dois aventureiros olharam-se sem compreender, e duvidando da razão de seu companheiro. Quanto a este, sem se importar com o que eles pensavam, tirou a espada, e depois de desenterrar a pedra, começou a cavar. Enquanto prosseguia neste trabalho, os dois observando-o passavam alternadamente a botija de vinho, e faziam conjeturas e suposições.

O italiano já cavava há tempo, quando o ferro tocou num objeto duro, que o fez tinir.

Per Dio, exclamou, ei-la!

Daí a alguns momentos retirava do buraco um desses vasos de barro vidrado, a que os índios chamavam camuci; este era pequeno e fechado por todos os lados.

Loredano tomando-o pelas duas mãos abalou-o e sentiu o imperceptível vascolejar que fazia dentro um objeto qualquer.

– Aqui tendes, disse ele lentamente, o tesouro de Robério Dias; pertence-nos. Um pouco de tento, e seremos mais ricos que o sultão de Bagdá, e mais poderosos que o doge de Veneza.

O italiano bateu sobre a pedra com o vaso que se partiu em pedaços.

Os aventureiros, com os olhares incendidos de cobiça, esperando ver correr ondas de ouro, de diamantes e esmeraldas, ficaram estupefatos. Do bojo do vaso saltara apenas um pequeno rolo de pergaminho coberto por um couro avermelhado, e atado em cruz por um fio pardo.

Loredano com a ponta do punhal rompeu o laço, e, abrindo rapidamente o pergaminho, mostrou aos aventureiros um rótulo escrito em grandes letras vermelhas.

Rui Soeiro soltou um grito: Bento Simões começou a tremer de prazer, de pasmo e admiração.

Passado um momento, o italiano estendeu a mão para o papel colocado no meio do grupo; seus olhos tomaram uma expressão dura.

– Agora, disse ele com a sua voz vibrante, agora que tendes a riqueza e o poder ao alcance da mão, jurai que o vosso braço não tremerá quando chegar a ocasião; que obedecereis ao meu gesto, à minha palavra, como à lei do destino.

– Juramos!

– Estou cansado de esperar, e resolvido a aproveitar o primeiro ensejo. A mim como chefe, disse o italiano com um sorriso diabólico, devia pertencer D. Antônio de Mariz; eu vo-lo cedo, Rui Soeiro. Bento Simões terá o escudeiro. Eu reclamo para mim Álvaro de Sá, o nobre cavalheiro.

– Aires Gomes vai-se ver numa dança! disse Bento Simões com um aspecto marcial.

– Os mais, se nos incomodarem, irão depois; se nos acompanharem serão bem-vindos. Unicamente vos aviso que aquele que tocar a soleira da porta da filha de D. Antônio de Mariz é um homem morto; essa é a minha parte na presa! É a parte do leão.

Nesse momento ouviu-se um rumor como se as folhas se tivessem agitado.

Os aventureiros não fizeram reparo, e atribuíram naturalmente ao vento.

– Mais alguns dias, amigos, continuou Loredano, e seremos ricos, nobres, poderosos como um rei. Tu, Bento Simões, serás marquês de Paquequer; tu, Rui Soeiro, duque das Minas; eu... Que serei eu, disse Loredano com um sorriso que iluminou a sua fisionomia inteligente. Eu serei...

Uma palavra partiu do seio da terra, surda e cavernosa, como se uma voz sepulcral a houvesse pronunciado:

– Traidores!...

Os três aventureiros ergueram-se de um só movimento, hirtos e lívidos: pareciam cadáveres surgindo da campa.

Os dois persignaram-se. O italiano suspendeu-se ao ramo da árvore, e lançou um olhar rápido.

Tudo estava em sossego.

O sol a pino derramava um oceano de luz: nenhuma folha se agitava ao sopro da brisa; nenhum inseto saltitava sobre a relva.

O dia no seu esplendor dominava a natureza.

SEGUNDA PARTE – PERI

I – O CARMELITA

Corria o mês de março de 1603.

Era portanto um ano antes do dia em que se abriu esta história.

Havia à beira do caminho, que então servia às expedições entre o Rio de Janeiro e o Espírito Santo, um vasto pouso onde habitavam alguns colonos e índios catequizados.

Estava quase a anoitecer.

Uma tempestade seca, terrível e medonha, como as há frequentemente nas faldas das serranias, desabava sobre a terra. O vento mugindo açoitava as grossas árvores que vergavam os troncos seculares; o trovão ribombava no bojo das grossas nuvens desgarradas pelo céu; o relâmpago amiudava com tanta velocidade, que as florestas, os montes, toda a natureza nadava num oceano de fogo.

No vasto copiar do pouso havia três pessoas contemplando com um certo prazer a luta espantosa dos elementos, que, para homens habituados como eles, não deixava de ter alguma beleza.

Um desses homens, gordo e baixo, deitado em uma rede no meio do alpendre, com as pernas cruzadas e os braços sobre o peito, soltava uma exclamação a cada novo estrago produzido pela tempestade.

O segundo, encostado num dos esteios de jacarandá que sustentava o teto da alpendrada, era homem trigueiro, de perto de quarenta anos; a sua fisionomia apresentava uns longes do tipo da raça judaica; tinha os olhos fitos em uma vereda que serpejava pela frente da casa até perder-se no mato.

Defronte dele, também apoiado sobre a outra coluna, estava um frade carmelita, que acompanhava com um sorriso de satisfação íntima o progresso da borrasca; animava-lhe o rosto belo e de traços acentuados um raio de inteligência e uma expressão de energia que revelava o seu caráter.

Ao ver esse homem sorrindo à tempestade e afrontando com o olhar a luz do relâmpago, conhecia-se que sua alma tinha a força de resolução e a vontade indomável capaz de querer o impossível, e de lutar contra o céu e a terra para obtê-lo.

Fr. Ângelo di Luca achava-se então no pouso como missionário, incumbido da catequese e cura das almas entre o gentio daquele lugar; em seis meses que apostolava conseguira aldear algumas famílias que esperava breve trazer ao grêmio da igreja.

Um ano havia que obtivera do prior-geral da ordem do Carmo a graça de passar do seu convento de Santa Maria Transpontina, em Roma, para a casa que a sua ordem tinha fundado em 1590 no Rio de Janeiro, a fim de empregar-se no trabalho das missões.

Tanto o geral como o provincial de Lisboa, tocados por esse ardente entusiasmo apostólico, o haviam recomendado expressamente a Fr. Diogo do Rosário, então prior do convento do Carmo[32] no Rio de Janeiro, pedindo-lhe que empregasse no serviço do Senhor e na glória da ordem da Beatíssima Virgem do Monte Carmelo o zelo e o santo fervor do irmão Fr. Ângelo di Luca.

Eis a razão por que o filho de um pescador, saído das lagunas de Veneza, achava-se no sertão do Rio de Janeiro, encostado ao esteio de um pouso, contemplando a tempestade que redobrava de furor.

– Sempre partireis esta noite, Fernão Aines? disse o homem que estava deitado na rede.

– Ao quarto d’alva, respondeu o outro sem voltar-se.

– E o tempo que vais fazer?

– Não é isso que me estorva, bem o sabeis, mestre Nunes. Esta maldita caçada!...

– Receais que vossos homens não tornem dela a tempo?

– Receio que não os leve a todos a breca por esses matos com semelhante borrasca.

O frade voltou-se:

– Aqueles que seguem a lei de Deus estão bem em toda a parte, irmão, em andurriais como neste pouso; os maus é que devem temer o fogo do céu, e a esses não há abrigo que os salve.

Fernão Aines sorriu ironicamente.

– Credes isso, Fr. Ângelo?

– Creio em Deus, irmão.

– Pois embora; prefiro estar onde estou do que por aí metido nalgum despenhadeiro.

– Contudo, acudiu Nunes, o que diz o nosso reverendo missionário...

– Ora, deixa falar Fr. Ângelo. Aqui sou eu que zombo da tempestade, lá seria a tempestade que zombaria de mim.

– Fernão Aines!... exclamou Nunes.

– Maldita lembrança de caçada! murmurou o outro sem atendê-lo.

O silêncio se restabeleceu.

De repente uma nuvem abriu-se; a corrente elétrica enroscando-se pelo ar, como uma serpente de fogo, abateu-se sobre um tronco de cedro que havia defronte do pouso.

A árvore fendeu-se desde o olho até a raiz em duas metades; uma permaneceu em pé, esguia e mutilada; a outra, tombando sobre o terreiro, bateu nos peitos de Fernão Aines e o atirou esmagado no fundo do alpendre.

Seu companheiro ficou imóvel por muito tempo; depois começou a tremer como se tiritasse com o frio de terçãs; o polegar estendido para fazer o sinal da cruz, os dentes chocando uns contra os outros, o rosto contraído, davam-lhe aspecto terrível e ao mesmo tempo grotesco.

O frade se tinha voltado lívido como se ele fosse a vítima da catástrofe; o terror decompôs um momento a sua fisionomia; porém logo um sorriso sardônico fugiu-lhe dos lábios ainda descorados pelo choque violento que sofrera.

Passado o primeiro momento de susto, os dois chegaram-se para o ferido e quiseram prestar-lhe socorro; este fez um grande esforço, e, erguendo-se sobre um dos braços, soltou numa golfada de sangue estas palavras:

– Castigo do céu!

Reconhecendo que não havia mais cura para o corpo, o moribundo exigiu o remédio espiritual: com a voz fraca pediu a Fr. Ângelo que o ouvisse de confissão.

Nunes fez recolher o seu companheiro a um aposento cuja porta dava para o alpendre e deitou-o sobre uma cama de couro.

Já havia anoitecido, o aposento estava na maior escuridão; apenas por instantes o relâmpago brilhava lançando o clarão azulado sobre o confessor meio reclinado para o moribundo a fim de escutar-lhe a voz que ia gradualmente enfraquecendo.

– Ouvi-me sem me interromper, meu padre; sinto que poucos momentos me restam; e embora não haja perdão para mim quero ao menos reparar o meu crime.

– Falai, irmão; eu vos escuto.

– Em novembro passado cheguei ao Rio de Janeiro: fui hospedado por um parente meu: tanto ele como sua mulher me fizeram o melhor acolhimento.

“Ele, que havia muito viajado pelo sertão e se dera à vida de aventureiro, falou-me um dia de tentarmos uma expedição, cujo resultado seria grande riqueza para nós ambos.

“Por diversas vezes nos entretivemos sobre esse objeto, até que abriu-se inteiramente comigo.

“O pai de um Robério Dias, colono da Bahia, guiado por um índio, havia descoberto nos sertões daquela província minas de prata tão abundantes que se poderiam calçar desse metal as ruas de Lisboa.

“Como atravessasse sertões ínvios e inóspitos, Dias escrevera um roteiro com as indicações necessárias para em qualquer tempo poder-se achar o lugar onde estão situadas as ditas minas.

“Este roteiro fora subtraído a seu dono sem que ele o percebesse: e, por uma longa sucessão de fatos, que faltam-me as forças para contar-vos, viera cair nas mãos do meu parente.

“De quantos crimes já não tinha sido causa esse papel, e de quantos não seria ainda, meu padre, se Deus não houvesse finalmente punido em mim o último herdeiro desse legado de sangue!...”

O moribundo parou um momento extenuado; depois continuou com a voz débil:

“Já então com a chegada do governador D. Francisco de Sousa se sabia que Robério oferecera em Madri a Filipe II a descoberta das minas, e, que não o tendo el-rei premiado como esperou, obstinava-se em guardar silêncio.

“A razão desse silêncio que se atribuía geralmente ao despeito, só a sabia meu parente em cujas mãos parava o roteiro; Robério chegado às Espanhas se apercebera do roubo que lhe haviam feito, e quisera ao menos lograr o prêmio.

“O segredo das minas, a chave dessa riqueza imensa que excedia todos os tesouros do Miramolim, estavam nas mãos do meu parente que, necessitando de um homem dedicado que o auxiliasse na empresa, julgou que a ninguém melhor do que a mim podia escolher para partilhar os seus riscos e esperanças.

“Aceitei essa meação do crime, esse pacto de roubo, meu padre...