Foi o meu primeiro erro!...”

A voz do aventureiro tornou-se ainda mais sumida. O frade, inclinado sobre ele, parecia devorar com os lábios entreabertos as palavras balbuciadas pelo moribundo.

– Coragem, filho!

– Sim! Devo dizer tudo!... Fascinado pela descrição desse tesouro fabuloso, tive uma lembrança iníqua... essa lembrança tornou-se desejo... depois ideia, e... projeto... por fim realizou-se... foi um crime! Assassinei meu parente; e sua mulher...

– E... exclamou o frade com a voz surda.

– E roubei o segredo!

O frade sorriu nas trevas.

– Agora só me resta a misericórdia de Deus, e a reparação do mal que fiz... Robério é morto, sua mulher vive desgraçada na Bahia... Quero que este papel lhe seja entregue... Prometeis Fr. Ângelo?

– Prometo! O papel?...

– Está... oculto...

– Aonde?

– Nes... ta...

O moribundo agonizava.

Fr. Ângelo, debruçado inteiramente sobre ele, com o ouvido colado à sua boca onde borbulhava uma espuma vermelha, com a mão sobre o coração para ver se ainda palpitava, parecia querer reter o último sopro da vida, a fim de tirar dele uma palavra ainda.

– Aonde?... murmurava de vez em quando o frade com a voz cava.

O enfermo agonizava sempre; os soluços extremos da vida que se apaga como a lâmpada que bruxuleia agitavam apenas o corpo enregelado.

Por fim o frade viu-o levantar o braço hirto, apontando para a parede, e sentiu os seus lábios gelados e convulsos que tremeram, lançando no seu ouvido uma palavra que o fez saltar sobre o leito.

– Cruz!...

Fr. Ângelo ergueu-se circulando o aposento com a vista alucinada; na cabeceira da cama havia um Cristo de ferro sobre uma grande cruz de pau tosca e mal lavrada.

Com um movimento de raiva o frade apoderou-se da cruz, e quebrou-a de encontro ao joelho; a imagem rolou pelo chão; entre os estilhaços de madeira apareceu um rolo de pergaminho achatado pela pressão em que estivera.

Quebrou com os dentes o selo do papel; chegando à janela leu à claridade vacilante do relâmpago as primeiras palavras de um rótulo de letras vermelhas, que rezava nestes termos:

“Roteiro verídico e exato em que se trata da rota que fez Robério Dias, o pai, em o ano da graça de 1587 às paragens de Jacobina, onde descobriu com o favor de Deus as mais ricas minas de prataria que existam no mundo; com a suma de todas as indicações de marcos, balizas e linha equinocial onde demoram aquelas ditas minas; começado em 20 de janeiro, dia do mártir São Sebastião, e terminado na primeira dominga de Páscoa em que chegamos com a mercê da Providência nesta cidade do Salvador”.

Enquanto o frade se esforçava para ler, o moribundo agonizava na última aflição, esperando talvez a absolvição final e a extrema-unção do penitente.

Mas o religioso não via nesse momento senão o papel que tinha nas mãos; deixou-se cair em um banco, e, com a cabeça pendida sobre o braço, entregou-se a funda meditação.

Que pensava ele?...

Não pensava; delirava. Diante de seus olhos, a imaginação exaltada lhe apresentava um mar argênteo, um oceano de metal fundido, alvo e resplandecente, que ia se perder no infinito. As vagas desse mar de prata, ora achamalotavam-se, ora rolavam formando frocos de espumas, que pareciam flores de diamantes, de esmeraldas e rubins cintilando à luz do sol.

Às vezes também nessa face lisa e polida desenhavam-se como em um espelho palácios encantados, mulheres belas como as huris do profeta, virgens graciosas como os anjos de Nossa Senhora do Monte Carmelo.

Assim decorreu meia hora, em que o silêncio era apenas interrompido pelo estertor do moribundo e pelo trovão que rugia; depois houve uma calma sinistra; o pecador expirava impenitente.

Fr. Ângelo levantou-se, arrancou o hábito com um gesto desesperado e pisou-o aos pés; sobre o recosto do leito havia uma muda de roupa com que trajou-se; tirou as armas do cadáver, apanhou o chapéu de feltro, e, apertando ao peito o manuscrito, dirigiu-se à porta.

Ouviam-se os passos de Nunes, que passeava fora no alpendre.

O frade estacou; a presença inesperada desse homem diante da porta deu-lhe uma inspiração. Tomou o hábito, vestiu-o sobre o seu novo trajo, e escondendo na manga o chapéu do aventureiro, cobriu-se com o largo capelo; então abriu a porta e dirigiu-se a Nunes.

Consummatum est, irmão! disse ele com um tom compungido.

– Deus tenha sua alma!

– Assim o espero, se não me faltarem as forças para cumprir o seu último voto, que é uma reparação.

– De um grave pecado?

– De um crime, irmão. Dai-me luz; vou escrever a Fr. Diogo do Rosário, nosso prior, porque de onde vou talvez não volte, nem tenhais mais novas de mim.

O frade escreveu à claridade de uma acha de pau-candeia algumas linhas ao prior do convento do Carmo no Rio de Janeiro, e, despedindo-se de Nunes, partiu.

Quando dobrava o canto do pouso, o céu abriu-se e a terra incendiou-se com a luz de um relâmpago tão forte que o deslumbrou. Dois raios, descrevendo listras de fogo, tinham caído sobre a floresta e espalhado em torno um cheiro de súlfur que asfixiava.

O carmelita teve uma vertigem; lembrou-se da cena da tarde, do tremendo castigo que ele próprio havia evocado na sua hipocrisia, e se realizara tão prontamente. Mas o deslumbramento passou; estremecendo ainda e pálido de terror, o réprobo levantou o braço como desafiando a cólera do céu, e soltou uma blasfêmia horrível:

– Podeis matar-me; mas, se me deixardes a vida, hei de ser rico e poderoso, contra a vontade do mundo inteiro!

Havia nestas palavras um quer que seja da sanha e raiva impotente de Satanás precipitado no abismo pela sentença irrevogável do Criador.

Continuando o seu caminho pelas trevas, costeou a cerca e chegou a uma grande choça, que havia no fundo do pouso, e onde o missionário conseguira aldear algumas famílias de índios; entrou e acordou um dos selvagens, a quem ordenou se preparasse para acompanhá-lo apenas rompesse o dia.

A chuva caía em torrentes; o vento açoitava as paredes de sapé, esfuziando por entre a palha.

O frade passou a noite em claro, refletindo e traçando no seu espírito um plano infernal, para cuja realização não trepidaria diante de nenhum obstáculo; de vez em quando levantava-se para ver se o horizonte já se iluminava.

Finalmente veio o dia; a tempestade se tinha desfeito durante a noite; o tempo estava sereno.

O carmelita acompanhado pelo selvagem partiu: vagou pela floresta e pelo campo em todas as direções; alguma coisa procurava. Ele avistou depois de duas horas a touça de cardos junto da qual se passou a última cena que narramos; examinou-a por todos os lados e sorriu de satisfeito. Trepando à árvore, e escorregando pelo cipó, entraram ele e o selvagem na área que já conhecemos; o sol tinha nascido há pouco.

No dia seguinte, por volta de duas horas da tarde, saiu deste lugar um só homem; não era ele o frade nem o selvagem. Era um aventureiro destemido e audaz, em cuja fisionomia se reconheciam ainda os traços do carmelita Fr. Ângelo di Luca.

Este aventureiro chamou-se Loredano.

Deixava naquele lugar e sepultado no seio da terra um terrível segredo; isto é, um rolo de pergaminho, um burel de frade e um cadáver.

Cinco meses passados, o vigário da ordem participava ao geral em Roma que o irmão Fr.