O seu coração revelava-se com toda a veemência da vontade audaz, que era o móvel de sua vida.

Sentiu que essa mulher era tão necessária à sua existência como o tesouro que sonhava; ser rico para ela, possuí-la para gozar a riqueza, foi desde então o seu único pensamento, a sua ideia dominante.

Um dos aventureiros deixava a casa; Loredano solicitou o seu lugar e obteve-o como acabamos de ver; o seu plano estava traçado.

Qual era, já o sabemos pelas cenas passadas; o italiano contava tornar-se senhor da banda, apoderar-se de Cecília, ir às minas encantadas, carregar tanta prata quanta pudesse levar, dirigir-se à Bahia, assaltar uma nau espanhola, tomá-la de abordagem e fazer-se de vela para a Europa.

Aí armava navios de corso, voltava ao Brasil, explorava o seu tesouro, tirava dele riquezas imensas e... E o mundo abria-se diante de seus olhos, cheio de esperança, de futuro e felicidade.

Durante um ano trabalhou nessa empresa com uma sagacidade e inteligência superior; ganhara os dois homens influentes da banda, Rui Soeiro e Bento Simões; por meio deles preparava o desenlace final.

Ignorado pelos outros ele dirigia essa conspiração que lavrava surdamente; só havia em toda a banda duas pessoas que o podiam perder. Ora, Loredano não era homem que deixasse de prever a eventualidade de uma traição, e que entregasse aos seus dois cúmplices uma arma com que pudessem feri-lo; daí a lembrança desse testamento que entregara a D. Antônio de Mariz.

Somente nesse papel, em vez de ter revelado o seu plano, como o italiano dissera a Rui Soeiro, ele havia apenas indicado a traição dos dois aventureiros, declarando-se seduzido por eles; o frade mentia pois até na hora extrema em que o papel devia falar.

A confiança que tinha, e com razão, no caráter de D. Antônio, tranquilizava-o completamente; sabia que em caso algum o fidalgo abriria um testamento que lhe fora dado em depósito.

Eis como Fr. Ângelo di Luca achava-se sob o seu novo nome de Loredano, pertencendo à casa de D. Antônio de Mariz e preparando-se para realizar afinal o seu pensamento de todos os instantes.

Um ano havia que esperava, e, como ele dizia, estava cansado: resolvera dar enfim o golpe; e para isso, depois de haver esmagado os dois cúmplices com a sua ameaça, depois de os haver reduzido a autômatos obedecendo ao seu gesto, entendeu que seria conveniente ao mesmo tempo animar esses manequins com algum sentimento, que lhes desse o atrevimento, a audácia e a força necessária para se lançarem na voragem e não trepidarem diante de nenhum obstáculo.

Este sentimento foi a ambição.

À vista do roteiro era impossível que não sentissem a febre da riqueza, a auri sacra fames que se havia apoderado dele próprio, no momento em que vira abrir-se diante de seus olhos um mar de prata fundida em que os seus lábios podiam matar a sede ardente que o devorava.

O efeito não desmentiu a sua previsão; lendo o rótulo, cada um dos aventureiros ficara eletrizado; para tocar aquele abismo insondável de riquezas, nem um deles hesitaria em passar sobre o corpo de seu amigo, ou mesmo sobre as cinzas de uma casa ou a ruína de uma família.

Infelizmente aquela voz inesperada, saída do seio da terra, viera modificar a situação.

Mas não antecipemos; por ora ainda estamos em 1603, um ano antes daquela cena, e ainda nos falta contar certas circunstâncias que serviram para o seguimento desta verídica história.

IV – CECI

Poucas horas depois que Loredano fora admitido na casa de D. Antônio de Mariz, Cecília chegando à janela do seu quarto viu do lado oposto do rochedo Peri, que a olhava com uma admiração ardente.

O pobre índio, tímido e esquivo, não se animava a chegar-se à casa, senão quando via de longe a D. Antônio de Mariz passeando sobre a esplanada; adivinhava que naquela habitação só o coração nobre do velho fidalgo sentia por ele alguma estima.

Havia quatro dias que o selvagem não aparecia; D. Antônio supunha já que ele tivesse voltado com sua tribo para os lugares onde vivia, e que só deixara para fazer a guerra aos índios e portugueses.

A nação Goitacá[39] dominava todo o território entre o Cabo de São Tomé e o Cabo Frio; era um povo guerreiro, valente e destemido, que por diversas vezes fizera sentir aos conquistadores a força de suas armas.

Tinha arrasado completamente a colônia da Paraíba fundada por Pero de Góis; e depois de um assédio de seis meses conseguira destruir igualmente a colônia de Vitória, fundada no Espírito Santo por Vasco Fernandes Coutinho.

Voltemos dessa pequena digressão histórica ao nosso herói.

O primeiro movimento de Cecília, vendo o índio, fora de susto; fugira insensivelmente da janela. Mas o seu bom coração irritou-se contra esse receio, e disse-lhe que ela não tinha que temer do homem que lhe salvara a vida. Lembrou-se que era ser má e ingrata pagar a dedicação que o índio lhe mostrava deixando-lhe ver a repugnância que lhe inspirava.

Venceu pois a timidez e assentou de fazer um sacrifício ao reconhecimento e gratidão que devia ao selvagem. Chegou à janela; fez com a mão alva e graciosa um gesto dizendo a Peri que se aproximasse.

O índio, não se contendo de alegria, correu para a casa, enquanto Cecília ia ter com seu pai, e dizia-lhe:

– Vinde ver Peri, que chega, meu pai.

– Ah! inda bem, respondeu o fidalgo.

E, acompanhando sua filha, D. Antônio foi ao encontro do índio que já subia a esplanada.

Peri trazia um pequeno cofo, tecido com extraordinária delicadeza, feito de palha muito alva, todo rendado; por entre o crivo que formavam os fios, ouviam-se uns chilidos fracos e um rumor ligeiro que faziam os pequenos habitantes desse ninho gracioso.

O índio ajoelhou aos pés de Cecília; sem animar-se a levantar os olhos para ela, apresentou-lhe o cabaz de palha: abrindo a tampa, a menina assustou-se, mas sorriu; um enxame de beija-flores esvoaçava dentro; alguns conseguiram escapar-se.

Destes um veio aninhar-se no seu seio, o outro começou a voltejar em torno de sua cabeça loura como se tomasse a sua boquinha rosada por um fruto.

A menina admirava essas avezinhas brilhantes, umas escarlates, outras azuis e verdes; mas todas de reflexos dourados, e formas mimosas e delicadas!

Vendo-se esses íris animados acredita-se que a natureza os criou com um sorriso, para viverem de pólen e de mel, e para brilharem no ar como as flores na terra e as estrelas no céu.

Quando Cecília se cansou de admirá-los, tomou-os um por um, beijou-os, aqueceu-os no seio, e sentiu não ser uma flor bela e perfumada para que eles a beijassem também e esvoaçassem constantemente em torno dela.

Peri olhava e era feliz; pela primeira vez depois que a salvara, tinha sabido fazer uma coisa, que trouxera um sorriso de prazer aos lábios da senhora. Entretanto, apesar dessa felicidade que sentia interiormente, era fácil de ver que o índio estava triste; ele chegou-se para D. Antônio de Mariz e disse-lhe:

– Peri vai partir.

– Ah! disse o fidalgo, voltas aos teus campos?

– Sim: Peri volta à terra que cobre os ossos de Ararê.

D. Antônio encheu o índio de presentes dados em seu nome e em nome de sua filha.

– Perguntai a ele por que razão parte e nos deixa, meu pai, disse Cecília.

O fidalgo traduziu a pergunta.

– Porque a senhora não precisa de Peri; e Peri deve acompanhar sua mãe e seus irmãos.

– E se a pedra quiser fazer mal à senhora, quem a defenderá? perguntou a menina sorrindo e fazendo alusão à narração do índio.

Ouvindo dos lábios de D. Antônio a pergunta, o selvagem não soube o que responder, porque lhe lembrava um pensamento que já tinha passado por seu espírito; temia que na sua ausência a menina corresse um perigo e ele não estivesse junto dela para salvá-la.

– Se a senhora manda, disse enfim, Peri fica.

Cecília, apenas seu pai lhe traduziu a resposta do índio, riu-se daquela cega obediência; mas era mulher; um átomo de vaidade dormia no fundo do seu coração de moça.

Ver aquela alma selvagem, livre como as aves que planavam no ar ou como os rios que corriam na várzea; aquela natureza forte e vigorosa que fazia prodígios de força e coragem; aquela vontade indomável como a torrente que se precipita do alto da serra; prostrar-se a seus pés submissa, vencida, escrava!...

Era preciso que não fosse mulher para não sentir o orgulho de dominar essa organização e brincar com a força obrigando-a a curvar-se diante do seu olhar.

As mulheres têm isso de particular; reconhecendo-se fracas, a sua maior ambição é reinar pelo ímã dessa mesma fraqueza, sobre tudo o que é forte, grande e superior a elas: não amam a inteligência, a coragem, o gênio, o poder, senão para vencê-los e subjugá-los.

Entretanto a mulher deixa-se bastantes vezes dominar; mas é sempre pelo homem que, não lhe excitando a admiração, não irrita a sua vaidade e não provoca por conseguinte essa luta da fraqueza contra a força.

Cecília era uma menina ingênua e inocente, que nem sequer tinha consciência do seu poder, e do encanto de sua casta beleza; mas era filha de Eva, e não podia se eximir de um quase nada de vaidade.

– A senhora não quer que Peri parta, disse ela com um arzinho de rainha, e fazendo um gesto com a cabeça.

O índio compreendeu perfeitamente o gesto.

– Peri fica.

– Vede, Cecília, replicou D. Antônio rindo: ele te obedece!

Cecília sorriu.

– Minha filha te agradece o sacrifício, Peri, continuou o fidalgo; mas nem ela nem eu queremos que abandones a tua tribo.

– A senhora mandou, respondeu o índio.

– Ela queria ver se tu lhe obedecias: conheceu a tua dedicação, está satisfeita; consente que partas.

– Não!

– Mas os teus irmãos, tua mãe, tua vida livre?

– Peri é escravo da senhora.

– Mas Peri é um guerreiro e um chefe.

– A nação Goitacá tem cem guerreiros fortes como Peri; mil arcos ligeiros como o voo do gavião.

– Assim, decididamente, queres ficar?

– Sim; e como tu não queres dar a Peri a tua hospitalidade, uma árvore da floresta lhe servirá de abrigo.

– Tu me ofendes, Peri! exclamou o fidalgo; a minha casa está aberta para todos, e sobretudo para ti que és amigo e salvaste minha filha.

– Não, Peri não te ofende; mas sabe que tem a pele cor de terra.

– E o coração de ouro.

Enquanto D. Antônio continuava a insistir com o índio para que partisse, ouviu-se um canto monótono que saía da floresta.

Peri aplicou o ouvido; descendo à esplanada correu na direção donde partia a voz, que cantava com a cadência triste e melancólica particular aos índios, a seguinte endecha na língua dos Guaranis:

“A estrela brilhou; partimos com a tarde. A brisa soprou; nos leva nas asas.

“A guerra nos trouxe; vencemos. A guerra acabou; voltamos.

“Na guerra os guerreiros combatem; há sangue. Na paz as mulheres trabalham; há vinho.

“A estrela brilhou; é hora de partir. A brisa soprou; é tempo de andar”.

A pessoa que modulava esta canção selvagem era uma índia já idosa; encostada a uma árvore da floresta ela vira por entre a folhagem a cena que passava na esplanada.

Chegando-se a ela, Peri ficou triste e vexado.

– Mãe!... exclamou ele.

– Vem! disse a índia seguindo pela mata.

– Não!

– Nós partimos.

– Peri fica.

A índia fitou em seu filho um olhar de profunda admiração.

– Teus irmãos partem!

O selvagem não respondeu.

– Tua mãe parte!

O mesmo silêncio.

– Teu campo te espera!

– Peri fica, mãe! disse ele com a voz comovida.

– Por quê?

– A senhora mandou.

A pobre mãe recebeu esta palavra como uma sentença irrevogável; sabia do império que exercia sobre a alma de Peri a imagem de Nossa Senhora, que ele tinha visto no meio de um combate e havia personificado em Cecília.

Sentiu que ia perder o filho, orgulho de sua velhice, como Ararê tinha sido o orgulho de sua mocidade. Uma lágrima deslizou pela sua face cor de cobre.

– Mãe, toma o arco de Peri; enterra junto dos ossos de seu pai: e queima a cabana de Ararê.

– Não; se algum dia Peri voltar, achará a cabana de seu pai, e sua mãe para amá-lo: tudo vai ficar triste até que a lua das flores leve o filho de Ararê ao campo onde nasceu.

Peri abanou a cabeça com tristeza:

– Peri não voltará!

Sua mãe fez um gesto de espanto e desespero.

– O fruto que cai da árvore não torna mais a ela; a folha que se despega do ramo murcha, seca e morre; o vento a leva. Peri é a folha; tu és a árvore, mãe. Peri não voltará ao teu seio.

– A virgem branca salvou tua mãe; devia deixá-la morrer, para não lhe roubar seu filho. Uma mãe sem seu filho é uma terra sem água; queima e mata tudo que se chega a ela.

Estas palavras foram acompanhadas de um olhar de ameaça, em que se revelava a ferocidade do tigre que defende os seus cachorrinhos.

– Mãe, não ofende a senhora; Peri morreria, e na última hora não se lembraria de ti.

Os dois ficaram algum tempo em silêncio.

– Tua mãe fica! disse a índia com um acento de resolução.

– E quem será a mãe da tribo? Quem guardará a cabana de Peri? Quem contará aos pequenos as guerras de Ararê, forte entre os mais fortes? Quem dirá quantas vezes a nação Goitacá levou o fogo à taba dos brancos e venceu os homens do raio? Quem há de preparar os vinhos e as bebidas para os guerreiros, e ensinar aos filhos os costumes dos velhos?

Peri proferiu estas palavras com a exaltação, que despertavam nele as reminiscências de sua vida selvagem; a índia ficou pensativa e respondeu:

– Tua mãe volta; vai te esperar na porta da cabana, à sombra do jambeiro; se a flor do jambo vier sem Peri, tua mãe não verá os frutos da árvore.

A índia pousou as mãos sobre os ombros de seu filho e encostou a fronte na fronte dele; durante um momento as lágrimas que saltavam dos olhos de ambos se confundiram.

Depois ela afastou-se lentamente; Peri seguiu-a com os olhos até que desapareceu na floresta; esteve a correr, chamá-la e partir com ela. Mas o vento lhe trazia a voz argentina de Cecília que falava com seu pai; ficou.

Nessa mesma noite construíra aquela pequena cabana que se via na ponta do rochedo, e que ia ser o seu mundo.

Passaram três meses.

Cecília, que um momento conseguira vencer a repugnância que sentia pelo selvagem, quando lhe ordenara que ficasse, não se lembrou da ingratidão que cometia e não disfarçou mais a sua antipatia.

Quando o índio chegava-se a ela, soltava um grito de susto; ou fugia, ou ordenava-lhe que se retirasse; Peri, que já falava e entendia o português, afastava-se triste e humilde.

Entretanto a sua dedicação não se desmentia; ele acompanhava a D.