Antônio de Mariz nas suas excursões, ajudava-o com a sua experiência, guiava-o aos lugares onde havia terrenos auríferos ou pedras preciosas. De volta destas expedições corria todo o dia os campos para procurar um perfume, uma flor, um pássaro, que entregava ao fidalgo e pedia-lhe desse a Ceci, pois já não se animava a chegar-se para ela, com receio de desgostá-la.
Ceci era o nome que o índio dava à sua senhora, depois que lhe tinham ensinado que ela se chamava Cecília.
Um dia a menina, ouvindo chamar-se assim por ele e achando um pretexto para zangar-se contra o escravo humilde que obedecia ao seu menor gesto, repreendeu-o com aspereza:
– Por que me chamas tu Ceci?
O índio sorriu tristemente.
– Não sabes dizer Cecília?
Peri pronunciou claramente o nome da moça com todas as sílabas; isto era tanto mais admirável quanto a sua língua não conhecia quatro letras, das quais uma era o L.
– Mas então, disse a menina com alguma curiosidade, se tu sabes o meu nome, por que não o dizes sempre?
– Porque Ceci é o nome que Peri tem dentro da alma.
– Ah! é um nome de tua língua?
– Sim.
– O que quer dizer?
– O que Peri sente.
– Mas em português?
– Senhora não deve saber.
A menina bateu com a ponta do pé no chão e fez um gesto de impaciência.
D. Antônio passava; Cecília correu ao seu encontro:
– Meu pai, dizei-me o que significa Ceci nessa língua selvagem que falais.
– Ceci?... disse o fidalgo procurando lembrar-se. Sim! É um verbo que significa doer, magoar.
A menina sentiu um remorso; reconheceu a sua ingratidão; e, lembrando-se do que devia ao selvagem e da maneira por que o tratava, achou-se má, egoísta e cruel.
– Que doce palavra! disse ela a seu pai; parece um canto de pássaro.
Desde este dia foi boa para Peri; pouco a pouco perdeu o susto; começou a compreender essa alma inculta; viu nele um escravo, depois um amigo fiel e dedicado.
– Chama-me Ceci, dizia às vezes ao índio sorrindo-se; este doce nome me lembrará que fui má para ti; e me ensinará a ser boa.
V – VILANIA
É tempo de continuar esta narração interrompida pela necessidade de contar alguns fatos anteriores.
Voltemos pois ao lugar em que se achavam Loredano e seus companheiros tomados de medo pela exclamação inesperada que soara no meio deles.
Os dois cúmplices, supersticiosos, como eram as pessoas de baixa classe naquele tempo, atribuíam o fato a uma causa sobrenatural e viam nele um aviso do céu. Loredano porém não era homem que cedesse a semelhante fraqueza; tinha ouvido uma voz; e essa voz embora surda e cava devia ser de um homem.
Quem ele era? Seria D. Antônio de Mariz? Seria algum dos aventureiros? Não podia saber; o seu espírito perdia-se num caos de dúvidas e incertezas.
Fez um gesto a Rui Soeiro e a Bento Simões para que o seguissem; e apertando ao seio o fatal pergaminho, causa de tantos crimes, lançou-se pelo campo. Teriam feito umas cinquenta braças do caminho, quando viram cortar pela vereda que eles seguiam um cavalheiro que o italiano reconheceu imediatamente; era Álvaro.
O moço procurava a solidão para pensar em Cecília, mas sobretudo para refletir num fato que se tinha dado essa manhã e que ele não podia compreender.
Vira de longe a janela de Cecília abrir-se, as duas moças aparecerem, trocarem um olhar; depois Isabel cair de joelhos aos pés de sua prima. Se ele tivesse ouvido o que já sabemos, teria perfeitamente compreendido; mas longe como estava, apenas podia ver, sem ser visto das duas moças.
Loredano, vendo o cavalheiro passar, voltou-se para os seus companheiros.
– Ei-lo!... disse com um olhar que brilhou de alegria. Imbecis! que atribuís ao céu aquilo que não sabeis explicar!...
E acompanhou estas palavras com um sorriso de profundo desprezo.
– Esperai-me aqui.
– O que ides fazer? perguntou Rui Soeiro.
O italiano se voltou surpreso; depois levantou os ombros, como se a pergunta do seu companheiro não merecesse resposta.
Rui Soeiro, que conhecia o caráter desse homem, entendeu o gesto; um resquício de generosidade que ainda havia no seu coração corrompido o fez segurar o braço do seu companheiro para retê-lo.
– Quereis que fale?... disse Loredano.
– É mais um crime inútil! acudiu Bento Simões.
O italiano fitou nele os olhos, frios como o contato do aço polido:
– Há um mais útil, amigo Simões; cuidaremos dele a seu tempo.
E, sem esperar a réplica, meteu-se pelas moitas que cobriam o campo nesse lugar, e seguiu Álvaro que continuava lentamente o seu caminho.
O moço, apesar de preocupado, tinha o hábito da vida arriscada dos nossos caçadores do interior, obrigados a romper as matas virgens.
Aí o homem vê-se cercado de perigos por todos os lados; da frente, das costas, à esquerda, à direita, do ar, da terra, pode surgir de repente um inimigo oculto pela folhagem, que se aproxima sem ser visto.
A única defesa é a sutileza do ouvido que sabe distinguir entre os rumores vagos da floresta aquele que é produzido por uma ação mais forte do que a do vento; assim como a rapidez e certeza da vista que vai perscrutar as sombras das moitas e devassar a folhagem espessa das árvores.
Álvaro tinha esse dom dos caçadores hábeis; apenas o vento lhe trouxe um estalido de folhas secas pisadas, levantou a cabeça e circulou o campo com os olhos; depois por prudência encostou-se ao grosso tronco de uma árvore isolada, e, cruzando os braços sobre a clavina, esperou.
Nessa posição o inimigo, qualquer que ele fosse, fera, réptil ou homem, não o podia atacar senão de face; ele o veria aproximar-se e o receberia.
Loredano agachado entre as folhas tinha notado este movimento e hesitara; mas o seu segredo estava comprometido, a suspeita que concebera de que Álvaro fora quem há pouco o ameaçara com a palavra traidores acabava de confirmar-se no seu espírito, vendo a prudência com que o moço evitava uma surpresa.
O cavalheiro era um inimigo terrível e jogava todas as armas com uma destreza admirável.
A lâmina de sua espada como uma cobra elástica, flexível, rápida, volteava sibilando e atirava o bote com a velocidade e a certeza da cascavel. O arremesso do seu punhal, vibrado pelo braço ligeiro e auxiliado pela agilidade do corpo, era como raio; listrava no ar uma cruz de fogo, e caía sobre o peito do inimigo e o fulminava.
A bala de sua clavina era uma mensageira fiel que ia buscar a ave que pairava no ar, ou a folha que o vento agitava. Muitas vezes na esplanada da casa, o italiano vira Álvaro, depois de ter feito milagres de pontaria, quebrar no ar as setas que Peri atirava de propósito para lhe servirem de alvo.
Cecília aplaudia batendo as mãos; Peri ficava contente por ver a senhora alegre; e, embora para ele que fazia muito mais, aquilo fosse uma coisa vulgar, deixava que o moço conservasse a superioridade, e fosse por todos admirado.
Mas Álvaro sabia que só um homem podia lutar com ele, e levar-lhe vantagem em qualquer arma, e esse era Peri; porque juntava à arte a superioridade do selvagem habituado desde o berço à guerra constante que é a sua vida.
Loredano tinha pois razão de hesitar em atacar de frente um inimigo desta força; mas a necessidade urgia, e o italiano era corajoso e ágil também. Endireitou para o cavalheiro, resolvido a morrer ou a salvar a sua vida e a sua fortuna.
Álvaro vendo-o aproximar-se rugou o sobrolho; depois do que se tinha passado na véspera e nessa manhã, odiava aquele homem ou, antes, desprezava-o.
– Aposto que tivestes o mesmo pensamento que eu, sr. cavalheiro? disse o aventureiro, quando chegou a três passos de distância.
– Não sei o que pretendeis dizer, replicou o moço secamente.
– Pretendo, sr. cavalheiro, que dois homens que se odeiam acham-se melhor num lugar solitário, do que no meio dos companheiros.
– Não é ódio que me inspirais, é desprezo; é mais do que desprezo, é asco. O réptil que se roja pelo chão causa-me menos repugnância do que o vosso aspecto.
– Não disputemos sobre palavras, sr. cavalheiro; tudo vem dar no mesmo; eu vos odeio, vós me desprezais; podia dizer-vos outro tanto.
– Miserável!... exclamou o cavalheiro levando a mão à guarda da espada.
O movimento foi tão rápido que a palavra soou ao mesmo tempo que a ponta da lâmina de aço batendo na face do italiano.
Loredano quis evitar o insulto, mas não era tempo; seus olhos injetaram-se de sangue:
– Sr. cavalheiro, deveis-me satisfação do insulto que me acabais de fazer.
– É justo, respondeu Álvaro com dignidade; mas não à espada que é a arma do cavalheiro; tirai o vosso punhal de bandido, e defendei-vos.
Proferindo estas palavras, o moço embainhou a espada com toda a calma, segurou-a à cinta para não embaraçar-lhe os movimentos e sacou o seu punhal, excelente folha de Damasco.
Os dois inimigos marcharam um para o outro, e lançaram-se; o italiano era ágil e forte, e defendia-se com suma destreza; por duas vezes já, o punhal de Álvaro, roçando-lhe o pescoço, tinha cortado o talho de seu gibão de belbute.
De repente Loredano, fincando os pés, deu um pulo para trás, e ergueu a mão esquerda em sinal de trégua.
– Estais satisfeito? perguntou Álvaro.
– Não, sr. cavalheiro; mas, penso que em vez de nos estarmos aqui a fatigar inutilmente, melhor seria tomarmos um meio mais expedito.
– Escolhei o que quiserdes, menos a espada; o mais me é indiferente.
– Outra coisa ainda: se nos batermos aqui, podemos incomodar-nos reciprocamente; porque pretendo matar-vos, e creio que o mesmo desejo tendes a meu respeito. Ora, é preciso que desapareça o que ficar e o outro não leve um vestígio que o possa denunciar.
– Que quereis fazer neste caso?
– O rio está aqui perto, tendes a vossa clavina; colocar-nos-emos cada um sobre uma ponta do rochedo; aquele que cair morto ou simplesmente ferido, pertencerá ao rio e à cachoeira; não incomodará o outro.
– Tendes razão, é melhor assim; eu me envergonharia se D. Antônio de Mariz soubesse que me bati com um homem da vossa qualidade.
– Sigamos, sr. cavalheiro; nós nos odiamos bastante para não gastarmos tempo em palavras.
Ambos tomaram na direção do rio, cujo estrépito ouvia-se distintamente.
Álvaro, valente e corajoso, desprezava muito o seu inimigo para ter o menor receio dele; demais a sua alma nobre e leal, incapaz da mais pequena vilania, não pensava na traição. Nunca podia lembrar-lhe que um homem que o viera provocar e ia medir-se com ele num combate franco levasse a infâmia a ponto de querer feri-lo pelas costas.
Assim, continuou a caminhar, quando o italiano, deixando cair de propósito a cinta da espada, parou um instante para apanhá-la e prendê-la de novo.
O que passava então no seu espírito não estava de acordo com as ideias nobres do cavalheiro; vendo o moço adiantar-se, disse consigo:
– Preciso da vida desse homem, eu a tenho! Seria uma loucura deixá-la escapar, e pôr a minha em risco. Um duelo neste deserto, sem testemunhas, é um combate em que a vitória pertence ao mais esperto.
Dizendo isto o italiano ia armando a sua clavina com toda a cautela, e seguia de longe a Álvaro, a fim de que o ranger do ferro ou o silêncio de suas pisadas não excitassem a atenção do moço.
Álvaro caminhava tranquilamente; seu pensamento estava bem longe dele, e esvoaçava em torno da imagem de Cecília, junto da qual via os grandes olhos negros e aveludados de Isabel embebidos numa languidez melancólica; era a primeira vez que aquele rosto moreno e aquela beleza ardente e voluptuosa se viera confundir em sonhos com o anjo louro dos seus amores.
Donde provinha isto? O moço não sabia explicar; mas um quer que seja, como um pressentimento, lhe dizia que naquela cena da janela havia entre as duas moças um segredo, uma confidência, uma revelação, e que esse segredo era ele.
Assim, quando a morte se aproximava, quando já o bafejava e ia tocá-lo, ele descuidoso e pensativo repassava no pensamento ideias de amor, e alimentava-se de esperanças. Não se lembrava de morrer; tinha consciência de si e fé em Deus; mas, se por acaso uma fatalidade caísse sobre ele, consolava-o a ideia de que Cecília, ofendida, lhe perdoaria um resto de ressentimento que talvez conservasse.
Nisto meteu a mão no seio do gibão e tirou o jasmim que a moça lhe dera, e que já tinha murchado ao contato dos seus lábios ardentes; ia beijá-lo ainda uma vez, quando lembrou-se que o italiano podia vê-lo.
Mas não ouviu os passos do aventureiro; a primeira ideia que lhe veio foi que ele tinha fugido; e, como a cobardia para as almas grandes se associa à baixeza, lembrou-se de uma traição.
Quis voltar-se, e entretanto não o fez. Mostrar que tinha medo daquele miserável revoltava os seus brios de cavalheiro; ergueu a cabeça com altivez e seguiu.
Mal sabia ele que nesse momento o fecho da clavina movido por um dedo seguro caía e que a bala ia partir guiada pelo olhar certeiro do italiano.
VI – NOBREZA
Álvaro ouviu um sibilo agudo.
A bala roçando pela aba rebatida de seu chapéu de feltro cortou a ponta da pluma escarlate que se enroscava sobre o ombro.
O moço voltou-se calmo, sereno, impassível; nem um músculo de seu rosto agitou-se; apenas um sorriso de soberano desprezo arqueava o lábio superior, sombreado pelo bigode negro.
O espetáculo que se ofereceu aos seus olhos causou-lhe uma surpresa extraordinária: não esperava decerto ver o que se passava a dez passos dele.
Peri, mostrando nos movimentos toda a força muscular de sua organização de aço, com a mão esquerda segura à nuca de Loredano, curvava-o sob a pressão violenta, e obrigava-o a ajoelhar.
O italiano lívido, com o rosto contraído e os olhos imensamente dilatados, tinha ainda entre as mãos hirtas a clavina fumegante.
O índio arrancou-a, e sacando a longa faca, levantou o braço para cravá-la no alto da cabeça do italiano.
Mas Álvaro tinha-se adiantado e aparou o golpe; depois estendeu a mão ao índio.
– Solta este miserável, Peri!
– Não!
– A vida deste homem me pertence; atirou sobre mim; é a minha vez de atirar sobre ele.
Álvaro ao mesmo tempo que dizia estas palavras armava a clavina e apoiava a boca na fronte do italiano.
– Ides morrer. Fazei a vossa oração.
Peri abaixou a faca; recuou um passo, e esperou.
O italiano não respondeu; a sua oração foi uma blasfêmia horrível e satânica; as palpitações violentas do coração batiam de encontro ao pergaminho que tinha no seio, e lembravam-lhe o seu tesouro que ia talvez cair nas mãos de Álvaro e dar-lhe a riqueza de que não pudera gozar.
Entretanto, na baixeza dessa alma havia ainda alguma altivez, o orgulho do crime; não suplicou, não disse uma palavra; sentindo o contato frio do ferro sobre a fronte, fechou os olhos e julgou-se morto.
Álvaro olhou-o um instante, e abaixou a clavina:
– Tu és indigno de morrer à mão de um homem, e por uma arma de guerra; pertences ao pelourinho e ao carrasco. Seria um roubo feito à justiça de Deus.
Loredano abriu os olhos; seu rosto iluminou-se com um raio de esperança.
– Vais jurar que amanhã deixarás a casa de D.
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