Álvaro, o vilão Loredano.
Na verdade, se a ação do livro leva à consumação do encontro de duas raças sob o signo da nobreza e do Cristianismo – Peri é batizado para que possa salvar Cecília –, os motivos que retardam esse final são mais complexos do que aparentam e devem ser lidos sob a dimensão de símbolos. A lenda de Tamandaré – o Noé indígena, como ressalta Alencar – pode ser tomada como o signo da fecundação da terra. A dedicação de Peri à sua Ceci, bem como a vilania do terrível Loredano, tecem o esquema alencariano: de um lado, os bons, os heróis, integrados à natureza; de outro, os maus, os covardes, desejosos de furtar da terra os tesouros ali escondidos.
Talvez o leitor atual ressinta-se devido a essa rígida esquematização. Porém, via de regra, a rigidez reside muito mais na forma de enxergar a realidade do que, propriamente, no fato em si. Pois bem, a leitura que ora nos é proposta, por tratar-se de ficção, solicita-nos os olhos da imaginação. Só dessa forma poderemos compreender a admiração exaltada de Alencar por sua pátria e enxergar em Peri o “índio preservado / em pleno corpo físico / em todo sólido / todo gás e todo líquido”, que “surpreenderá a todos não por ser exótico / mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto quando terá sido o óbvio”, de que nos fala tão contemporaneamente Caetano Veloso.
Maria Tereza Faria
Obras de José de Alencar:
Romances:
1856 – Cinco Minutos (Coleção L&PM Pocket)
1857 – O Guarani, (Coleção L&PM Pocket)
A Viuvinha (Coleção L&PM Pocket)
1862 – Lucíola (Coleção L&PM Pocket)
1864 – Diva
1865 – Iracema (Coleção L&PM Pocket)
As Minas de Prata (1o Volume)
1866 – As Minas de Prata (2o Volume)
1870 – O Gaúcho, A Pata da Gazela
1871 – O Tronco do Ipê, A Guerra dos Mascates (1o Volume)
1872 – Sonhos d’Ouro, Til
1873 – Alfarrábios (O Garatuja, O Ermitão da Glória, Alma de Lázaro), A Guerra dos Mascates (2o Volume)
1874 – Ubirajara (Coleção L&PM Pocket)
1875 – Senhora (Coleção L&PM Pocket)
O Sertanejo
1893 – Encarnação
Teatro:
1857 – O Crédito, Verso e Reverso, Demônio Familiar
1858 – As Asas de um Anjo
1860 – Mãe
1867 – A Expiação
1875 – O Jesuíta
Não ficção:
1856 – Cartas sobre a Confederação dos Tamoios
1865 – Ao Imperador: Cartas Políticas de Erasmo, Novas
Cartas Políticas de Erasmo
1866 – Sistema Representativo
1874 – Ao Correr da Pena
1893 – Como e porque sou Romancista
Ao leitor
Publicando este livro em 1857, se disse ser aquela primeira edição uma prova tipográfica, que algum dia talvez o autor se dispusesse a rever.
Esta nova edição devia dar satisfação do empenho, que a extrema benevolência do público ledor, tão minguado ainda, mudou em bem para dívida de reconhecimento.
Mais do que podia fiou de si o autor. Relendo a obra depois de anos, achou ele tão mau e incorreto quanto escrevera, que para bem corrigir, fora mister escrever de novo. Para tanto lhe carece o tempo e sobra o tédio de um labor ingrato.
Cingiu-se pois às pequenas emendas que toleravam o plano da obra e o desalinho de um estilo não castigado.
Guarani – O título que damos a esse romance significa o indígena brasileiro. Na ocasião da descoberta, o Brasil era povoado por nações pertencentes a uma grande raça, que conquistara o país havia muito tempo, e expulsara os dominadores. Os cronistas ordinariamente designavam esta raça pelo nome Tupi; mas esta denominação não era usada senão por algumas nações. Entendemos que a melhor designação que se lhe podia dar era a da língua geral que falavam e naturalmente lembrava o nome primitivo da grande nação. (N.A.)
PRIMEIRA PARTE – OS AVENTUREIROS
I – CENÁRIO
De um dos cabeços da Serra dos Órgãos desliza um fio de água que se dirige para o norte, e, engrossado com os mananciais que recebe no seu curso de dez léguas, torna-se rio caudal.
É o Paquequer[1]: saltando de cascata em cascata, enroscando-se como uma serpente, vai depois se espreguiçar na várzea e embeber no Paraíba, que rola majestosamente em seu vasto leito.
Dir-se-ia que, vassalo e tributário desse rei das águas, o pequeno rio, altivo e sobranceiro contra os rochedos, curva-se humildemente aos pés do suserano. Perde então a beleza selvática; suas ondas são calmas e serenas como as de um lago, e não se revoltam contra os barcos e as canoas que resvalam sobre elas: escravo submisso, sofre o látego do senhor.
Não é neste lugar que ele deve ser visto; sim três ou quatro léguas acima de sua foz, onde é livre ainda, como o filho indômito desta pátria da liberdade.
Aí, o Paquequer lança-se rápido sobre o seu leito, e atravessa as florestas como o tapir, espumando, deixando o pelo esparso pelas pontas do rochedo, e enchendo a solidão com o estampido de sua carreira. De repente, falta-lhe o espaço, foge-lhe a terra; o soberbo rio recua um momento para concentrar as suas forças, e precipita-se de um só arremesso, como o tigre sobre a presa.
Depois, fatigado do esforço supremo, se estende sobre a terra, e adormece numa linda bacia que a natureza formou, e onde o recebe como em um leito de noiva, sob as cortinas de trepadeiras e flores agrestes.
A vegetação nessas paragens ostentava outrora todo o seu luxo e vigor; florestas virgens se estendiam ao longo das margens do rio, que corria no meio das arcarias de verdura e dos capitéis formados pelos leques das palmeiras.
Tudo era grande e pomposo no cenário que a natureza, sublime artista, tinha decorado para os dramas majestosos dos elementos, em que o homem é apenas um simples comparsa.
No ano da graça de 1604, o lugar que acabamos de descrever estava deserto e inculto; a cidade do Rio de Janeiro tinha-se fundado havia menos de meio século, e a civilização não tivera tempo de penetrar o interior.
Entretanto, via-se à margem direita do rio uma casa larga e espaçosa, construída sobre uma eminência, e protegida de todos os lados por uma muralha de rocha cortada a pique.
A esplanada, sobre que estava assentado o edifício, formava um semicírculo irregular que teria quando muito cinquenta braças quadradas; do lado do norte havia uma espécie de escada de lajedo feita metade pela natureza e metade pela arte.
Descendo dois ou três dos largos degraus de pedra da escada, encontrava-se uma ponte de madeira solidamente construída sobre uma fenda larga e profunda que se abria na rocha. Continuando a descer, chegava-se à beira do rio, que se curvava em seio gracioso, sombreado pelas grandes gameleiras e angelins que cresciam ao longo das margens.
Aí, ainda a indústria do homem tinha aproveitado habilmente a natureza para criar meios de segurança e defesa.
De um e outro lado da escada seguiam dois renques de árvores, que, alargando gradualmente, iam fechar como dois braços o seio do rio; entre o tronco dessas árvores, uma alta cerca de espinheiros tornava aquele pequeno vale impenetrável.
A casa era edificada com a arquitetura simples e grosseira, que ainda apresentam as nossas primitivas habitações; tinha cinco janelas de frente, baixas, largas, quase quadradas.
Do lado direito estava a porta principal do edifício, que dava sobre um pátio cercado por uma estacada, coberta de melões agrestes. Do lado esquerdo estendia-se até a borda da esplanada uma asa do edifício, que abria duas janelas sobre o desfiladeiro da rocha.
No ângulo que esta asa fazia com o resto da casa, havia uma coisa que chamaremos jardim, e de fato era uma imitação graciosa de toda a natureza rica, vigorosa e esplêndida, que a vista abraçava do alto do rochedo.
Flores agrestes das nossas matas, pequenas árvores copadas, um estendal de relvas, um fio de água, fingindo um rio e formando uma pequena cascata, tudo isto a mão do homem tinha criado no pequeno espaço com uma arte e graça admirável.
À primeira vista, olhando esse rochedo da altura de duas braças, donde se precipitava um arroio da largura de um copo de água, e o monte de grama, que tinha quando muito o tamanho de um divã, parecia que a natureza se havia feito menina e se esmerara em criar por capricho uma miniatura.
O fundo da casa, inteiramente separado do resto da habitação por uma cerca, era tomado por dois grandes armazéns ou senzalas, que serviam de morada a aventureiros e acostados.
Finalmente, na extrema do pequeno jardim, à beira do precipício, via-se uma cabana de sapé, cujos esteios eram duas palmeiras que haviam nascido entre as fendas das pedras. As abas do teto desciam até o chão; um ligeiro sulco privava as águas da chuva de entrar nesta habitação selvagem.
Agora que temos descrito o aspecto da localidade, onde se deve passar a maior parte dos acontecimentos desta história, podemos abrir a pesada porta de jacarandá, que serve de entrada, e penetrar no interior do edifício.
A sala principal, o que chamamos ordinariamente sala da frente, respirava um certo luxo que parecia impossível existir nessa época em um deserto, como era então aquele sítio.
As paredes e o teto eram caiados, mas cingidos por um largo florão de pintura a fresco; nos espaços das janelas pendiam dois retratos que representavam um fidalgo velho e uma dama também idosa.
Sobre a porta do centro desenhava-se um brasão de armas[2] em campo de cinco vieiras de ouro, riscadas em cruz entre quatro rosas de prata sobre palas e faixas. No escudo, formado por uma brica de prata orlada de vermelho, via-se um elmo também de prata, paquife de ouro e de azul, e por timbre um meio leão de azul com uma vieira de ouro sobre a cabeça.
Um largo reposteiro de damasco vermelho, onde se reproduzia o mesmo brasão, ocultava esta porta, que raras vezes se abria, e dava para um oratório. Defronte, entre as duas janelas do meio, havia um pequeno dossel fechado por cortinas brancas com apanhados azuis.
Cadeiras de couro de alto espaldar, uma mesa de jacarandá de pés torneados, uma lâmpada de prata suspensa ao teto, constituíam a mobília da sala, que respirava um ar severo e triste.
Os aposentos interiores eram do mesmo gosto, menos as decorações heráldicas; na asa do edifício, porém, esse aspecto mudava de repente, e era substituído por um quer que seja de caprichoso e delicado que revelava a presença de uma mulher.
Com efeito, nada mais loução do que essa alcova, em que os brocatéis de seda se confundiam com as lindas penas de nossas aves, enlaçadas em grinaldas e festões pela orla do teto e pela cúpula do cortinado de um leito colocado sobre um tapete de peles de animais selvagens.
A um canto, pendia da parede um crucifixo em alabastro, aos pés do qual havia um escabelo de madeira dourada.
Pouco distante, sobre uma cômoda, via-se uma dessas guitarras espanholas que os ciganos introduziram no Brasil quando expulsos de Portugal, e uma coleção de curiosidades minerais de cores mimosas e formas esquisitas.
Junto à janela, havia um traste que à primeira vista não se podia definir; era uma espécie de leito ou sofá de palha matizada de várias cores e entremeada de penas negras e escarlates.
Uma garça-real empalhada, prestes a desatar o voo, segurava com o bico a cortina de tafetá azul que ela abria com a ponta de suas asas brancas e, caindo sobre a porta, vendava esse ninho da inocência aos olhos profanos.
Tudo isto respirava um suave aroma de benjoim, que se tinha impregnado nos objetos com o seu perfume natural, ou como a atmosfera do paraíso que uma fada habitava.
II – LEALDADE
A habitação que descrevemos pertencia a D. Antônio de Mariz[3], fidalgo português de cota d’armas e um dos fundadores da cidade do Rio de Janeiro.
Era dos cavalheiros que mais se haviam distinguido nas guerras da conquista, contra a invasão dos franceses e os ataques dos selvagens.
Em 1567 acompanhou Mem de Sá ao Rio de Janeiro, e, depois da vitória alcançada pelos portugueses, auxiliou o governador nos trabalhos da fundação da cidade e consolidação do domínio de Portugal nessa capitania.
Fez parte em 1578 da célebre expedição do Dr. Antônio de Salema contra os franceses, que haviam estabelecido uma feitoria em Cabo Frio para fazerem o contrabando de pau-brasil.
Serviu por este mesmo tempo de provedor da real fazenda, e depois da alfândega do Rio de Janeiro; mostrou sempre nesses empregos o seu zelo pela república e a sua dedicação ao rei.
Homem de valor, experimentado na guerra, ativo, afeito a combater os índios, prestou grandes serviços nas descobertas e explorações do interior de Minas e Espírito Santo. Em recompensa do seu merecimento, o governador Mem de Sá lhe havia dado uma sesmaria de uma légua com fundo sobre o sertão, a qual, depois de haver explorado, deixou por muito tempo devoluta.
A derrota de Alcácer-Quibir e o domínio espanhol que se lhe seguiu vieram modificar a vida de D. Antônio de Mariz.
Português de antiga têmpera, fidalgo leal, entendia que estava preso ao rei de Portugal pelo juramento da nobreza, e que só a ele devia preito e menagem. Quando pois, em 1582, foi aclamado no Brasil D. Felipe II como o sucessor da monarquia portuguesa, o velho fidalgo embainhou a espada e retirou-se do serviço.
Por algum tempo esperou a projetada expedição de D. Pedro da Cunha[4]4, que pretendeu transportar ao Brasil a coroa portuguesa, colocada então sobre a cabeça do seu legítimo herdeiro, D. Antônio, prior do Crato.
Depois, vendo que esta expedição não se realizava, e que seu braço e sua coragem de nada valiam ao rei de Portugal, jurou que ao menos lhe guardaria fidelidade até a morte. Tomou os seus penates, o seu brasão, as suas armas, a sua família, e foi estabelecer-se naquela sesmaria que lhe concedera Mem de Sá. Aí, de pé sobre a eminência em que ia assentar o seu novo solar, D. Antônio de Mariz, erguendo o vulto direito, e lançando um olhar sobranceiro pelos vastos horizontes que abriam em torno, exclamou:
– Aqui sou português! Aqui pode respirar à vontade um coração leal, que nunca desmentiu a fé do juramento. Nesta terra que me foi dada pelo meu rei, e conquistada pelo meu braço, nesta terra livre, tu reinarás, Portugal, como viverás n’alma de teus filhos.
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