Eu o juro!

Descobrindo-se, curvou o joelho em terra, e estendeu a mão direita sobre o abismo, cujos ecos adormecidos repetiram ao longe a última frase do juramento prestado sobre o altar da natureza, em face do sol que transmontava.

Isto se passara em abril de 1593; no dia seguinte, começaram os trabalhos da edificação de uma pequena habitação que serviu de residência provisória, até que os artesãos vindos do reino construíram e decoraram a casa que já conhecemos.

D. Antônio tinha ajuntado fortuna durante os primeiros anos de sua vida aventureira; e não só por capricho de fidalguia, mas em atenção à sua família, procurava dar a essa habitação construída no meio de um sertão todo o luxo e comodidade possíveis.

Além das expedições que fazia periodicamente à cidade do Rio de Janeiro, para comprar fazendas e gêneros de Portugal, que trocava pelos produtos da terra, mandara vir do reino alguns oficiais mecânicos e hortelãos, que aproveitavam os recursos dessa natureza tão rica para proverem os seus habitantes de todo o necessário.

Assim, a casa era um verdadeiro solar de fidalgo português, menos as ameias e a barbacã, as quais haviam sido substituídas por essa muralha de rochedos inacessíveis, que ofereciam uma defesa natural e uma resistência inexpugnável.

Na posição em que se achava, isto era necessário por causa das tribos selvagens, que, embora se retirassem sempre das vizinhanças dos lugares habitados pelos colonos, e se entranhassem pelas florestas, costumavam contudo fazer correrias e atacar os brancos à traição.

Em um círculo de uma légua da casa, não havia senão algumas cabanas em que moravam aventureiros[5] pobres, desejosos de fazer fortuna rápida, e que tinham-se animado a se estabelecer neste lugar, em parcerias de dez e vinte, para mais facilmente praticarem o contrabando do ouro e pedras preciosas, que iam vender na costa.

Estes, apesar das precauções que tomavam contra os ataques dos índios, fazendo paliçadas e reunindo-se uns aos outros para defesa comum, em ocasião de perigo vinham sempre abrigar-se na casa de D. Antônio de Mariz, a qual fazia as vezes de um castelo feudal na Idade Média.

O fidalgo os recebia como um rico-homem que devia proteção e asilo aos seus vassalos; socorria-os em todas as suas necessidades, e era estimado e respeitado por todos que vinham, confiados na sua vizinhança, estabelecer-se por esses lugares.

Deste modo, em caso de ataque dos índios, os moradores da casa do Paquequer não podiam contar senão com os seus próprios recursos; e por isso D. Antônio, como homem prático e avisado que era, havia-se premunido para qualquer ocorrência.

Ele mantinha, como todos os capitães de descobertas daqueles tempos coloniais, uma banda de aventureiros que lhe serviam às suas explorações e correrias pelo interior; eram homens ousados, destemidos, reunindo ao mesmo tempo aos recursos do homem civilizado a astúcia e agilidade do índio de quem haviam aprendido; eram uma espécie de guerrilheiros, soldados e selvagens ao mesmo tempo.

D. Antônio de Mariz, que os conhecia, havia estabelecido entre eles uma disciplina militar rigorosa, mas justa; a sua lei era a vontade do chefe; o seu dever a obediência passiva, o seu direito uma parte igual na metade dos lucros. Nos casos extremos, a decisão era proferida por um conselho de quatro, presidido pelo chefe; e cumpria-se sem apelo, como sem demora e hesitação.

Pela força da necessidade, pois, o fidalgo se havia constituído senhor de baraço e cutelo, de alta e baixa justiça dentro de seus domínios; devemos porém declarar que rara vez se tornara precisa a aplicação dessa lei rigorosa; a severidade tinha apenas o efeito salutar de conservar a ordem, a disciplina e a harmonia.

Quando chegava a época da venda dos produtos, que era sempre anterior à saída da armada de Lisboa, metade da banda dos aventureiros ia à cidade do Rio de Janeiro, apurava o ganho, fazia a troca dos objetos necessários, e na volta prestava suas contas. Uma parte dos lucros pertencia ao fidalgo, como chefe; a outra era distribuída igualmente pelos quarenta aventureiros, que a recebiam em dinheiro ou em objetos de consumo.

Assim vivia, quase no meio do sertão, desconhecida e ignorada essa pequena comunhão de homens, governando-se com as suas leis, os seus usos e costumes; unidos entre si pela ambição da riqueza, e ligados ao seu chefe pelo respeito, pelo hábito da obediência e por essa superioridade moral que a inteligência e a coragem exercem sobre as massas.

Para D. Antônio e para seus companheiros a quem ele havia imposto sua fidelidade, esse torrão brasileiro, esse pedaço de sertão, não era senão um fragmento de Portugal livre, de sua pátria primitiva; aí só se reconhecia como rei ao duque de Bragança, legítimo herdeiro da coroa; e quando se corriam as cortinas do dossel da sala, as armas que se viam eram as cinco quinas portuguesas, diante das quais todas as frontes inclinavam.

D. Antônio tinha cumprido o seu juramento de vassalo leal; e, com a consciência tranquila por ter feito o seu dever, com a satisfação que dá ao homem o mando absoluto, ainda mesmo em um deserto, rodeado de seus companheiros que ele considerava amigos, vivia feliz no seio de sua pequena família.

Esta se compunha de quatro pessoas:

Sua mulher, D. Lauriana[6], dama paulista, imbuída de todos os prejuízos de fidalguia e de todas as abusões religiosas daquele tempo; no mais, um bom coração, um pouco egoísta, mas não tanto que não fosse capaz de um ato de dedicação.

Seu filho, D. Diogo de Mariz[7], que devia mais tarde prosseguir na carreira de seu pai, e lhe sucedeu em todas as honras e forais; ainda moço, na flor da idade, gastava o tempo em correrias e caçadas.

Sua filha, D. Cecília, que tinha dezoito anos, e que era a deusa desse pequeno mundo que ela iluminava com o seu sorriso, e alegrava com o seu gênio travesso e a sua mimosa faceirice.

D. Isabel, sua sobrinha, que os companheiros de D. Antônio, embora nada dissessem, suspeitavam ser o fruto dos amores do velho fidalgo por uma índia que havia cativado em uma das suas explorações.

Demorei-me em descrever a cena e falar de algumas das principais personagens deste drama porque assim era preciso para que bem se compreendam os acontecimentos que depois se passaram.

Deixarei porém que os outros perfis se desenhem por si mesmos.

III – A BANDEIRA

Era meio-dia.

Um troço de cavaleiros, que constaria quando muito de quinze pessoas, costeava a margem direita do Paraíba.

Estavam todos armados da cabeça até os pés; além da grande espada de guerra que batia as ancas do animal, cada um deles trazia à cinta dois pistoletes[8]8, um punhal na ilharga do calção, e o arcabuz passado a tiracolo pelo ombro esquerdo.

Pouco adiante, dois homens a pé tocavam alguns animais carregados de caixas e outros volumes cobertos com uma sarapilheira alcatroada, que os abrigava da chuva.

Quando os cavaleiros, que seguiam a trote largo, venciam a pequena distância que os separava da tropa, os dois caminheiros, para não atrasarem a marcha, montavam na garupa dos animais e ganhavam de novo a dianteira.

Naquele tempo dava-se o nome de bandeiras a essas caravanas de aventureiros que se entranhavam pelos sertões do Brasil, à busca de ouro, de brilhantes e esmeraldas, ou à descoberta de rios e terras ainda desconhecidos. A que nesse momento costeava a margem do Paraíba era da mesma natureza; voltava do Rio de Janeiro, onde fora vender os produtos de sua expedição pelos terrenos auríferos.

Uma das ocasiões, em que os cavaleiros se aproximaram da tropa que seguia a alguns passos, um moço de vinte e oito anos, bem parecido, e que marchava à frente do troço, governando o seu cavalo com muito garbo e gentileza, quebrou o silêncio geral.

– Vamos, rapazes! disse ele alegremente aos caminheiros; um pouco de diligência, e chegaremos com cedo. Restam-nos apenas umas quatro léguas!

Um dos bandeiristas, ao ouvir estas palavras, chegou as esporas à cavalgadura, e avançando algumas braças colocou-se ao lado do moço.

– Ao que parece, tendes pressa de chegar, Sr. Álvaro de Sá? disse ele com um ligeiro acento italiano, e um meio sorriso cuja expressão de ironia era disfarçada por uma benevolência suspeita.

– Decerto, Sr. Loredano; nada é mais natural a quem viaja do que o desejo de chegar.

– Não digo o contrário; mas confessareis que nada também é mais natural a quem viaja do que poupar os seus animais.

– Que quereis dizer com isto, Sr. Loredano? perguntou Álvaro com um movimento de enfado.

– Quero dizer, sr. cavalheiro, respondeu o italiano em tom de mofa e medindo com os olhos a altura do sol, que chegaremos hoje pouco antes das seis horas.

Álvaro corou.

– Não vejo em que isto vos causa reparo; a alguma hora havíamos chegar; e melhor é que seja de dia, do que de noite.

– Assim como melhor é que seja em um sábado do que em outro qualquer dia! replicou o italiano no mesmo tom.

Um novo rubor assomou às faces de Álvaro, que não pôde disfarçar o seu enleio; mas, recobrando o desembaraço, soltou uma risada, e respondeu:

– Ora, Deus, Sr. Loredano; estais aí a falar-me na ponta dos beiços e com meias palavras; à fé de cavalheiro que não vos entendo.

– Assim deve ser. Diz a Escritura que não há pior surdo do que aquele que não quer ouvir.

– Oh! temos anexim! Aposto que aprendeste isto agora em São Sebastião: foi alguma velha beata, ou algum licenciado em cânones que vo-lo ensinou? disse o cavalheiro gracejando.

– Nem um nem outro, sr. cavalheiro; foi um fanqueiro da Rua dos Mercadores, que por sinal também me mostrou custosos brocados e lindas arrecadas de pérolas, bem próprias para o mimo de um gentil cavalheiro à sua dama.

Álvaro enrubesceu pela terceira vez.

Decididamente o sarcástico italiano, com o seu espírito mordaz, achava meio de ligar a todas as perguntas do moço uma alusão que o incomodava; e isto no tom o mais natural do mundo.

Álvaro quis cortar a conversação neste ponto; mas o seu companheiro prosseguiu com extrema amabilidade:

– Não entrastes por acaso na loja desse fanqueiro de que vos falei, sr. cavalheiro?

– Não me lembro; é de crer que não, pois apenas tive tempo de arranjar os nossos negócios, e nem um me restou para ver essas galantarias de damas e fidalgas, disse o moço com frieza.

– É verdade! acudiu Loredano com uma ingenuidade simulada; isto me faz lembrar que só nos demoramos no Rio de Janeiro cinco dias, quando das outras vezes eram nunca menos de dez e quinze.

– Tive ordem para haver-me com toda a rapidez; e creio, continuou fitando no italiano um olhar severo, que não devo contas de minhas ações senão àqueles a quem dei o direito de pedi-las.

Per Bacco, cavalheiro! Tomais as coisas ao revés. Ninguém vos pergunta por que motivo fazeis aquilo que vos praz; mas também achareis justo que cada um pense à sua maneira.

– Pensai o que quiserdes! disse Álvaro levantando os ombros e avançando o passo da sua cavalgadura.

A conversa interrompeu-se.

Os dois cavaleiros, um pouco adiantados ao resto do troço, caminhavam silenciosos um a par do outro.

Álvaro às vezes enfiava um olhar pelo caminho como para medir a distância que ainda tinham de percorrer, e outras vezes parecia pensativo e preocupado.

Nestas ocasiões, o italiano lançava sobre ele um olhar a furto, cheio de malícia e ironia; depois continuava a assobiar entredentes uma cançoneta de condottiere, de quem ele apresentava o verdadeiro tipo.

Um rosto moreno, coberto por uma longa barba negra, entre a qual o sorriso desdenhoso fazia brilhar a alvura de seus dentes; olhos vivos, a fronte larga, descoberta pelo chapéu desabado que caía sobre o ombro; alta estatura, e uma constituição forte, ágil e musculosa, eram os principais traços deste aventureiro.

A pequena cavalgata tinha deixado a margem do rio, que não oferecia mais caminho, e tomara por uma estreita picada aberta na mata.

Apesar de ser pouco mais de duas horas, o crepúsculo reinava nas profundas e sombrias abóbadas de verdura: a luz, coando entre a espessa folhagem, se decompunha inteiramente; nem uma réstia de sol penetrava nesse templo da criação, ao qual serviam de colunas os troncos seculares dos acaris e araribás.

O silêncio da noite, com os seus rumores vagos e indecisos e os seus ecos amortecidos, dormia no fundo dessa solidão, e era apenas interrompido um momento pelo passo dos animais, que faziam estalar as folhas secas.

Parecia que deviam ser seis horas da tarde, e que o dia caindo envolvia a terra nas sombras pardacentas do ocaso.

Álvaro de Sá, embora habituado a esta ilusão, não pôde deixar de sobressaltar-se um instante, em que, saindo da sua meditação, viu-se de repente no meio do claro-escuro da floresta.

Involuntariamente ergueu a cabeça para ver se através da cúpula de verdura descobria o sol, ou pelo menos alguma centelha de luz que lhe indicasse a hora.

Loredano não pôde reprimir a risada sardônica que lhe veio aos lábios.

– Não vos dê cuidado, sr. cavalheiro, antes de seis horas lá estaremos; sou eu que vo-lo digo.

O moço voltou-se para o italiano, rugando o sobrolho.

– Sr. Loredano, é a segunda vez que dizeis esta palavra em um tom que me desagrada; pareceis querer dar a entender alguma coisa, mas falta-vos o ânimo de a proferir. Uma vez por todas, falai abertamente, e Deus vos guarde de tocar em objetos que são sagrados.

Os olhos do italiano lançaram uma faísca; mas o seu rosto conservou-se calmo e sereno.

– Bem sabeis que vos devo obediência, sr. cavalheiro, e não faltarei dela. Desejais que fale claramente, e a mim me parece que nada do que tenho dito pode ser mais claro do que é.

– Para vós, não duvido; mas isto não é razão de que o seja para outros.

– Ora dizei-me, sr.