Aires Gomes, disse Martim Vaz.

– Aquele que dá as ordens sabe o que faz; a nós cumpre obedecer, respondeu o escudeiro.

– Ah! por que não dizíeis isto logo?

– Pois ficareis agora entendidos; boa guarda, que talvez breve tenhamos que ver.

– Venha isso, acudiu Bento Simões, que já me enfastio de atirar às pacas e porcos do mato.

– E em honra de quem pensais vós que queimaremos breve algumas libras de pólvora? perguntou Vasco Afonso.

– Tem que saber isso? Quem, senão os índios, nos dão esta folia?

Loredano ergueu a cabeça.

– Que histórias contais aí? Supondes que os índios nos atacarão? perguntou ele.

– Oh! eis misser italiano que acorda; foi preciso cheirar-lhe a chamusco, exclamou Martim Vaz.

A presença de Aires Gomes, reprimindo a franca hilaridade dos aventureiros, fez com que fossem uns após outros desamparando a mesa e deixassem o escudeiro na companhia dos canjirões e escudelas.

Loredano, levantando-se, fez um gesto a Rui Soeiro e a Bento Simões; e os três seguiram juntos até ao meio do terreiro; o italiano murmurou-lhes ao ouvido uma simples palavra:

– Amanhã!

Depois, como se nada se tivesse passado entre eles, os dois aventureiros seguiram cada um de seu lado e deixaram Loredano continuar o seu caminho até a beira do precipício.

Do lado oposto, o italiano viu refletir-se sobre as árvores o tênue reflexo da luz que esclarecia o quarto de Cecília, cujas janelas não podia distinguir por causa do ângulo que formava a esplanada.

Aí esperou.

Álvaro, deixando Cecília, voltara triste e sentido da recusa que sofrera, embora o consolasse a sua última palavra, e sobretudo o sorriso que a acompanhou.

Não se podia resignar à perda desse prazer infinito com que havia contado de ver nos ornatos da moça uma prenda sua, uma lembrança que lhe dissesse que pensava nele. Tinha afagado tanto essa ideia, tinha vivido tanto tempo dela, que arrancá-la do seu espírito seria um sofrimento cruel.

Enquanto atravessava o espaço que o separava do seu aposento, formulou um projeto e tomou uma resolução. Meteu numa pequena bolsa de seda uma caixinha de joias; e envolvendo-se no seu manto, costeou a casa e aproximou-se do pequeno jardim que entestava com o gabinete de Cecília.

Também ele viu a luz das janelas se refletir defronte; e esperou que a noite se adiantasse e toda a casa dormisse.

Ao tempo que isto se passava, Peri, o índio que já conhecemos, tinha chegado com o seu fardo, tão precioso que não o trocaria por um tesouro.

No valado que se estendia à beira do rio, deixou o seu prisioneiro, depois de o ter metido numa espécie de tronco que arranjou, curvando um galho de árvore. Subiu então à esplanada, e foi nesta ocasião que a moça o viu entrar na sua cabana; o que porém não pôde distinguir foi a maneira por que saíra quase logo.

Havia dois dias que não via sua senhora, que não recebia dela uma ordem, que não adivinhava um desejo seu para satisfazê-lo imediatamente.

O primeiro pensamento do índio foi pois ver Cecília, ou ao menos a sua sombra; entrando na cabana percebeu, como os outros, a réstia de luz que coava entre as cortinas da janela.

Suspendeu-se a uma das palmeiras que servia de esteio à choça e por um desses movimentos ágeis que lhe eram tão naturais, de um salto segurou-se ao galho de um óleo[15] gigante que, elevando-se sobre a encosta fronteira, deitava alguns ramos do lado da casa.

Durante um momento o índio pairou sobre o abismo, balançando-se no galho fraco que o sustinha; depois equilibrou-se e continuou essa viagem aérea com a mesma segurança e a mesma firmeza com que um velho marinheiro caminha sobre as gáveas e sobre as enxárcias.

Com uma ligeireza extraordinária ganhou o outro lado da árvore e, escondido pela folhagem, aproximou-se até um galho que ficava fronteiro das janelas de Cecília cerca de uma braça. Era nesse mesmo momento que Loredano chegava de um lado e Álvaro de outro, e se colocavam igualmente a alguns passos.

A princípio, Peri só teve olhos para ver o que se passava dentro do aposento: Cecília examinava ainda por uma última vez as encomendas que lhe haviam chegado do Rio de Janeiro.

Nessa muda contemplação, o índio esqueceu tudo. Que lhe importava o precipício que se abria a seus pés para tragá-lo ao menor movimento, e sobre o qual planava num ramo fraco que vergava e se podia partir a todo o instante!

Era feliz: tinha visto sua senhora; ela estava alegre, contente e satisfeita; podia ir dormir e repousar.

Uma lembrança triste porém o assaltou; vendo os lindos objetos que a moça recebera, pensou que podia dar-lhe a sua vida, mas que não tinha primores como aqueles para ofertar-lhe.

O pobre selvagem ergueu os olhos ao céu num assomo de desespero, como para ver se, colocado duzentos palmos acima da terra, sobre as grimpas da árvore, poderia estender a mão e colher estrelas que deitasse aos pés de Cecília.

Assim, era esse o ponto onde se irradiavam aquelas três linhas partidas de pontos tão diferentes. De maneira por que estavam colocados, formavam um verdadeiro triângulo, cujo centro era a janela frouxamente iluminada.

Todos eles arriscavam ou iam arriscar sua vida, unicamente para tocarem com a mão o umbral da gelosia; e entretanto nem um pesava o perigo que ia correr; nem um julgava que sua vida valesse a pena de mercadejar por ela um prazer.

É que as paixões no deserto, e sobretudo no seio desta natureza grande e majestosa, são verdadeiras epopeias do coração.

IX – AMOR

As cortinas da janela cerraram-se; Cecília tinha-se deitado.

Junto da inocente menina adormecida na isenção de sua alma pura de virgem, velavam três sentimentos profundos, palpitavam três corações bem diferentes.

Em Loredano, o aventureiro de baixa extração, esse sentimento era um desejo ardente, uma sede de gozo, uma febre que lhe requeimava o sangue; o instinto brutal dessa natureza vigorosa era ainda aumentado pela impossibilidade moral que a sua condição criava, pela barreira que se elevava entre ele, pobre colono, e a filha de D. Antônio de Mariz, rico fidalgo de solar e brasão.

Para destruir esta barreira e igualar as posições, seria necessário um acontecimento extraordinário, um fato que alterasse completamente as leis da sociedade naquele tempo mais rigorosas do que hoje; era preciso uma dessas situações em face das quais os indivíduos, qualquer que seja a sua hierarquia, nobres e párias, nivelam-se; e descem ou sobem à condição de homens.

O aventureiro compreendia isto; talvez que o seu espírito italiano já tivesse sondado o alcance dessa ideia; em todo o caso, o que afirmamos é que ele esperava, e esperando vigiava o seu tesouro com um zelo e uma constância a toda a prova; os vinte dias que passara no Rio de Janeiro tinham sido verdadeiro suplício.

Em Álvaro, cavalheiro delicado e cortês, o sentimento era uma afeição nobre e pura, cheia de graciosa timidez que perfuma as primeiras flores do coração, e do entusiasmo cavalheiresco que tanta poesia dava aos amores daquele tempo de crença e lealdade.

Sentir-se perto de Cecília, vê-la e trocar alguma palavra a custo balbuciada; corarem ambos sem saberem por que, e fugirem desejando encontrar-se; era toda a história desse afeto inocente, que se entregava descuidosamente ao futuro, librando-se nas asas da esperança.

Nesta noite Álvaro ia dar um passo que, na sua habitual timidez, ele comparava quase com um pedido formal de casamento; tinha resolvido fazer a moça aceitar, malgrado seu, o mimo que recusara, deitando-o na sua janela; esperava que, encontrando-o no dia seguinte, Cecília lhe perdoaria o seu ardimento e conservaria a sua prenda.

Em Peri o sentimento era um culto, espécie de idolatria fanática, na qual não entrava um só pensamento de egoísmo; amava Cecília não para sentir um prazer ou ter uma satisfação, mas para dedicar-se inteiramente a ela, para cumprir o menor dos seus desejos, para evitar que a moça tivesse um pensamento que não fosse imediatamente uma realidade.

Ao contrário dos outros ele não estava ali, nem por um ciúme inquieto, nem por uma esperança risonha; arrostava a morte unicamente para ver se Cecília estava contente, feliz e alegre; se não desejava alguma coisa que ele adivinharia no seu rosto, e iria buscar nessa mesma noite, nesse mesmo instante.

Assim o amor se transformava tão completamente nessas organizações, que apresentava três sentimentos bem distintos; um era uma loucura, o outro uma paixão, o último uma religião.

Loredano desejava; Álvaro amava; Peri adorava. O aventureiro daria a vida para gozar; o cavalheiro arrostaria a morte para merecer um olhar; o selvagem se mataria, se preciso fosse, só para fazer Cecília sorrir.

Entretanto nenhum desses três homens podia tocar a janela da moça, sem correr um risco iminente; e isto pela posição em que se achava o quarto de Cecília.

Embora o alicerce e a parede corressem a uma braça de distância da ribanceira, D. Antônio de Mariz para defender esta parte do edifício tinha feito construir um respaldo que se abaixava da precinta das janelas até a beira da esplanada; era impossível pois caminhar sobre este plano inclinado, cuja face lisa e polida não oferecia nenhuma adesão ao pé o mais firme e o mais seguro.

Abaixo da janela abria-se a rocha cortada a pique e formava um valado profundo, coberto por um dossel verde de trepadeiras e cipós que servia de habitação a todos esses répteis de mil formas que pululam na sombra e na umidade.

Assim o homem que se precipitasse do alto da esplanada nessa fenda larga e funda, se por um milagre não se espedaçasse nas pontas da rocha, seria devorado em um momento pelas cobras e insetos venenosos que enchiam essas grotas e alcantis.

Havia alguns instantes que a cortina da janela se tinha cerrado; apenas uma luz vaga e mortiça desenhava na folhagem verde-negro do óleo o quadro da janela.

O italiano que tinha os olhos fitos nesse reflexo como em um espelho, onde revia todas as imagens de sua louca paixão, estremeceu de repente. Na claridade debuxava-se uma sombra móbil; um homem se aproximava da janela.

Pálido, com os olhos ardentes e os dentes cerrados, pendido sobre o precipício, seguia as menores evoluções da sombra.

Viu um braço que se estendia para a janela, e a mão que deixava no parapeito um objeto qualquer, mas tão pequeno que não se percebia a forma. Pela manga larga do gibão, ou antes pelo instinto, o italiano adivinhou que este braço pertencia a Álvaro; e compreendeu o que esta mão havia deitado na janela.

E não se enganava.

Álvaro, segurando-se a uma estaca do jardim e pondo um pé sobre o respaldo, do seu o corpo à parede; inclinando conseguiu realizar o seu intento.

Depois voltou partilhado entre o temor da ação que praticara e a esperança de que Cecília lhe perdoaria.

Loredano apenas viu desaparecer a sombra, e ouviu os ecos dos passos do moço, que se repercutiam surdamente no fundo do precipício, sorriu. Sua pupila fulva brilhou na treva, como os olhos da irara[16].

Tirou a sua adaga e cravou-a na parede tão longe quanto lhe permitiu a curva que o braço era obrigado a fazer para abarcar o ângulo.

Suspendendo-se então a este fraco apoio pôde galgar o respaldo e aproximar-se da janela; à menor indecisão, ao menor movimento, bastava que o pé lhe faltasse, ou que o punhal vacilasse no cimento, para precipitar-se com a cabeça sobre as pedras.

Enquanto isto se passava, Peri sentado tranquilamente no galho do óleo, e escondido pela folhagem, assistia imóvel a toda esta cena.

Logo que Cecília cerrou as cortinas da janela, o índio vira os dois homens que colocados à direita e à esquerda pareciam esperar.

Esperou também, curioso de saber o que se ia passar, mas resolvido, se fosse preciso, a lançar-se de um pulo sobre aquele que ousasse fazer a menor violência, e a caírem ambos do alto da esplanada. Tinha reconhecido Álvaro e Loredano; desde muito tempo que conhecia o amor do cavalheiro por Cecília; mas sobre o italiano nunca tivera a menor suspeita.

O que podiam querer estes dois homens? Que vinham eles fazer ali àquela hora silenciosa da noite?

O movimento de Álvaro explicou-lhe parte do enigma; o de Loredano ia fazer-lhe compreender o resto.

Com efeito, o italiano que se aproximara da janela, conseguiu com um esforço fazer cair o objeto, que Álvaro aí tinha deixado, no fundo do precipício. Feito isto voltou do mesmo modo, e retirou-se saboreando o prazer dessa vingança simples, mas cujo alcance ele previa.

Peri não se moveu.

Tinha compreendido com a sua sagacidade natural o amor de um e o ciúme do outro; e formulou na sua inteligência selvagem e na sua adoração fanática um pensamento que para ele era muito simples.

Se Cecília julgasse que isto devia ser assim, pouco lhe importava o mais; porém, se o que tinha visto lhe causasse uma sombra de tristeza, e empanasse um momento o brilho de seus olhos azuis, então era diferente. O índio sacrificaria tudo, antes do que consentir que um pesar anuviasse o rostinho faceiro de sua bela senhora.

Assim, tranquilizado por esta ideia, ganhou a cabana, e dormiu sonhando que a lua lhe mandava um raio de sua luz branca e acetinada para dizer-lhe que protegesse sua filha na terra.

E, com efeito, a lua se elevava sobre a cúpula das árvores e iluminava a fachada do edifício.

Então quem se aproximasse de uma das janelas que ficavam na extrema do jardim veria na penumbra do portal um vulto imóvel.

Era Isabel que velava pensativa, enxugando de vez em quando uma lágrima que desfiava-lhe pela face.

Pensava no seu amor infeliz, na solidão de sua alma, tão erma de recordações doces, de esperanças queridas. Toda essa tarde fora um martírio para ela; vira Álvaro falar a Cecília, adivinhara quase as suas palavras. Há poucos momentos tinha percebido a sombra do moço que atravessara a esplanada, e sabia que não era por sua causa que ele passava.

De vez em quando seus lábios tremiam e deixavam escaparem-se algumas palavras imperceptíveis:

– Se eu quisesse!

Tirava do seio uma redoma de ouro, sob cuja tampa de cristal se via um anel de cabelos que se enroscava no estreito aro de metal.

O que havia dentro desta redoma, de tão poderoso, de tão forte, que justificasse aquela exclamação, e o olhar brilhante que iluminava a pupila negra de Isabel?

Seria um segredo, um desses segredos terríveis que mudam de repente a face das coisas e fazem surgir o passado para esmagar o presente?

Seria algum tesouro inestimável e fabuloso, a cuja sedução a natureza humana não devia resistir?

Seria uma arma poderosa e invencível, contra a qual não houvesse defesa possível senão em um milagre da Providência?

Era o pó sutil do curare, o veneno terrível dos selvagens.

Isabel colou os lábios no cristal com uma espécie de delírio.

– Minha mãe!... minha mãe!...

Um soluço rompeu-lhe o seio.

X – AO ALVORECER

No dia seguinte, ao raiar da manhã, Cecília abriu a portinha do jardim e aproximou-se da cerca.

– Peri! disse ela.

O índio apareceu à entrada da cabana; correu alegre, mas tímido e submisso.

Cecília sentou-se num banco de relva; e a muito custo conseguiu tomar um arzinho de severidade, que de vez em quando quase traía-se por um sorriso teimoso que lhe queria fugir dos lábios.

Fitou um momento no índio os seus grandes olhos azuis com uma expressão de doce repreensão; depois disse-lhe em um tom mais de queixa do que de rigor:

– Estou muito zangada com Peri!

O semblante do selvagem anuviou-se.

– Tu, senhora, zangada com Peri! Por quê?

– Porque Peri é mau e ingrato; em vez de ficar perto de sua senhora, vai caçar em risco de morrer! disse a moça ressentida.

– Ceci[17] desejou ver uma onça viva!

– Então não posso gracejar? Basta que eu deseje uma coisa para que tu corras atrás dela como um louco?

– Quando Ceci acha bonita uma flor, Peri não vai buscar? perguntou o índio.

– Vai, sim.

– Quando Ceci ouve cantar o sofrer[18], Peri não o vai procurar?

– Que tem isso?

– Pois Ceci desejou ver uma onça, Peri a foi buscar.

Cecília não pôde reprimir um sorriso ouvindo esse silogismo rude, a que a linguagem singela e concisa do índio dava uma certa poesia e originalidade.

Mas estava resolvida a conservar a sua severidade e ralhar com Peri por causa do susto que lhe havia feito na véspera.

– Isto não é razão, continuou ela; porventura um animal feroz é a mesma coisa que um pássaro, e apanha-se como uma flor?

– Tudo é o mesmo, desde que te causa prazer, senhora.

– Mas então, exclamou a menina com um assomo de impaciência, se eu te pedisse aquela nuvem?...

E apontou para os brancos vapores que passavam ainda envolvidos nas sombras pálidas da noite.

– Peri ia buscar.

– A nuvem? perguntou a moça admirada.

– Sim, a nuvem.

Cecília pensou que o índio tinha perdido a cabeça; ele continuou:

– Somente como a nuvem não é da terra e o homem não pode tocá-la, Peri morria e ia pedir ao Senhor do céu a nuvem para dar a Ceci.

Estas palavras foram ditas com a simplicidade com que fala o coração.

A menina, que um momento duvidara da razão de Peri, compreendeu toda a sublime abnegação, toda a delicadeza de sentimento dessa alma inculta.

A sua fingida severidade não pôde mais resistir; deixou pairar nos seus lábios um sorriso divino.

– Obrigada, meu bom Peri! Tu és um amigo dedicado; mas não quero que arrisques tua vida para satisfazer um capricho meu; e sim que a conserves para me defenderes como já fizeste uma vez.

– Senhora, não está mais zangada com Peri?

– Não; apesar de que devia estar; porque Peri ontem fez sua senhora afligir-se cuidando que ele ia morrer.

– E Ceci ficou triste? exclamou o índio.

– Ceci chorou! respondeu a menina com uma graciosa ingenuidade.

– Perdoa, senhora!

– Não só te perdoo, mas quero também fazer-te o meu presente.

Cecília correu ao seu quarto e trouxe o rico par de pistolas que havia encomendado a Álvaro.

– Olha! Peri não desejava ter umas?

– Muito!

– Pois aqui tens! Tu não as deixarás nunca porque são uma lembrança de Cecília, não é verdade?

– Oh! o sol deixará primeiro a Peri, do que Peri a elas.

– Quando correres algum perigo, lembra-te que Cecília as deu para defenderem e salvarem a tua vida.

– Por que é tua, não é, senhora?

– Sim, porque é minha, e quero que a conserves para mim.

O rosto de Peri irradiava com o sentimento de um gozo imenso, de uma felicidade infinita; meteu as pistolas na cinta de penas e ergueu a cabeça orgulhoso, como um rei que acabasse de receber a unção de Deus.

Para ele essa menina, esse anjo louro, de olhos azuis, representava a divindade na terra; admirá-la, fazê-la sorrir, vê-la feliz, era o seu culto; culto santo e respeitoso em que o seu coração vertia os tesouros de sentimentos e poesia que transbordavam dessa natureza virgem.

Isabel entrou no jardim; a pobre menina tinha velado toda a noite, e o seu rosto parecia conservar ainda os traços de algumas dessas lágrimas ardentes que escaldam o seio e requeimam as faces.

A moça e o índio nem se olharam; odiavam-se mutuamente; era uma antipatia que começara desde o momento em que se viram, e que cada dia aumentava.

– Agora, Peri, Isabel e eu vamos ao banho.

– Peri te acompanha, senhora?

– Sim, mas com a condição de que Peri há de estar muito quieto e sossegado.

A razão por que Cecília impunha esta condição só podia bem compreender quem tivesse assistido a uma das cenas que se passavam quando as duas moças iam banhar-se, o que sucedia quase sempre ao domingo.

Peri, com o seu arco, companheiro inseparável e arma terrível na sua mão destra, sentava-se longe, à beira do rio, numa das pontas mais altas do rochedo ou no galho de alguma árvore, e não deixava ninguém aproximar-se num raio de vinte passos do lugar onde as moças se banhavam.

Quando algum aventureiro por acaso transpunha esse círculo que o índio traçava com o olhar em redor de si, Peri na posição sobranceira em que se colocara o percebia imediatamente.

Então se o descuidado caçador sentia o seu chapéu ornar-se de repente com uma pena vermelha que voava pelos ares sibilando; se via uma seta arrebatar-lhe o fruto que ele estendia a mão para colher; se parava assustado diante de uma longa flecha emplumada que despedida por elevação vinha cair-lhe a dois passos da frente como para embargar-lhe o caminho e servir de baliza: não se admirava.

Compreendia imediatamente o que isto queria dizer; e pelo respeito que todos votavam a D. Antônio de Mariz e à sua família, arrepiava caminho; e voltava lançando uma jura contra Peri que lhe crivara o chapéu e o obrigara a encolher a mão de susto.

E fazia bem em voltar, porque o índio com o seu zelo ardente não duvidaria vazar-lhe os olhos para evitar que, chegando-se à beira do rio, visse a moça a banhar-se nas águas.

Entretanto Cecília e sua prima tinham o costume de banhar-se vestidas com um trajo feito de ligeira estamenha que ocultava inteiramente sob a cor escura as formas do corpo, deixando-lhes os movimentos livres para nadarem.

Mas Peri entendia que apesar disto seria uma profanação consentir que um olhar de quem quer que fosse visse a senhora no seu trajo de banho; nem mesmo o dele que era seu escravo, e por conseguinte não podia ofendê-la, a ela que era o seu único deus.

Enquanto porém o índio mantinha assim pela certeza de sua vista rápida, e pela projeção das suas flechas esse círculo impenetrável para quem quer que fosse, não deixava de olhar com uma atenção escrupulosa a corrente e as margens do rio.

O peixe que beijava a flor da água, e que podia ir ofender a moça; uma cobra verde inocente que se enroscava pelas folhas dos aguapés; um camaleão que se aquecia ao sol fazendo cintilar o seu prisma de cores brilhantes; um sagui branco e felpudo que se divertia a fazer caretas maliciosas suspendendo-se pela cauda ao galho de uma árvore; tudo quanto podia ir causar um susto à moça o índio fazia fugir, se estava longe, e se estava perto, pregava o animal imóvel sobre o tronco ou sobre o chão.

Se um ramo arrastado pela corrente passava, se um pouco do limo das águas despegava-se da margem pedregosa do rio, se o fruto de uma sapucaia[19] pendida sobre o Paquequer estalava prestes a cair, o índio, veloz como o tiro do seu arco, lançava-se e retinha o coco no meio da sua queda, ou precipitava-se na água e apanhava os objetos que boiavam.

Cecília podia ser ofendida pelo tronco que a correnteza carregava, pela fruta que caía; podia assustar-se com o contato do limo julgando ser uma cobra; e Peri não perdoaria a si mesmo a mais leve mágoa que a moça sofresse por falta de cuidado seu.

Enfim ele estendia ao redor dela uma vigilância tão constante e infatigável, uma proteção tão inteligente e delicada, que a moça podia descansar, certa de que, se sofresse alguma coisa, seria porque todo o poder do homem fora impotente para evitar.

Eis pois a razão por que Cecília recomendava a Peri que estivesse quieto e sossegado; é verdade que ela sabia que essa recomendação era sempre inútil, e que o índio faria tudo para que uma abelha sequer não viesse beijar os seus lábios vermelhos confundindo-os com uma flor de pequiá[20].

Quando as duas moças atravessaram a esplanada, Álvaro passeava junto da escada.

Cecília saudou de passagem com um sorriso ao jovem cavalheiro; e desceu ligeiramente seguida por sua prima.

Álvaro que tinha procurado ler-lhe nos olhos e no rosto o perdão de sua loucura da véspera, e nada havia percebido que acabasse com o seu receio, quis seguir a moça, e falar-lhe.

Voltou-se para ver se alguém estava ali que reparasse no que ia fazer, e deu com o italiano que a dois passos dele o olhava com um dos seus sorrisos sarcásticos.

– Bom dia, Sr. cavalheiro.

Os dois inimigos trocaram um olhar que se cruzara como lâminas de aço que roçassem uma na outra.

Nesse momento Peri se aproximava lentamente deles, carregando uma das pistolas que Cecília lhe havia dado há alguns minutos.

O índio parou, e com um ligeiro sorriso de uma expressão indefinível tomou as pistolas pelo cano e apresentou-as uma a Álvaro e outra a Loredano.

Ambos compreenderam o gesto e o sorriso; ambos sentiram que tinham cometido uma imprudência, e que o espírito perspicaz do selvagem havia lido nos seus olhos um ódio profundo, e talvez a causa desse ódio.

Voltaram-se fingindo não ter visto o movimento.

Peri levantou os ombros e metendo as pistolas na cinta passou entre eles com a cabeça alta, o olhar sobranceiro, e acompanhou sua senhora.

XI – NO BANHO

Descendo a escada de pedras da esplanada Cecília perguntava à sua prima:

– Dize-me uma coisa, Isabel; por que é que tu não falas ao Sr. Álvaro?

Isabel estremeceu.

– Tenho reparado, continuou a menina, que nem mesmo respondes à cortesia que ele nos faz.

– Que ele te faz, Cecília, replicou a moça docemente.

– Confessa que não gostas dele. Tens-lhe antipatia?

A moça calou-se.

– Não falas?... olha que então vou pensar outra coisa! continuou Cecília galanteando.

Isabel empalideceu; e, levando a mão ao coração para comprimir as pulsações violentas, fez um esforço supremo e arrancou algumas palavras que pareciam queimar-lhe os lábios:

– Bem sabes que o aborreço!...

Cecília não viu a alteração da fisionomia de sua prima, porque, tendo chegado à baixa nesse momento, esquecera a conversa e começara a brincar com uma alegria infantil sobre a relva.

Mas, ainda que visse a perturbação da moça e o choque que ela tinha sentido, decerto atribuiria isso a qualquer outro motivo, menos ao verdadeiro.

A afeição que tinha a Álvaro lhe parecia tão inocente, tão natural, que nunca se lembrara que devia um dia passar daquilo que era, isto é, de um prazer que fazia sorrir, e de um enleio que fazia corar.

Esse amor pois, se era amor, não podia conhecer o que se passava na alma de Isabel; não podia compreender a sublime mentira que os lábios da moça acabavam de proferir.

Quanto a Isabel, temendo trair o seu segredo, tinha arrancado do seu coração cheio de amor essa palavra de ódio, que para ela era quase uma blasfêmia.

Mas antes isso do que revelar o que se passava em sua alma; esse mistério, essa ignorância que envolvia o seu amor e o escondia a todos os olhos, tinha para ela uma voluptuosidade inexprimível.

Podia assim fitar horas e horas o moço, sem que ele o percebesse, sem o incomodar talvez com a prece muda do olhar suplicante; podia rever-se em sua alma sem que um sorriso de desdém ou de zombaria a fizesse sofrer.

O sol vinha nascendo.

O seu primeiro raio espreguiçava-se ainda pelo céu anilado e ia beijar as brancas nuvenzinhas que corriam ao seu encontro.

Apenas a luz branda e suave da manhã esclarecia a terra e surpreendia as sombras indolentes que dormiam sob as copas das árvores.

Era a hora em que o cacto[21], a flor da noite, fechava o seu cálice cheio das gotas de orvalho com que destila o seu perfume, temendo que o sol crestasse a alvura diáfana de suas pétalas.

Cecília com a sua graça de menina travessa corria sobre a relva ainda úmida colhendo uma gracíola[22] azul que se embalançava sobre a haste, ou um malvaísco[23] que abria os lindos botões escarlates.

Tudo para ela tinha um encanto inexprimível; as lágrimas da noite que tremiam como brilhantes das folhas das palmeiras; a borboleta que ainda com as asas entorpecidas esperava o calor do sol para reanimar-se; a viuvinha[24] que escondida na ramagem avisava o companheiro que o dia vinha raiando: tudo lhe fazia soltar um grito de surpresa e de prazer.

Enquanto a menina brincava assim pela várzea, Peri, que a seguia de longe, parou de repente tomado por uma ideia que lhe fez correr pelo corpo um calafrio; lembrara-se do tigre.

De um pulo sumiu-se numa grande moita de arvoredo que se elevava a alguns passos; ouviu-se um rugido abafado, um grande farfalhar de folhas que se espedaçavam, e o índio apareceu.

Cecília tinha-se voltado um pouco trêmula:

– Que é isto, Peri?

– Nada, senhora.

– É assim que prometeste estar quieto?

– Ceci não se há de zangar mais.

– Que queres tu dizer?

– Peri sabe! respondeu o índio sorrindo.

Na véspera tinha provocado uma luta espantosa para domar e vencer um animal feroz, e deitá-lo submisso e inofensivo aos pés da moça, julgando que isso lhe causava um prazer.

Agora, estremecendo com o susto que sua senhora podia sofrer, destruíra em um instante essa ação de heroísmo, sem proferir uma palavra que a revelasse. Bastava que ele soubesse o que tinha feito, e o que todos deviam ignorar; bastava que sua alma sentisse o orgulho da nobre dedicação que se expandia no sorriso de seus lábios.

As moças que estavam bem longe de saber até que ponto tinha chegado a loucura de Peri, e que não julgavam possível que um homem pudesse fazer o que ele tinha feito, não compreenderam nem a frase, nem o sorriso.

Cecília tinha chegado a uma latada de jasmineiros[25] que havia à borda d’água, e que lhe servia de casa de banho; era um dos trabalhos do índio, que o havia arranjado com aquele cuidado e esmero que punha em satisfazer as vontades da menina.

Peri já tinha ganho a margem do rio, e estava longe; Isabel sentou-se na relva.

Então, afastando as ramas dos jasmineiros que ocultavam inteiramente a entrada, Cecília penetrou naquele pequeno pavilhão de verdura e examinou se as folhas estavam bem embastidas, se não havia alguma fresta por onde o olhar do dia penetrasse.

A inocente menina tinha vergonha até do raio de luz que podia vir espiar o tesouros de beleza que ocultava a cambraia de suas roupagens.

Assim, foi depois desse exame escrupuloso, e ainda corando de si mesma, que começou o seu vestuário de banho. Mas, quando o corpinho da anágua caindo descobriu suas alvas espáduas e seu colo puro e suave, a menina quase morreu de pejo e de susto. Um passarinho, escondido entre as folhas, um gárrulo travesso e malicioso, gritara distintamente: – Bem-te-vi!

Cecília riu-se do susto que tivera, e acabou o seu vestuário de banho que a cobria toda, deixando apenas nus os braços e o pezinho de menina.

Atirou-se à água como um passarinho; Isabel que a acompanhara por comprazer ficou sentada à beira do rio.

Como Cecília estava bela nadando sobre as águas límpidas da corrente, com seus cabelos louros soltos e os braços alvos que se curvavam graciosamente para imprimir ao corpo um doce movimento! Parecia uma dessas garças brancas, ou colhereiras[26] de rósea cor que deslizam mansamente à flor do lago, nas tardes serenas, espelhando-se no cristal das águas.

Às vezes a linda menina se deitava de bruços e sorrindo ao céu azul ia levada pela corrente; ou perseguia as jaçanãs e marrecas que fugiam diante dela. Outras vezes Peri que estava distante, do lado superior do rio, colhia alguma flor parasita que deitava sobre um barquinho feito de uma casca de pau e que vinha trazido pela correnteza.

A menina perseguia o barquinho a nado, apanhava a flor, e ia oferecê-la na pontinha dos dedos a Isabel, que, desfolhando-a tristemente, murmurava as palavras cabalísticas com que o coração procura iludir-se.

Em vez porém de consultar o presente, perguntava o futuro, porque sabia que o presente não tinha esperanças para ela, e se a flor dissesse o contrário mentia.

Havia meia hora que Cecília estava no banho, quando Peri, que colocado sobre uma árvore não deixava de lançar o olhar ao redor de si, viu na margem oposta as guaximas se agitarem.

A ondulação produzida nos arbustos foi-se estendendo como um caracol e aproximando-se do lugar onde a moça se banhava, até que parou detrás de umas grandes pedras que havia à beira do rio.

Do primeiro lanço de olhos o índio conheceu que o largo sulco traçado entre as hastes verdes do arvoredo não podia deixar de ser produzido por um animal de grande corpulência.

Seguiu rapidamente pelos ramos das árvores, atravessou o rio sobre essa ponte aérea, e conseguiu, escondido pelas folhas, colocar-se perpendicularmente ao lugar onde ainda se fazia sentir a oscilação dos arbustos.

Viu então sentados entre as guaximas dois selvagens, mal cobertos por uma tanga de penas amarelas, que, com o arco esticado e a flecha a partir, esperavam que Cecília passasse diante da fresta que formavam as pedras para despedirem o tiro.

E a menina descuidada e tranquila já tinha estendido o braço e ferindo a água passava sorrindo por diante da morte que a ameaçava.

Se se tratasse de sua vida, Peri teria sangue-frio; mas Cecília corria um perigo, e portanto não refletiu, não calculou.

Deixou-se cair como uma pedra do alto da árvore; as duas flechas que partiam, uma cravou-se-lhe no ombro, a outra roçando-lhe pelos cabelos mudou de direção.

Ergueu-se então, e sem mesmo dar-se ao trabalho de arrancar a seta, de um só movimento tomou à cinta as pistolas que tinha recebido de sua senhora, e despedaçou a cabeça dos selvagens.

Ouviram-se dois gritos de susto que partiam da margem oposta, e quase logo a voz trêmula e colérica de Cecília que chamava:

– Peri!...

Ele beijou as pistolas ainda fumegantes e ia responder, quando a dois passos surgiu de entre a touça o vulto de uma índia que sumiu-se ligeiramente no mato.

Enfiou um olhar pela fresta e, julgando Cecília já fora do banho e em lugar seguro, lançou-se atrás da índia que já lhe levava um grande avanço.

Uma larga fita vermelha que escapava da ferida tingia a sua alva túnica de algodão; Peri sentiu-se vacilar de repente e apertou com desespero o coração como para reter o sangue que espadanava.

Foi um momento de luta terrível entre o espírito e a matéria, entre a força da vontade e o poder da natureza.

O corpo desfalecia, os joelhos se dobravam, e Peri erguendo os braços como para agarrar-se à cúpula das árvores, estorcendo os músculos para manter-se em pé, lutava debalde com a fraqueza que se apoderava dele.

Debateu-se um momento contra a poderosa gravitação que o vergava para a terra; mas era homem, e tinha de ceder à lei da criação. Entretanto sucumbindo o valente índio resistia sempre; e vencido parecia querer lutar ainda.

Não caiu, não; quando a força lhe faltou de todo, foi-se lentamente retraindo e tocou a terra com os joelhos.

Mas então lembrou-se de Cecília, de sua senhora a quem tinha de vingar, e para quem devia viver a fim de salvá-la, e de velar sobre ela. Fez um esforço supremo: contraindo-se conseguiu reerguer-se; deu dois passos vacilantes, girou no ar e foi bater de encontro a uma árvore com a qual se abraçou convulsivamente.

Era uma cabuíba[27] de alta grandeza que se elevava pelo cimo da floresta, e de cujo tronco cinzento borbulhava um óleo cor de opala que desfiava em lágrimas.

O suave aroma que recendia dessas gotas fez o índio abrir os olhos amortecidos, que se iluminaram de uma brilhante irradiação de felicidade.