Diogo, que se havia retirado, voltou a saudar Álvaro e seus companheiros recém-chegados; o moço tinha ainda no rosto a expressão de tristeza que lhe haviam deixado as palavras severas de seu pai.

VII – A PRECE

A tarde ia morrendo.

O sol declinava no horizonte e deitava-se sobre as grandes florestas, que iluminava com os seus últimos raios.

A luz frouxa e suave do ocaso, deslizando pela verde alcatifa, enrolava-se como ondas de ouro e de púrpura sobre a folhagem das árvores.

Os espinheiros silvestres desatavam as flores alvas e delicadas; e o ouricuri abria as suas palmas mais novas, para receber no seu cálice o orvalho da noite. Os animais retardados procuravam a pousada; enquanto a juriti, chamando a companheira, soltava os arrulhos doces e saudosos com que se despede do dia.

Um concerto de notas graves saudava o pôr do sol e confundia-se com o rumor da cascata, que parecia quebrar a aspereza de sua queda e ceder à doce influência da tarde.

Era a Ave-Maria.

Como é solene e grave no meio das nossas matas a hora misteriosa do crepúsculo, em que a natureza se ajoelha aos pés do Criador para murmurar a prece da noite!

Essas grandes sombras das árvores que se estendem pela planície; essas gradações infinitas da luz pelas quebradas da montanha; esses raios perdidos, que, esvazando-se pelo rendado da folhagem, vão brincar um momento sobre a areia; tudo respira uma poesia imensa que enche a alma.

O urutau no fundo da mata solta as suas notas graves e sonoras, que, reboando pelas longas crastas de verdura, vão ecoar ao longe como o toque lento e pausado do ângelus.

A brisa, roçando as grimpas da floresta, traz um débil sussurro, que parece o último eco dos rumores do dia, ou o derradeiro suspiro da tarde que morre.

Todas as pessoas reunidas na esplanada sentiam mais ou menos a impressão poderosa desta hora solene, e cediam involuntariamente a esse sentimento vago, que não é bem tristeza, mas respeito misturado de um certo temor.

De repente, os sons melancólicos de um clarim prolongaram-se pelo ar quebrando o concerto da tarde; era um dos aventureiros que tocava a Ave-Maria.

Todos se descobriram.

D. Antônio de Mariz, adiantando-se até a beira da esplanada para o lado do ocaso, tirou o chapéu e ajoelhou.

Ao redor dele vieram grupar-se sua mulher, as duas moças, Álvaro e D. Diogo; os aventureiros, formando um grande arco de círculo, ajoelharam-se a alguns passos de distância.

O sol com seu último reflexo esclarecia a barba e os cabelos brancos do velho fidalgo e realçava a beleza daquele busto de antigo cavalheiro.

Era uma cena ao mesmo tempo simples e majestosa a que apresentava essa prece meio cristã, meio selvagem; em todos aqueles rostos, iluminados pelos raios do ocaso, respirava um santo respeito.

Loredano foi o único que conservou o seu sorriso desdenhoso, e seguia com o mesmo olhar torvo os menores movimentos de Álvaro, ajoelhado perto de Cecília e embebido em contemplá-la, como se ela fosse a divindade a quem dirigia a sua prece.

Durante o momento em que o rei da luz, suspenso no horizonte, lançava ainda um olhar sobre a terra, todos se concentravam em um fundo recolhimento e diziam uma oração muda, que apenas agitava imperceptivelmente os lábios.

Por fim o sol escondeu-se; Aires Gomes estendeu o mosquete sobre o precipício, e um tiro saudou o ocaso.

Era noite.

Todos se ergueram; os aventureiros cortejaram e foram-se retirando a pouco e pouco.

Cecília ofereceu a fronte ao beijo de seu pai e de sua mãe, e fez uma graciosa mesura a seu irmão e a Álvaro.

Isabel tocou com os lábios a mão de seu tio, e curvou-se em face de D. Lauriana para receber uma bênção lançada com a dignidade e altivez de um abade.

Depois, a família chegando-se para junto da porta, dispôs-se a passar um desses curtos serões que outrora precediam à simples mas suculenta ceia.

Álvaro, em atenção a ser o seu primeiro dia de chegada, fora emprazado pelo velho fidalgo para tomar parte nessa colação da família, o que havia recebido como um favor imenso.

O que explicava esse apreço e grande valor dado por ele a um tão simples convite era o regime caseiro que D. Lauriana havia estabelecido na sua habitação.

Os aventureiros e seus chefes viviam num lado da casa inteiramente separados da família; durante o dia corriam os matos e ocupavam-se com a caça ou com diversos trabalhos de cordoagem e marcenaria.

Era unicamente na hora da prece que se reuniam um momento na esplanada, onde, quando o tempo estava bom, as damas vinham também fazer a sua oração da tarde.

Quanto à família, esta conservava-se sempre retirada no interior da casa durante a semana; o domingo era consagrado ao repouso, à distração e à alegria; então dava-se às vezes um acontecimento extraordinário como um passeio, uma caçada, ou uma volta em canoa pelo rio.

Já se vê pois a razão por que Álvaro tinha tantos desejos, como dizia o italiano, de chegar ao Paquequer em um sábado, e antes das seis horas; o moço sonhava com a aventura desses curtos instantes de contemplação e com a liberdade do domingo, que lhe ofereceria talvez ocasião de arriscar uma palavra.

Formado o grupo da família, a conversa travou-se entre D. Antônio de Mariz, Álvaro e D. Lauriana; Diogo ficara um pouco retirado; as moças, tímidas, escutavam, e quase nunca se animavam a dizer uma palavra sem que se dirigissem diretamente a elas, o que raras vezes sucedia.

Álvaro, desejoso de ouvir a voz doce e argentina de Cecília, da qual ele tinha saudade pelo muito tempo que não a escutava, procurou um pretexto que a chamasse à conversa.

– Esquecia-me contar-vos, Sr. D. Antônio, disse ele aproveitando-se de uma pausa, um dos incidentes da nossa viagem.

– Qual? Vejamos, respondeu o fidalgo.

– A coisa de quatro léguas daqui encontramos Peri.

– Inda bem! disse Cecília; há dois dias que não sabemos notícias dele.

– Nada mais simples, replicou o fidalgo; ele corre todo este sertão.

– Sim! tornou Álvaro, mas o modo por que o encontramos é que não vos parecerá tão simples.

– O que fazia então?

– Brincava com uma onça como vós com o vosso veadinho, D. Cecília.

– Meu Deus! exclamou a moça soltando um grito.

– Que tens, menina? perguntou D. Lauriana.

– É que ele deve estar morto a esta hora, minha mãe.

– Não se perde grande coisa, respondeu a senhora.

– Mas eu serei a causa de sua morte!

– Como assim, minha filha? disse D. Antônio.

– Vede vós, meu pai, respondeu Cecília enxugando as lágrimas que lhe saltavam dos olhos; conversava quinta-feira com Isabel, que tem grande medo de onças, e brincando, disse-lhe que desejava ver uma viva!...

– E Peri a foi buscar para satisfazer o teu desejo, replicou o fidalgo rindo. Não há que admirar. Outras tem ele feito.

– Porém, meu pai, isto é coisa que se faça! A onça deve tê-lo morto.

– Não vos assusteis, D. Cecília; ele saberá defender-se.

– E vós, Sr. Álvaro, por que não o ajudastes a defender-se? disse a moça sentida.

– Oh! se vísseis a raiva com que ficou por querermos atirar sobre o animal!

E o moço contou parte da cena passada na floresta.

– Não há dúvida, disse D. Antônio de Mariz, na sua cega dedicação por Cecília quis fazer-lhe a vontade com risco de vida. É para mim uma das coisas mais admiráveis que tenho visto nesta terra, o caráter desse índio. Desde o primeiro dia que aqui entrou, salvando minha filha, a sua vida tem sido um só ato de abnegação e heroísmo. Crede-me, Álvaro, é um cavalheiro português no corpo de um selvagem!

A conversa continuou; mas Cecília tinha ficado triste, não tomou mais parte nela.

D. Lauriana retirou-se para dar as suas ordens; o velho fidalgo e o moço conversaram até oito horas, em que o toque de uma campa no terreiro da casa veio anunciar a ceia.

Enquanto os outros subiam os degraus da porta e entravam na habitação, Álvaro achou ocasião de trocar algumas palavras com Cecília.

– Não me perguntais pelo que me ordenastes, D. Cecília? disse ele à meia voz.

– Ah! sim! trouxestes todas as coisas que vos pedi?

– Todas e mais... disse o moço balbuciando.

– E mais o quê? perguntou Cecília.

– E mais uma coisa que não pedistes.

– Esta não quero! respondeu a moça com um ligeiro enfado.

– Nem por vos pertencer já? replicou ele timidamente.

– Não entendo. É uma coisa que já me pertence, dizeis?

– Sim; porque é uma lembrança vossa.

– Nesse caso guardai-a, Sr. Álvaro, disse ela sorrindo, e guardai-a bem.

E, fugindo, foi ter com seu pai, que chegava à varanda, e em presença dele recebeu de Álvaro um pequeno cofre, que o moço fez conduzir, e que continha as suas encomendas. Estas consistiam em joias, sedas, espiguilhas de linho, fitas, glacês, holandas, e um lindo par de pistolas primorosamente embutidas.

Vendo essas armas, a moça soltou um suspiro abafado e murmurou consigo:

– Meu pobre Peri! Talvez já não te sirvam nem para te defenderes.

A ceia foi longa e pausada, como costumava ser naqueles tempos em que a refeição era uma ocupação séria e a mesa um altar que se respeitava.

Durante a colação, Álvaro esteve descontente pela recusa que a moça fizera do modesto presente que ele havia acariciado com tanto amor e tanta esperança.

Logo que seu pai ergueu-se, Cecília recolheu ao seu quarto, e, ajoelhando diante do crucifixo, fez a sua oração. Depois, erguendo-se, foi levantar um canto da cortina da janela e olhar a cabana que se erguia na ponta do rochedo, e estava deserta e solitária.

Sentia apertar-se o coração com a ideia de que, por um gracejo, tivesse sido a causa da morte desse amigo dedicado que lhe salvara a vida e arriscava todos os dias a sua somente para fazê-la sorrir.

Tudo nesta recâmara lhe falava dele: suas aves, seus dois amiguinhos que dormiam, um no seu ninho e outro sobre o tapete, as penas que serviam de ornato ao aposento, as peles dos animais que seus pés roçavam, o perfume suave de benjoim que ela respirava; tudo tinha vindo do índio, que, como um poeta ou um artista, parecia criar em torno dela um pequeno templo dos primores da natureza brasileira.

Ficou assim a olhar pela janela muito tempo; nessa ocasião nem se lembrava de Álvaro, o jovem cavalheiro elegante, tão delicado, tão tímido, que corava diante dela, como ela diante dele.

De repente a moça estremeceu.

Tinha visto à luz das estrelas passar um vulto que ela reconheceu pela alvura de sua túnica de algodão, e pelas formas esbeltas e flexíveis; quando o vulto entrou na cabana, não lhe restou a menor dúvida.

Era Peri.

Sentiu-se aliviada de um grande peso; e pôde então entregar-se ao prazer de examinar um por um, com toda a atenção, os lindos objetos que recebera, e que lhe causavam um vivo prazer.

Nisto gastou seguramente meia hora; depois deitou-se, e, como já não tinha inquietação nem tristeza, adormeceu sorrindo à imagem de Álvaro e pensando na mágoa que lhe fizera, recusando o seu mimo.

VIII – TRÊS LINHAS

Tudo estava em sossego; apenas quando o vento escasseava, ouvia-se do lado do edifício habitado pelos aventureiros um rumor de vozes abafadas.

A esta hora, havia naquele lugar três homens bem diferentes pelo seu caráter, pela sua posição e pela sua origem, que entretanto tinham uma mesma ideia.

Separados pelos costumes e pela distância, os seus espíritos quebravam essa barreira moral e física, e se reuniam num só pensamento, convergindo para um mesmo ponto como os raios de um círculo.

Sigamos pois cada uma das linhas traçadas por essas existências, que mais cedo ou mais tarde hão de cruzar-se no seu vértice.

Numa das alpendradas que corriam no fundo da casa, trinta e seis aventureiros cercavam uma longa mesa, no meio da qual trescalavam em escudelas de pau algumas peças de caça, já estreadas de uma maneira que fazia honra ao apetite dos convivas.

O catalão não corria nos canjirões de louça e de metal com tanta fartura quanta era de desejar; mas, em compensação, viam-se, aos cantos do alpendre, grossas talhas cheias de vinho de caju e ananás, onde os aventureiros podiam beber à larga.

O vício tinha suprido os licores europeus pelas bebidas selvagens; afora uma pequena diferença de sabor, havia no fundo de todas elas o álcool que excita o espírito e produz a embriaguez.

A colação começara há meia hora; nos primeiros momentos não se ouviu senão o mastigar dos dentes, os beijos dados aos canjirões e o ranger da faca na escudela.

Depois, um dos aventureiros proferiu uma palavra, cuja réplica correu imediatamente à roda da mesa; a conversa tornou-se uma espécie de coro confuso e discordante.

Foi no meio desta algazarra que um dos convivas, erguendo a voz, lançou estas palavras:

– E vós, Loredano, nada dizeis? Estais aí que não há modo de vos ouvir uma palavra!

– Certo, acudiu outro, Bento Simões diz verdade; se não é a fome que vos traz mudo, algo tendes, misser italiano.

– Voto a Deus, Martim Vaz, disse um terceiro, que são penares por alguma moçoila que andou requestando em São Sebastião.

– Tirai-vos lá com os vossos penares, Rui Soeiro; achais que Loredano seja homem de se amofinar por coisa de tal jaez?

– E por que não, Vasco Afonso? Todos calçamos pelo mesmo sapato, em que o aperte mais a uns do que a outros.

– Não julgueis os mais por vós, dom namorado; homens há que trazem seu pensamento empregado em coisa de maior valia do que requebros e galanteios.

O italiano conservava-se taciturno e deixava que os outros o trouxessem à baila, sem dar-se por achado: era fácil de ver que ele seguia com afinco uma ideia que lhe trabalhava no espírito.

– Mas, por Deus, continuou Bento Simões, falai-nos do que vistes na vossa viagem, Loredano; apostaria que alguma vos sucedeu!

– Ide com o que vos digo, retrucou Rui Soeiro, misser italiano está penado de amores.

– E por quem, se vos parece? perguntaram alguns.

– Ora, não custa sabê-lo; por aquele canjirão de vinho que aí lhe está fronteiro; não vedes que olhos que lhe deita?

Os aventureiros largaram-se a rir, aplaudindo a lembrança.

Aires Gomes apareceu à porta do saguão.

– Eia, rapazes! disse ele com uma voz que se esforçava por tornar severa. Leva rumor!

– É um dia de chegada, Sr. escudeiro; e deveis levá-lo em conta, acudiu Rui Soeiro.

Aires sentou-se e começou a fazer as honras a um resto de veado que estava em frente dele.

– Olá! vós outros, gritou ele, com a boca cheia, para dois aventureiros que se haviam levantado; ide encher vosso quarto, que já refizestes, e os mais esperam sua vez.

Os dois aventureiros saíram para ir revezar os outros, que era costume ficarem de sentinela à noite; medida esta necessária naquele tempo.

– Estais hoje muito severo, Sr.