Tinha sofrido um acidente, dizia ela, que descoloriu temporariamente seu rosto e suas mãos, e sendo um homem de personalidade sensível, evitava tornar público esse fato.
Na ausência dela, contudo, circulava a versão de que ele seria um criminoso tentando escapar à justiça, e todo aquele disfarce era para evitar ser reconhecido pela polícia. Tal ideia tinha brotado da cabeça do sr. Teddy Henfrey, embora não se soubesse de nenhum crime de grande repercussão a partir de meados ou final de fevereiro.3 Já na imaginação do sr. Gould, professor assistente temporário da National School, esta teoria ganhou nova forma: o estranho seria um anarquista disfarçado, preparando explosivos, e o sr. Gould se dispunha a proceder a qualquer investigação para desmascará-lo, desde que tivesse tempo para tanto. Tais investigações, contudo, limitaram-se a encarar desafiadoramente o estranho sempre que se cruzavam, ou fazer perguntas a seu respeito a pessoas que jamais o tinham visto. Nada de positivo foi comprovado.
Outra corrente de opinião era liderada pelo sr. Fearenside, endossando a sua versão do “homem malhado” ou alguma variante dela; era o caso de Silas Durgan, que foi ouvido declarar que “se ele resolver se mostrar nas feiras vai ficar rico num piscar de olhos”, e que, tendo suas tinturas de teólogo, comparou o estranho ao “homem de um só talento”.4 Havia ainda outra teoria segundo a qual o homem não passava de um lunático inofensivo; e esta tinha a vantagem de explicar todos os fatos sem deixar nenhum de fora.
Entre estes grupos principais havia os que não conseguiam se decidir e os que optavam pelo meio-termo. Os habitantes do Sussex têm poucas superstições, e foi apenas depois dos acontecimentos do começo de abril que a possibilidade de uma intromissão sobrenatural começou a ser sussurrada pelas ruas do vilarejo, e mesmo assim apenas entre o elemento feminino.
Mas as pessoas de Iping, independentemente do que pensassem sobre ele, eram unânimes num aspecto: todas o antipatizavam. Seu jeito irritadiço, que talvez fosse aceito com mais naturalidade entre trabalhadores urbanos, era algo chocante para aqueles pacatos moradores do Sussex. Seu jeito frenético de gesticular, que a toda hora lhes causava espanto; as caminhadas obsessivas após o anoitecer, que o faziam surgir de surpresa rodeando esquinas tranquilas; seu modo brutal de repelir qualquer tentativa de aproximação; seu gosto pela penumbra, que o fazia viver de portas trancadas, cortinas descidas, lâmpadas e velas extintas... quem poderia considerar tudo isso um comportamento normal? Afastavam-se quando ele surgia numa rua, e depois que sumia os jovens brincalhões erguiam a gola do casaco, abaixavam a aba do chapéu e passavam a caminhar de maneira frenética, imitando-o. Havia uma canção bem popular naquela época, chamada “The bogey man” [O bicho-papão]. A senhorita Statchell a interpretou numa festa beneficente da escola (para a compra de lâmpadas para a igreja); desse dia em diante, sempre que ele passava por um grupo, um ou dois compassos da canção eram assobiados, desafinadamente ou não; e crianças que andavam na rua à noite gritavam à sua passagem: “Bogey Man!” — e corriam, trêmulas de medo feliz.
Cuss, um prático local de medicina doméstica, era um dos mais devorados pela curiosidade. Aquelas bandagens inquietavam seu interesse profissional, e os relatos sobre as mil e uma garrafas causavam-lhe ciúme. Ao longo dos meses de abril e maio ele esperou uma chance para entabular conversa com o estranho, até que, por volta do feriado de Pentecostes, não pôde mais aguentar e usou como pretexto para procurá-lo uma lista de subscrições para a contratação de uma enfermeira para a vila. Ficou surpreso ao saber que o sr. Hall sequer sabia o nome do hóspede. “Claro que perguntei seu nome”, disse a sra. Hall, uma afirmativa totalmente inverídica, “mas não escutei direito o que ele falou”. Parecia-lhe tão idiota não saber até aquela altura o nome dele!
Cuss bateu na porta da sala e entrou. Ouviu-se uma voz praguejando lá dentro. A sra. Hall ouviu a voz de Cuss dizendo “Desculpe incomodá-lo”, mas então a porta se fechou e ela não distinguiu o resto do diálogo.
Ela ouviu um murmúrio de vozes durante os dez minutos seguintes, depois um grito de espanto, um barulho de pés no assoalho seguido da queda de uma cadeira, uma risada sarcástica, passos rápidos na direção da porta, e então Cuss reapareceu, o rosto pálido, olhando por cima do ombro. Deixando a porta aberta atrás de si, e sem dar pela presença dela, ele atravessou o saguão segurando o chapéu e desceu os degraus da frente; tudo que ela ouviu foram seus passos se afastando pela rua. A sra. Hall ficou parada junto à porta da frente, olhando a porta da sala ainda aberta. Ouviu então uma risada satisfeita do estranho, seus passos (mas não pôde avistá-lo) e então a porta sendo batida, deixando o local em completo silêncio.
Cuss foi dali direto à procura de Bunting, o vigário, na outra extremidade do vilarejo.
— Acha que eu sou doido? — perguntou abruptamente, logo que entrou no seu apertado gabinete de estudo. — Pareço estar insano?
— O que aconteceu? — perguntou o vigário, colocando um fóssil de amonita sobre as páginas soltas onde rascunhava seu próximo sermão.
— O sujeito lá da hospedaria...
— Sim, e então?
— Me dê algo para beber — disse Cuss, jogando-se sobre uma poltrona.
Quando seus nervos foram sossegados por um copo de xerez barato — a única bebida disponível no vicariato —, ele começou a relatar o encontro que tivera.
— Entrei na sala e comecei a explicar que era uma lista de subscrições para contratar a enfermeira. No momento em que entrei ele estava sentado na poltrona, todo encolhido, e enfiou as mãos nos bolsos.
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