S. Gilbert (1836-1911), o libretista de Arthur Sullivan numa série de óperas cômicas que fizeram grande sucesso no teatro da era vitoriana. O protagonista do poema, Old Peter, recebe da fada Picklekin o dom da invisibilidade, mas o mesmo não acontece com suas roupas:
“(…) A well-bred fairy (so I’ve heard)
Is always faithful to her word:
Old PETER vanished like a shot,
But then — HIS SUIT OF CLOTHES DID NOT! (…)
So there remained a coat of blue,
A vest and double eyeglass too,
His tail, his shoes, his socks as well,
His pair of — no, I must not tell. (…)”[1]
Provavelmente as sugestões visuais do poema deram a Wells o primeiro impulso para a criação das situações do seu Homem Invisível — já contaminadas de certa comicidade, e iniciando-se, in media res, com o personagem, já invisível, às voltas com camuflagens e disfarces.
A originalidade maior de Wells não reside no uso do tema, mas na explicação razoavelmente convincente que ele inventou. Wells fez isto com brilhantismo: seu homem invisível não recorre a um chapéu mágico ou uma capa encantada (como ocorre nos contos de fada e nos romances de cordel), mas obtém sua invisibilidade por meio de um estudo da refração e reflexão óptica, do uso de “centros irradiadores de uma espécie de vibração etérea” com o uso de dínamos e de um motor a gás. O leitor sabe que é impossível; mas quando um leitor quer ser seduzido, basta-lhe uma mentira atraente; ele quer acreditar, mas não acreditará em qualquer coisa. A “voluntária suspensão da descrença” que Coleridge diagnosticou, de modo definitivo, como indispensável à leitura de um texto fantástico, só ocorre quando o leitor sente no autor firmeza imaginativa bastante para levá-lo não apenas além da realidade, mas além das fantasias anteriores. Wells descreve todo o aspecto teórico do processo no Capítulo XIX e mostra as experiências preparatórias de Griffin no Capítulo XX, de modo que, quando este torna a si próprio invisível, o leitor (principalmente o de 1897) já está pronto para aceitar tudo.
Além de tratar de modo diferente o processo que causa a invisibilidade, Wells também o fez com suas consequências. O romance de Dalton era basicamente uma fantasia moralizante, em que, segundo observou o crítico John Clute, todas as medidas eram tomadas para mostrar que o protagonista não ganharia nada com a sua condição. Wells, mesmo incluindo uma mensagem moral em sua narrativa (o Homem Invisível é punido por sua arrogância e sua misantropia), dedica-se mais a explorar até o fim as consequências práticas da invisibilidade, colocando seu personagem em circunstâncias que tanto lhe trazem benefícios quanto desvantagens. A descrição do passeio de um homem nu e invisível pelas ruas geladas de Londres, nos Capítulos XXI, XXII e XXIII, transforma em pesadelo o sonho de qualquer leitor que deseja usar a premissa da história para um wish fulfillment, para uma realização de fantasias sem compromissos. Julio Verne queixava-se de que Wells inventava situações cientificamente impossíveis; mas as aventuras dos personagens de Wells têm uma textura realista, e de conhecimento in loco de tipos sociais, mais espessa e mais verossímil que as de Verne.
Até o encontro do Homem Invisível com o dr. Kemp, nós o vemos através dos olhos de pessoas comuns, interioranas, aqueles ingleses das classes mais baixas que Wells conhecia tão bem. Ele os vê alternadamente com carinho e com sarcasmo; não os despreza e não os idealiza; trata-os de igual para igual. Este lado realista do livro mostra como Wells foi capaz de manter ao longo da vida inteira uma carreira de sucesso escrevendo tanto romances fantásticos quanto romances mainstream — romances de costumes, de análise psicológica e de observação social. Seu conhecimento das pessoas comuns e sua empatia com elas lembram a obra de Philip K. Dick, outro autor que tentou manter duas carreiras literárias em paralelo.
Wells tem seus defeitos. Os diálogos muitas vezes não dizem grande coisa e parecem estar ali apenas para obedecer à convenção dramática de que quando dois personagens estão juntos precisam falar sobre algo. Aqui e acolá o texto apresenta pequenos erros de continuidade, ou pequenas pontas deixadas soltas sem um esclarecimento final. O autor tinha consciência disso. Em sua autobiografia, ele reconhece: “Os críticos não precisam vir me informar de que uma boa parte da minha obra é escrita com desleixo, mal-acabada, impaciente. Grande parte dela foi redigida às pressas e revisada sem muita atenção, e há partes que têm uma textura tão pálida e pastosa quanto o rosto de uma freira alimentada com goma.” Suas qualidades como escritor não são as do estilista, e sim as do autor que mal tem tempo de colocar no papel o jorro de imagens que lhe brota na mente.
Em todo caso, Wells impressiona pela notável visualidade de seu modo de escrever. Seu livro é contemporâneo dos primeiros anos do cinema, mas a rápida sucessão das peripécias e a intensa ação física parecem uma prefiguração dos filmes de perseguição que fariam sucesso nas telas a partir da virada do século. Existe algo das comédias de Buster Keaton ou Harold Lloyd nas trapalhadas dos habitantes de Iping tentando prender o Homem Invisível, na cena em que Griffin é perseguido dentro da loja de departamentos, e depois na cena da taverna em que o sr. Marvel tenta se proteger de sua fúria. E um clima de tensão e suspense, lembrando a fase britânica de Alfred Hitchcock, está presente nos capítulos dos roubos ao vicariato e à loja de adereços teatrais. A cena final do corpo de Griffin reaparecendo aos poucos inspirou as metamorfoses ou desaparecimentos graduais com que o cinema nos maravilhou em filmes sobre vampiros, lobisomens e monstros como o de dr. Jekyll e mr. Hyde. Wells descreve com elegância as imagens, surpreendentes para sua época, de alguém que retira as ataduras e barbas que lhe cobrem o rosto para revelar o Nada por trás delas, ou de como uma roupa sendo vestida ou despida por alguém invisível parece executar movimentos inexplicáveis, sozinha, no ar.
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