Mas as mulheres, ah, as mulheres confiam em qualquer estranho. Ele está instalado na sua casa e nem sequer disse como se chama, Hall.
— Não diga! — exclamou Hall, que era um indivíduo de compreensão um pouco lenta.
— Claro! Por uma semana. Seja ele quem for, você não vai se ver livre dele antes de uma semana. E ele tem uma porção de bagagens para chegar amanhã, pelo que disse. Vamos torcer para que não sejam malas cheias de pedras.
Passou a contar a Hall como sua tia em Hastings tinha sido enganada por um hóspede que chegou com malas vazias, e acabou plantando a suspeita na mente do outro.
— Vamos, vamos! — gritou Hall, estalando as rédeas. — Preciso saber o que está se passando.
Teddy seguiu seu caminho, agora com a consciência razoavelmente tranquila.
Em vez de “saber o que estava se passando”, no entanto, Hall, logo ao entrar em casa, acabou recebendo uma descompostura da esposa pelo tempo que tinha passado em Sidderbridge; suas tímidas perguntas foram respondidas de maneira brusca e pouco elucidativa. Mas as suspeitas despertadas por Teddy continuaram a prosperar na mente do sr. Hall. “Vocês, mulheres, pensam que sabem tudo”, murmurou ele, decidido a descobrir o quanto pudesse a respeito do hóspede assim que se apresentasse uma oportunidade. E depois que o estranho se deitou para dormir, por volta das nove e meia, o sr. Hall encaminhou-se com ar decidido para a sala e examinou com rigor a mobília de sua esposa, só para mostrar quem mandava ali; por fim apanhou e estudou com cuidado uma folha de cálculos matemáticos que o estranho tinha deixado à toa. Quando foi se deitar, deu instruções à sra. Hall para que examinasse com o máximo cuidado a bagagem do forasteiro, quando esta fosse entregue no dia seguinte.
— Cuide dos seus negócios, Hall — retrucou a esposa —, e eu cuido dos meus.
Estava ainda mais inclinada a tratar o marido com rispidez porque o estranho tinha um modo bem peculiar de ser estranho, e ela ainda não tinha conseguido formar uma opinião muito clara a seu respeito. No meio da noite, acordou assaltada por um pesadelo em que apareciam cabeças brancas como gigantescos nabos, perseguindo-a, oscilando na extremidade de pescoços longuíssimos, e com grandes olhos negros. Mas ela era uma mulher sensata; deixou que o medo se dissipasse, virou-se para o outro lado e tornou a adormecer.
Capítulo III
As mil e uma garrafas
E assim foi que, no dia 9 de fevereiro, quando a neve acumulada começava a se derreter, aquele indivíduo singular pareceu cair dos céus para instalar-se em Iping. Na manhã seguinte sua bagagem foi trazida através das estradas lamacentas, e era uma bagagem notável. Havia um par de baús, tais como um homem prático levaria consigo, mas além deles vinha também um caixote de livros — livros grandes, grossos, alguns deles totalmente cobertos por uma caligrafia incompreensível, e cerca de uma dúzia ou mais de caixas e engradados cheios de objetos acondicionados em palha, que pareceram a Hall, quando ele mexeu na palha cheio de curiosidade, garrafas de vidro. O estranho, ainda encapotado, de chapéu, luvas e cachecol, saiu impaciente ao encontro da carroça de Fearenside, enquanto Hall trocava uma ou duas frases casuais, preparando-se para ajudar a descarregar os volumes. O homem aproximou-se sem notar a presença do cachorro de Fearenside, que estava farejando sem muita atenção as pernas de Hall.
— Vamos trazer logo isto para dentro — disse o estranho. — Já esperei muito tempo.
E ele desceu os degraus, indo na direção da traseira da carroça, onde agarrou um dos engradados menores.
No momento em que o cão de Fearenside percebeu sua aproximação, no entanto, seu pelo eriçou-se todo e ele começou a rosnar ameaçadoramente. E quando o estranho desceu os degraus, o cão saltou-lhe em cima, dando um bote na sua mão.
— Êpa! — gritou Hall, pulando para trás, pois não era nenhum herói quando se tratava de cães; e Fearenside berrou: “Deita!”, e estalou o chicote.
Ambos viram que, se a mão do estranho conseguiu escapar ao bote, uma segunda investida do cachorro rasgou-lhe a perna da calça. Nesse instante a ponta do chicote de Fearenside atingiu o animal, que, ganindo de dor, recuou e se escondeu entre as rodas da carroça. Tudo isso não durou mais que um meio minuto em que ninguém teve tempo de dizer nada, a não ser gritar. O estranho examinou a luva, que tinha um leve arranhão, olhou a calça e fez menção de abaixar-se para consertar-lhe o rasgão, mas mudou de ideia e voltou a subir às pressas os degraus da entrada, sumindo no interior da hospedaria. Os outros ouviram seus passos apressados afastando-se pelo corredor e subindo as escadas atapetadas, rumo ao quarto de dormir.
— Você é mesmo um bruto! — exclamou Fearenside, descendo da carroça, chicote em punho, para o cachorro que o espiava através dos raios de uma roda. — Venha cá! Agora!
Hall estava atarantado.
— Ele foi mordido — disse. — Melhor eu ir lá dentro e ver o que há.
Entrando na hospedaria, ele cruzou com a sra. Hall no saguão.
— O cachorro da carroça — disse. — Mordeu-o!
Subiu logo a escada e, como a porta do hóspede estava entreaberta, empurrou-a e foi entrando sem cerimônia, cheio de boa vontade.
As cortinas estavam descidas, deixando escuro o aposento. Ele teve um vislumbre de uma coisa muito singular, algo como um braço sem mão gesticulando em sua direção e um rosto que consistia em três grandes manchas brancas e irregulares, como as pétalas de um amor-perfeito.
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