Esses fragmentos, tal como Armitage os recorda, soavam mais ou menos como “N’gai, n’gha’ghaa, bugg-shoggog, y’hah; Yog-Sothoth, Yog-Sothoth…”. Depois perderam-se no vazio enquanto os bacuraus gritavam em crescendos rítmicos de antecipação blasfema.
Então fez-se uma pausa nos arquejos e o cachorro ergueu a cabeça em um longo e lúgubre uivo. Uma mudança se operou no semblante amarelo e com feições de boda daquela coisa prostrada, e os grandes olhos negros afundaram de maneira horrível. Do outro lado da janela os gritos estridentes dos bacuraus haviam cessado, e acima dos murmúrios da multidão que começava a se juntar ouviram-se os rumores e as batidas de asas em pânico. Com a lua ao fundo, enormes nuvens de observadores emplumados alçaram um voo frenético no encalço da presa.
De repente o cachorro teve um sobressalto, deu um latido súbito e saltou nervoso pela janela por onde tinha entrado. Um grito veio da multidão, e o dr. Armitage disse aos homens do lado de fora que ninguém seria admitido até que a polícia ou o legista chegasse. Armitage sentiu-se aliviado ao perceber que as janelas eram altas demais para que fosse possível espiar e, com todo cuidado, fechou as cortinas escuras de cada uma. A essa altura dois policiais haviam chegado; e o sr. Morgan, depois de recebê-los no vestíbulo, insistiu para que postergassem a entrada na fétida sala de leitura até que o legista viesse e aquela coisa prostrada fosse coberta.
Nesse meio-tempo, mudanças apavorantes estavam ocorrendo no assoalho. Não seria necessário descrever o tipo e a rapidez do encolhimento e da decomposição que se operaram diante dos olhos do dr. Armitage e do professor Rice; mas pode-se dizer que, a não ser pela aparência externa do rosto e das mãos, o elemento genuinamente humano em Wilbur Whateley devia ser muito pequeno. Quando o legista chegou, restava apenas uma massa esbranquiçada nas tábuas pintadas, e o fedor monstruoso havia quase desaparecido. Ao que tudo indicava, Whateley não tinha crânio nem esqueleto; pelo menos não no sentido verdadeiro ou estável dessas palavras. De alguma forma, assemelhava-se ao pai desconhecido.
* * *
Mesmo assim, esse foi apenas o prólogo do verdadeiro horror de Dunwich. As formalidades foram cumpridas por oficiais perplexos, detalhes anormais foram devidamente mantidos longe da imprensa e do público e homens foram mandados a Dunwich e a Aylesbury em busca de propriedades e dos eventuais herdeiros do falecido Wilbur Whateley. A gente do campo estava muito agitada, não apenas por causa dos rumores cada vez mais intensos sob as colinas abobadadas, mas também por causa do fedor excepcional e do escorrer ou do chapinhar cada vez mais intenso na grande concha vazia formada pela casa pregada com tábuas de Whateley. Earl Sawyer, que ficou encarregado do cavalo e do gado durante a ausência de Wilbur, estava com os nervos em pandarecos. Os oficiais inventaram desculpas para não entrar naquele lugar abjeto e alegraram-se ao ver que poderiam terminar as buscas nos aposentos do finado — os galpões reformados — em uma única visita. Enviaram um extenso relatório ao tribunal de Aylesbury, e correm boatos de que o litígio relativo à herança ainda está em curso entre os incontáveis Whateley, íntegros e decadentes, que habitam o vale superior do Miskatonic.
Um manuscrito quase interminável em estranhos caracteres em um grande caderno de contabilidade e considerado uma espécie de diário em virtude dos espaçamentos e das variações na tinta e na caligrafia revelou-se um quebra-cabeça para aqueles que o encontraram na velha cômoda que fazia as vezes de escrivaninha. Após uma semana de debates ele foi mandado para a Universidade do Miskatonic, junto com a estranha biblioteca do finado, para estudo e possível tradução; porém logo os melhores linguistas perceberam que não seria fácil decifrá-lo. Nenhum vestígio do ouro antigo com que Wilbur e o Velho Whateley costumavam pagar as contas foi encontrado.
Foi na escuridão de nove de setembro que o horror se abateu sobre o vilarejo. Os barulhos nas colinas foram muito pronunciados durante o entardecer, e os cachorros latiram desesperados por toda a noite. Os madrugadores do dia dez notaram um fedor estranho no ar. Por volta das sete horas Luther Brown, o garoto que trabalhava para George Corey, entre Cold Spring Glen e o vilarejo, voltou correndo em um frenesi da ida matinal a Ten-Acre Meadow com as vacas. Estava quase desesperado de medo quando adentrou a cozinha; e no pátio lá fora o rebanho apavorado escarvava e mugia depois de fazer o caminho de volta no mesmo estado de pânico em que o garoto se encontrava. Entre um e outro arquejo, Luther tentou balbuciar um relato para a sra. Corey.
“A estrada no fim do vale! Siora Corey — alguma cousa andô por lá! O lugar ’stá co’um chero de trovão, e tudo quanto é arbusto e arvorezinha foro arrancado como se uma casa tivesse passado por cima. E isso nem é o pior. Tem u’as pegada no chão. Siora Corey — são u’as pegada enorme, do tamanho dum barril, como se um elefante tivesse andado por lá, mas parece que a cousa tinha bem mais do que quatro pata! Olhei pr’uma ou duas antes de saí correno, e vi que elas ’stavo tudo coberta por umas linha que saío do meso lugar, como se o chão tivesse sido batido co’u’as enorme folha de palmera, duas ou três vez maior do que as maior que existe — e o cheiro era horrívio, que nem perto da velha casa do Bruxo Whateley…”
Nesse ponto o garoto hesitou e mais uma vez estremeceu com o pavor que o tinha mandado correndo de volta para casa. A sra. Corey, ao ver que não conseguiria obter informações mais detalhadas, começou a telefonar para os vizinhos, e assim teve início a abertura de pânico que prenunciou os maiores terrores. Quando entrou em contato com Sally Sawyer, criada de Seth Bishop, o vizinho mais próximo da propriedade de Whateley, a sra. Corey parou de falar para começar a ouvir; pois Chauncey, o filho se Sally, que dormia mal, tinha estado no alto da colina próxima à propriedade de Whateley e voltado correndo aterrorizado depois de olhar para a casa e o pasto onde as vacas do sr. Bishop estavam passando a noite.
“É verdade, siora Corey”, disse a voz trêmula de Sally através do fio. “O Cha’ncey, ele voltô correno e não consiguia falá de tão apavorado! Disse que a casa de Velho Whateley ’stá toda arrebentada, co’as tábua jogada ao redor como se alguém tivesse estorado dinamite lá dentro; só restô o assoalho, que ’stá todo coberto por uma espécie de piche co’um chero horrívio que fica pingano das borda pro chão onde as tábua das parede foro explodida. E parece que tem umas marca terrívio no pátio, tamém — umas enorme dumas marca redonda, maior do que um barril, cheia da mesma cousa pegajosa que ’stá dentro da casa explodida.
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