Os esforços foram todos em vão, pois Armitage tinha enviado alertas urgentes para todos os bibliotecários encarregados do temível volume. Wilbur havia demonstrado um nervosismo espantoso em Cambridge — ansioso pelo livro, mas quase tão ansioso por estar de volta em casa, como se temesse os resultados de um afastamento prolongado.

No início de agosto veio o desfecho não muito surpreendente, e às três horas da madrugada do dia três o dr. Armitage foi acordado de repente pelos gritos desvairados e ferozes do selvagem cão de guarda do campus universitário. Profundos e terríveis, os rosnados e latidos ensandecidos não deram trégua e continuaram cada vez mais altos, porém com horrendas pausas repletas de significado. Logo soou o grito de uma outra garganta — um grito que acordou metade das pessoas adormecidas em Arkham e assombrou os sonhos da população para sempre — um grito que não poderia ter vindo de nenhum ser terrestre ou completamente terrestre.

Depois de vestir-se às pressas e atravessar correndo a rua e o gramado próximo aos prédios universitários, Armitage percebeu que havia outras pessoas mais à frente; e ouviu os ecos do alarme contra roubo que ainda soava na biblioteca. Uma janela aberta surgia negra e vazia ao luar. O que quer que houvesse entrado tinha conseguido sair; pois os latidos e os gritos, que enfim deram lugar a um misto de rosnados e gemidos, vinham sem dúvida do interior da biblioteca. O instinto avisou Armitage de que aquele não era um acontecimento para ser visto por olhos despreparados, e por esse motivo o bibliotecário empurrou a multidão para longe com autoridade enquanto destrancava a porta do vestíbulo. Entre os presentes encontravam-se o professor Warren Rice e o dr. Francis Morgan, homens a quem havia confiado algumas conjecturas e temores; e os dois foram convidados com um gesto a acompanhá-lo rumo ao interior da biblioteca. A não ser pelo choro vigilante e monótono do cachorro, nesse ponto os sons que vinham lá de dentro haviam cessado; mas Armitage logo percebeu, com um sobressalto repentino, que um alto coro de bacuraus havia começado uma cantoria rítmica e demoníaca nos arbustos, como se estivessem em uníssono com os últimos suspiros de um moribundo.

O prédio estava tomado por um pavoroso fedor que o dr. Armitage conhecia muito bem, e os três homens atravessaram o corredor às pressas em direção à sala de leitura de genealogia, de onde vinha o choro. Por um instante ninguém se atreveu a acender a luz, mas logo o dr. Armitage reuniu toda a coragem e acionou o interruptor. Um dos homens — não se sabe ao certo quem — deixou escapar um grito ao ver o que se espalhava diante dos três em meio às mesas viradas e às cadeiras derrubadas. O professor Rice afirma ter perdido a consciência por um instante, embora não tenha caído nem tropeçado.

A coisa que estava recurvada de lado em meio a uma poça de sânie amarelo-esverdeada e muco pegajoso tinha quase três metros de altura, e o cachorro havia lhe arrancado quase todas as roupas e parte da pele. A criatura ainda não estava morta, mas sofria espasmos silenciosos enquanto o peito arquejava em um monstruoso uníssono com a cantoria dos bacuraus no lado de fora. Restos de sapatos e fragmentos de vestuário estavam espalhados pelo recinto, e próximo à janela um saco de lona permanecia onde sem dúvida havia sido jogado. Perto da escrivaninha central havia um revólver caído no chão com uma cápsula percutida mas não deflagrada, que mais tarde explicou a ausência de um tiro. A coisa, no entanto, suprimia todas as outras imagens no instante da descoberta. Seria trivial e inexato dizer que nenhuma pena humana seria capaz de descrevê-la, mas pode-se dizer com propriedade que não poderia ser visualizada a contento por nenhuma pessoa cujas ideias sobre aspectos e contornos estejam demasiadamente atreladas às formas de vida encontráveis neste planeta e às três dimensões conhecidas. Sem dúvida a criatura era em parte humana, com as mãos e a cabeça muito reconhecíveis, e tinha o semblante de queixo pequeno e feições de bode que era a marca dos Whateley. No entanto, o tronco e as partes inferiores eram uma incrível aberração teratológica, e apenas grossas vestes permitiriam que caminhasse sobre a Terra sem se expor a confrontos ou à aniquilação.

Da cintura para cima a criatura era semiantropomórfica; embora o peito, onde as garras afiadas do cachorro permaneciam de guarda, tivesse o aspecto coriáceo e reticulado de um jacaré ou de um crocodilo. O dorso era sarapintado de amarelo e preto, e sugeria vagamente a pele escamosa de certas cobras. O que vinha abaixo da cintura, no entanto, era o pior; pois desse ponto em diante toda semelhança humana desaparecia e uma fantasia desvairada começava. A pele era coberta por uma grossa pelagem negra, e do abdômen pendiam uma vintena de compridos tentáculos cinza-esverdeado com bocas vermelhas na ponta. A disposição desses órgãos era muito peculiar e parecia sugerir as simetrias de uma geometria cósmica desconhecida à Terra ou mesmo ao sistema solar. Em ambos os lados do quadril, no fundo de uma espécie de órbita rosada e ciliada, estava o que se imaginou ser um olho rudimentar; e no lugar de uma cauda havia uma espécie de tromba ou tentáculo com marcações aneliformes roxas e vários indícios de que fosse uma boca ou uma garganta vestigial. As pernas, à exceção da pelagem negra, lembravam de maneira grosseira os membros posteriores dos sáurios gigantes que viveram na pré-história da Terra, e terminavam em patas de veias salientes que não eram nem cascos nem garras. Quando a coisa respirava, a cauda e os tentáculos mudavam de cor, como se este fosse um fenômeno normal no sistema circulatório do ancestral inumano. Nos tentáculos observava-se um escurecimento do matiz verde, enquanto na cauda a alteração manifestava-se como um surgimento amarelo que se alternava com um tom branco-esverdeado doentio nos espaços entre os anéis roxos. Quanto a sangue genuíno, não havia nenhum; apenas a sânie fétida amarelo-esverdeada que pintava o chão para além do raio do muco pegajoso e deixava estranhas manchas atrás de si.

A presença dos três homens pareceu dar novo ânimo à criatura moribunda, que começou a emitir balbucios sem se virar nem erguer a cabeça. O dr. Armitage não fez nenhum registro escrito desses sussurros, mas afirma com convicção que nenhuma palavra em inglês foi proferida. A princípio as sílabas desafiavam o estabelecimento de qualquer relação com outras línguas terrestres, porém mais para o fim surgiram fragmentos desconexos sem dúvida alguma retirados do Necronomicon, a monstruosidade blasfema em cuja procura aquela coisa havia perecido.