Árvores, gramados e arbustos agitaram-se em fúria; e a multidão apavorada na base da montanha, enfraquecida pelo fedor mortal que parecia estar na iminência de asfixiar o grupo, por pouco não foi derrubada. Os cães uivavam ao longe, gramados e folhagens verdejantes murcharam e ganharam uma enfermiça coloração amarelo-cinzenta e por campos e florestas espalharam-se os corpos de bacuraus mortos.

O fedor se dissipou em seguida, mas a vegetação nunca mais voltou ao normal. Até hoje existe algo de estranho e blasfemo nas plantas que crescem em cima e em volta da temível colina. Curtis Whateley mal havia recobrado a consciência quando os homens de Arkham desceram a montanha com passos vagarosos sob os raios de um sol mais uma vez puro e reluzente. Estavam graves e silenciosos, e pareciam abalados por memórias e reflexões ainda mais terríveis do que aquelas que haviam reduzido o grupo de nativos a um estado de medo e tremor. Em resposta a um amontoado de perguntas, simplesmente balançaram a cabeça e reafirmaram um fato de vital importância.

“Aquela coisa se foi para sempre”, disse Armitage. “Foi separada nos elementos que a compunham e nunca mais pode voltar a existir. Era uma existência impossível em um mundo normal. Apenas uma fração ínfima era constituída de matéria da maneira como a conhecemos. Parecia-se muito com o pai — e em boa parte retornou a ele em alguma esfera ou dimensão vaga para além do universo material; algum abismo vago de onde apenas os mais profanos ritos de blasfêmia humana poderiam tê-lo chamado por um instante fugaz até as colinas.”

Fez-se um breve silêncio, e nesse intervalo os sentidos atordoados do pobre Curtis Whateley começaram a se reorganizar em um sistema coeso; e o homem levou a mão à cabeça com um gemido. A memória deu a impressão de recompor-se a partir do último momento de consciência, e o horror da visão que o havia prostrado tornou a invadi-lo.

“Ah, meu Deus, aquele rosto — aquele rosto pela metade… aquele rosto co’os olho vermelho e os cabelo albino ondulado, e sem quexo, que nem os Whateley… Era u’a espécie de polvo, de centopeia, de aranha, mas em cima tinha um rosto pela metade que parecia o do Bruxo Whateley, só que com vários metro de largura…”

O homem deteve-se exausto enquanto o grupo de nativos o encarava em um estado de confusão ainda não cristalizado em um novo terror. Apenas o velho Zebulon Whateley, que tinha recordações erráticas de coisas antigas mas que até então permanecia calado, ergueu a voz.

“Há quinze anos atrás”, resmungou, “eu escutei o velho Whateley dizê que um dia nós ainda ia ovi o filho da Lavinny gritá o nome do pai no alto da Sentinel Hill…”

Porém Joe Osborn o interrompeu para fazer mais uma pergunta aos homens de Arkham.

“O que era aquela cousa afinal de contas, e comé que o jovem Bruxo Whateley consiguiu invocá ela do nada?”

Armitage escolheu as palavras com cuidado.

“Aquilo era — digamos que em boa parte era uma força que não pertence à nossa dimensão no espaço; uma força que age e cresce e se molda segundo leis diferentes daquelas que regem a nossa Natureza. Não temos por que invocar essas coisas de longe, e apenas pessoas vis e cultos maléficos se envolvem com isso. O próprio Wilbur Whateley tinha um pouco dessa força — o suficiente para transformá-lo em um demônio precoce e fazer com que seu ocaso fosse uma visão pavorosa. Pretendo queimar o diário maldito que deixou para trás, e se os senhores forem prudentes hão de dinamitar aquele altar de pedra lá em cima e desmanchar todos os círculos de pedra nas outras colinas. Foram coisas como aquelas que trouxeram essas criaturas que os Whateley tanto admiravam — criaturas invocadas para aniquilar a raça humana e arrastar a Terra rumo a algum lugar inefável para algum propósito inefável.”

“Quanto à coisa que acabamos de despachar — os Whateley a criaram para desempenhar um papel terrível em tudo o que estaria por vir. Cresceu depressa e atingiu um tamanho enorme pelo mesmo motivo que levou Wilbur a crescer depressa e atingir um tamanho enorme — porém acabou ainda maior porque continha mais elementos de estranheza cósmica. Não há motivo para perguntar como Wilbur a invocou do nada. Ele não a invocou. Esse era o irmão gêmeo de Wilbur, que puxou um pouco mais ao pai.

1

Salmos 91:6. “A pestilência que se propaga nas trevas.” [N. da E.]

Parte I
Apêndice

História do Necronomicon1

Título original Al Azif — sendo azif a palavra usada pelos árabes para designar o som noturno (feito por insetos) que se imagina ser o uivo de demônios.

Escrito por Abdul Alhazred, um poeta louco de Sanaá, no Iêmen, que supostamente viveu durante a época do Califado Omíada, por volta do ano 700 d.C. Visitou as ruínas da Babilônia e os segredos subterrâneos de Mênfis e passou dez anos sozinho no grande deserto ao sul da Arábia — o Rub’ al-Khali ou “Espaço Vazio” dos anciões — e no ad-Dahna ou “Deserto Escarlate” dos árabes modernos, supostamente habitado por espíritos protetores do mal e por monstros a serviço da morte. A respeito desse deserto, muitas estranhas e inacreditáveis maravilhas são narradas por aqueles que alegam tê-lo visitado. Nos últimos anos de vida, Alhazred morou em Damasco, onde o Necronomicon (Al Azif) foi escrito, e contam-se coisas terríveis e contraditórias a respeito da morte ou do sumiço final do autor (738 d.C.). Segundo Ibn Khallikan (biógrafo do séc. xii), Alhazred foi agarrado por um monstro invisível em plena luz do dia e devorado de maneira horrível ante os olhares incrédulos de um grande número de testemunhas. Quanto à loucura do poeta dizem-se muitas coisas. Afirmava ter visto a fabulosa Irem, ou Cidade dos Pilares, e ter encontrado sob um vilarejo sem nome no deserto os anais e os segredos de uma raça mais antiga do que a humanidade. Era apenas um muçulmano indiferente, que adorava entidades desconhecidas que chamava de Yog-Sothoth e de Cthulhu.

Em 950 d.C. o Azif, que havia ganhado uma circulação considerável ainda que sub-reptícia entre os filósofos da época, foi traduzido em segredo para o grego por Teodoro Filetas de Constantinopla sob o título Necronomicon. Por um século esse livro levou certos estudiosos a realizar experiências terríveis, até que foi suprimido e queimado pelo Patriarca Miguel. Desse ponto em diante encontram-se apenas menções furtivas ao título, mas Olaus Wormius (1228) fez uma tradução latina mais tarde na Idade Média, e o texto latino foi impresso duas vezes — uma no século xv, em caracteres góticos (evidentemente na Alemanha), e outra no século xvii (provavelmente na Espanha) — mas nenhuma das edições traz marcas de identificação, e a data e o lugar podem ser estimados apenas por meio de indícios tipográficos internos.